Imagem: trecho inicial da publicação original
Extremos
- Bom dia, comendador.
- Bons olhos o vejam, Guedes.
- Vai um chope?
- Vamos a isso.
E entraram na Flora Americana.
O comendador tinha a gordura proverbial que dá valor específico aos suínos de raça inglesa; Guedes
era magro, daquela magreza ideal que Gustavo Doré exagerou em D. Quixote. Um era baixo atarracado, o outro esguio, espigado. No comendador, o colete
estalava, estalavam as calças; em Guedes, a sobrecasaca nadava sobre umas costelas desenhadas em relevo, e as calças bambeavam amarfanhadamente por
umas pernas quase sem fim.
Os olhos de um bom observador perceberiam, entretanto, todo o esforço da arte, rasgos geniais de
alfaiataria impotente, no costume claro do comendador, e no costume escuro de Guedes. Tudo quanto de apuro pode dar uma boa tesoura - estava ali:
mas tudo era pouco, era nada, para as banhas abundantes, e para a espichadíssima ossada de um e de outro.
Os dois eram amigos: consolavam-se, olhando-se. Eram solidários no sentimento da elegância
revoltada contra a natureza, que os colocara em dois extremos, nos quais se tocavam.
Veio o chope.
- Pois é assim, comendador. Ninguém imagina como admiro e invejo essas carnes. Com dois por cento
disso, era eu perfeito. A natureza, infelizmente, ignora a conta de repartir, e comete iniqüidades revoltantes... Aqui estou eu, que emprego todos
os meios conhecidos para diminuir esta magreza deprimente, que é o meu desgosto, a minha humilhação. Todo o trabalho é perdido, todo o esforço é
inútil. E você, comendador, muito sossegadamente, sem esforço, sem fazer nada para merecê-lo, engorda majestosamente. É revoltante.
- Não blasfeme, Guedes, não blasfeme. Eu dava alguma coisa para ver substituída pela sua magreza
esta obesidade que me persegue. Tenho tentado tudo quanto dizem que é capaz de derreter as banhas. Suporto jejuns nos quais o meu apetite sempre
agudo toma proporções de fome canina. Faço ginástica numa barra fixa, arriscado a dar a cada momento com o costado em terra. Dou passeios que são
excursões heróicas a pé e a cavalo. Passo noites em claro, eu que tenho o mais exigente dos sonhos. E, ao fim de contas, saio de cada experiência
com fome, alagado em suor, com dores de cabeça - e mais um quilo de toucinho. É de desesperar.
- Mas você queixa-se de fartura: eu, de miséria. A sua gordura é respeitável, a minha magreza é
ridícula.
- Respeitável, a gordura! É exatamente o que ela tem de desolador. Sr respeitável aos trinta e
quatro anos, na minha posição, com o amor da elegância, a paixão de agradar, o coração sensível! A magreza, Guedes, é uma condição da elegância.
- Deixe-se disso. A sua gordura rubicunda respira um ar de saúde que consola. A minha magreza de
tísico é feia, confesse: faz-me desajeitado, dá-me um ar fosfórico, insignificante. Bastava que eu tivesse um pouco da gordura que lhe sobra...
- Se eu pudesse dar-lha, Guedes!... Mas você é leve. Eu peso, Guedes. Na valsa, que é a minha
paixão, o meu enlevo, devo parecer uma bola de borracha furada, em pulos malogrados. Isso mata-me. O que seria eu na valsa, que triunfos não me
estariam reservados nos salões, se tivesse um pouco menos de banha. Três arrobas apenas de diferença bastavam!
- Como você fala em três arrobas, comendador! Que pouco caso de milionário, para quem parece
migalhas isso que seria para mim a fortuna. E queixa-se.
- Quando eu me sento numa cadeira, e ela range, a dona da casa assusta-se com um terror súbito
pela integridade da sua mobília. É desanimador.
- E eu, comendador? Quando vou tomar um bonde, todos disputam a minha vizinhança no banco: "Aqui
tem lugar. Venha para cá. Aqui está melhor. Sem cerimônia". São como facadas que me dessem. O que os seduz é a minha exigüidade. É quase ser
ninguém. Decididamente é humilhante, no bonde como no mundo, ocupar um lugar estreito.
- A gordura é uma abjeção.
- A magreza é uma ignomínia.
- A natureza é absurda.
- Absurdíssima.
- Iníqua.
- Absolutamente iníqua.
- Não respeita o meio-termo.
- E no meio-termo, afinal, é que está a virtude.
- Qualquer de nós, com pouca diferença do que é, seria perfeito.
