Vicente de Carvalho - O Poeta do Mar
Marina de Pádua (*)
A poesia de Vicente de Carvalho está toda embebida de um
sentimento amoroso pela natureza. Sua alma profunda de artista, enriquecida de largos conhecimentos de ciência e filosofia, cheia de luminosidade
poética, anima todas as coisas. Mas, na sua visão total da natureza, um elemento, uma força se destaca, cheia de uma sedução poderosa e absorvente -
o MAR.
Nenhum poeta da nossa língua arrancou desse maravilhoso motivo poético imagens,
idéias, ritmos, versos, tão belos.
Vicente de Carvalho nasceu e morreu à beira do mar, em Santos, a cidade das ilhas, das
escarpas e dos rochedos. Ele o compara à sua vida, toma-o como confidente, transmite-lhe suas emoções, angústias, idéias e pensamentos. Ouve o doce
murmúrio e a revolta tempestuosa de suas águas, nos desesperados arremessos das ondas sobre a terra.
Nas Palavras ao Mar, evoca essa íntima ligação do seu destino, desde o berço, e
diz:
"Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas- a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.
Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...
.......
Ninguém entende, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!"
Se Vicente de Carvalho nasceu assim preso ao mar que lhe inspirou, indiscutivelmente,
as mais belas poesias, preso ao mar morreu.
Costumava o poeta realizar, de quando em quando, pescarias, com os pescadores
santistas. Sabe-se que estes usam, na pesca de garoupas à linha, iscas apodrecidas. Foi assim que, através de um ferimento produzido pela própria
linha, infeccionou o dedo. Desse acidente resultou-lhe a perda da mão esquerda.
Antes desse acidente, teve um dia séria desinteligência com um dos pescadores. Homem
valente e vingativo, armou-se esse pescador e foi aguardar sua passagem numa tocaia, a fim de matá-lo.
Passeava Vicente de Carvalho, sozinho e desprevenido, quando seus olhos descobriram,
na sombra, o cano da arma ameaçadora e traiçoeira. Imperturbável, seguro de si mesmo, e certo da impressão que sua indiferença, revelação de
bravura, causaria ao adversário, parou, sorriu, e acendeu um cigarro.
Diz Roquete Pinto, em um de seus livros, do qual resumiu a narrativa desse curioso
episódio, que "o pescador, subjugado pela força moral daquele homem, cuja vida estava no gatilho do seu fuzil, pousou a arma admirado e talvez
comovido".
Vicente de Carvalho, antes de morrer, tomou todas as providências finais, não se
esquecendo sequer de deixar em casa dinheiro "para as primeiras despesas".
No seu túmulo foram gravados estes versos seus, em que escolheu o lugar em que
desejava dormir o último sono:
"O derradeiro sono eu quero assim dormi-lo:
Num largo descampado
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranqüilo
E a primavera ao lado."
Se continuarmos revendo as poesias de Vicente de Carvalho, sobre o mar, verificaremos
que ele lhes empresta, quase sempre, os sentimentos e a voz humana.
No poema "Sugestões do crepúsculo", o poeta ouve subir, do marulhar de suas
vagas, um sussurro de preces para os céus:
"Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral
E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;
Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador
***
Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar..."
Era tal a obsessão que Vicente de Carvalho tinha pelo mar, que o via por toda a parte.
Ainda mesmo nos versos em que descreve, com a riqueza de imagens e a variedade de
comparações de sempre, as montanhas e as florestas, nas ondulações dos terrenos e das matas, descobre a miragem do mar:
"Na sombra em confusão do mato farfalhante
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além, levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios;
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precipita, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna,
Do fundo dos grotões outra vez se subleva
Surge, recai, ressurge... E assim, como em torrente,
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente."
Não só na paisagem, nas montanhas e nas florestas, vê Vicente de Carvalho o mar.
Também o descobre nos olhos verdes.
"Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!
Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noite é clara! Como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar... Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa...
Olhos abençoados cheios de promessa!
Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!"
Vicente de Carvalho foi, sem dúvida, um dos maiores poetas líricos do Brasil. Já era
assim considerado ainda em vida, quando publicou os seus primeiros poemas, e todas as grandes figuras da nossa literatura contemporânea lhe renderam
as maiores homenagens.
Euclides da Cunha, que prefaciou "Poemas e Canções", considera as "Palavras
ao Mar" um dos "maiores poemas que ainda se escreveram em língua portuguesa". Muitos outros escritores e críticos situaram Vicente de Carvalho
um lugar inconfundível na poesia brasileira.
Vicente de Carvalho possuía uma grande paixão pela música, música que transfundiu em
todos os seus versos. Foi um estudioso infatigável; cultivava incessantemente o seu espírito, venerava os mestres, amava e protegia os estudantes.
Ele definiu o sábio como "um poeta que abriu os olhos e sonha de olhos abertos", frase
que revela o seu interesse e sua curiosidade por todas as pesquisas científicas e indagações filosóficas.
Na aparência, esquivo e retraído, o poeta de "Fugindo ao cativeiro",
maravilhoso poema inspirado num episódio do cativeiro no Brasil, possuía um coração aberto às mais generosas manifestações de simpatia humana.
A força de sua inteligência, a delicadeza de sua sensibilidade, ficaram palpitando em
sua poesia, que lhe imortalizou o nome.
Realizou-se, em relação a ele mesmo, o que considerava sua maior ambição: "só
explica tão forte empenho posto em granjear tão modesto resultado, como é um livro de versos, aquele fortíssimo instinto, profundamente humano, que
se rebela contra a morte, sonhando para depois dela, uma continuação, ainda que modificada, da vida. A ambição de deixar a sua alma ecoando
sonoramente em outras almas, através do tempo, é, sem dúvida, o incentivo dos poetas e a ilusão de quase todos eles... que recompensa melhor promete
alguma religião aos que estimula, na incerta e penosa conquista do céu?"
(*) Colaboração especial para
A Tribuna, na Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos. |