- A magreza, Guedes, é um bem. Mas, com franqueza, você excede-se.
- Também a gordura é invejável, em termos. Você é obeso.
- Você, Guedes, é um espeto.
- Você, comendador, parece um colchão enrolado.
- Isso traz uma pontinha de inveja, meu amigo. Não é gordo quem quer, mas quem pode.
- Ora a presunção! Você, se pudesse, era tão magro como eu.
- Nunca! A sua magreza, Guedes, é irrisória. Você sabe disso.
- Contam-se a respeito da sua gordura coisas engraçadas, comendador; dizem que um dia caiu de
costas, e foi-lhe preciso, para levantar-se, o auxílio de um guindaste.
- Pois a sua magreza tem inspirado ditos capazes de encher um almanaque. Um inimigo rancoroso
dizia de você - que vale quanto pesa.
- O seu peso em moedas de cobre, comendador, dava uma grande fortuna.
- Chamam-lhe Guedes Minhoca.
- Os mesmos que o conhecem por Lord Boião.
- Uma senhora, caluniada de disposta a aceitar a sua mão, defendeu-se dizendo com desprezo: "Roer
esse osso!"
- E aquela que sendo-lhe apresentado você, e pedindo-lhe uma valsa, perguntou ingenuamente se a
casa era bem sólida?
- Guedes, a sua magreza é célebre.
- Ora, comendador, o seu toucinho tem mais fama que o de Minas. Há matemáticos que se dedicam a
calcular quantos jacás daria você salgado. E o que mais espanto causa é que a sua gordura cresce. Você, no fim de contas, é considerado como um
mancebo esperançoso, com um grande futuro de banhas incalculáveis.
- Guedes, isso deixa de ser uma brincadeira para ser uma calúnia. Posso afiançar-lhe que,
ultimamente, estou em tendência para diminuir de peso.
- Já baixou a duzentos quilos?
- Nunca passei de 144 quilos e 59 gramas.
- Naturalmente em jejum, e nu, na ocasião em que nasceu?
- Você é que emagrece, Guedes. É extraordinário como ainda tem por onde.
- Eu? Mas isso é ilusão sua, comendador. Tenho até, nos últimos seis meses, feito uma diferença
para mais em carnes...
- Com franqueza, não parece.
- Mas é verdade. O meu peso aumentou sensivelmente.
- Dois gramas?
- Upa! Muito mais!
- Então o seu peso decerto dobrou. Mas vai ver que foi de você ter chumbado algum dente.
- Não; é que estou engordando.
- Está decerto ganhando o peso da idade. Já não é sem tempo.
- Quem fala em idade, um velhote.
- Tenho trinta e quatro anos, Guedes.
- Comendador, quando fez cinqüenta anos que você se desmamou?
- O senhor se excede. Há brincadeiras que não consinto. Sou bastante respeitável para exigir que
me respeite.
- Acho-o respeitabilíssimo como largura, comendador. Respeito-o como fenômeno. Mas o seu dandismo
é ridículo. As suas pretensões a moço bonito são lastimáveis.
- Senhor, seja ridículo por sua conta. Pinte os cabelos para esconder o seu meio século, encha-se
de algodão para disfarçar o seu esqueleto; faça tudo à vontade. Mas seja ridículo sozinho: não me atribua defeitos que não tenho, e nos quais não o
imito.
- Atribuir-lhe o vício de pintar os cabelos, quando sei que os compra da cor que mais lhe agrada?
Supor que se encha de algodão, quando sei o mundo de banha que o seu espartilho não consegue disfarçar? Sou incapaz disso, comendador. Eu sou
razoável: acho-o apenas obeso, e pretensioso.
- E eu considero-o malcriado e grotesco. Adeus.
- Olhe, eu se fosse como o comendador, enforcava-me.
- Não lhe resta esse recurso. Falta-lhe peso para esticar a corda.
O comendador encaminhou-se para a porta, furioso, vermelho, bufando forte, fazendo tilintar os
copos no estremecimento causado pelo seu peso de hipopótamo.
O Guedes chamou-o:
- Comendador, faz-me obséquio?
E alcançando-o, com uma gravidade irônica, vingativa:
- De graças a Deus, senhor comendador.
- De quê?
- De não poder ver-se por detrás.
Vicente de Carvalho
Imagem: ilustração publicada com o texto
Casas "Flora Americana" e "Camisaria Especial", em 1902
Foto publicada na edição especial da Revista da Semana/Jornal
do Brasil de janeiro de 1902,pág.39
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