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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (4)

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Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):
 
Fausto
(Fragmentos de um poema inédito de Vicente de Carvalho)

Publicamos nestas colunas uma página de Vicente de Carvalho, o primoroso poeta santista, autor de Poemas e Canções, uma das obras poéticas que têm continuado a ser reeditadas periodicamente, como prova bastante de que aumenta o número de seus leitores e de seus admiradores.

Vicente de Carvalho é assim homenageado nesta Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos, a cidade que lhe foi berço, banhada pelo mar que inspirou o lírico suave, o épico de Fugindo do cativeiro, o elegíaco do Pequenino morto.

O fragmento do poema que damos abaixo foi-nos fornecido pela família do poeta, e até agora permanecia inédito:

MEFISTÓFELES
- Pois, meu caro senhor, digo-lhe com franqueza: É pegar ou largar.

FAUSTO
- Mas, assim, de surpresa...

MEFISTÓFELES
- Sim, ou não? Saco à vista. Aceita?

FAUSTO
- Peço-lhe um prazo. Deixe que eu me consulte e durma sobre o caso.

MEFISTÓFELES
- Nada. Gastamos já três horas com o assunto. Basta. É muito. É demais. Terminemos. Pergunto: Serve-lhe ou não lhe serve?

FAUSTO
- É difícil...

MEFISTÓFELES
- Qual, nada

FAUSTO
- Para me resolver nessa grande cartada
Preciso de uma espera. Amanhã...

MEFISTÓFELES
- Nem meia hora.
Impossível. A cousa há de ser feita agora
Ou nunca. Eu tenho pressa. Eu sempre tenho pressa.
Gosto de aproveitar o tempo...

FAUSTO
- Si confessa
Que lhe sirvo, e o negócio é tão bom e tamanho,
Perder um dia é nada em proporção do ganho.

MEFISTÓFELES
Perder sempre é perder, seja tempo ou dinheiro.
O dia de hoje existe, é um ente verdadeiro,
Que possuo, que sei que é meu, de que disponho.
Amanhã - é uma sombra, incerta como um sonho,
O dia de amanhã... Dele, quem não é louco
Deve esperar bastante - e confiar bem pouco.
De resto, agora o vejo apenas hesitante.
E depois? Que penhor seguro me garante
Que, gasto em vão o tempo útil que quer tomar-me,
Não me nega amanhã o que hoje hesita em dar-me?
Si aceita, é já. Si não, passo adiante, sigo,
Vou bater a outra porta. E pense o meu amigo
Si encontrareI ou não quem queira, pelo preço
Modestíssimo, aliás, que imponho, que ofereço
Afinal...

FAUSTO
Sim, confesso, a tentação é forte...

MEFISTÓFELES
- Ora venha de lá um pontapé na sorte!
Atire-a pela escada abaixo! Basta um gesto
Heróico. Seja heróico...

FAUSTO

É muito. Diga: honesto.

MEFISTÓFELES
- Como queira. O senhor corrige, e não desmente.
Troca a minha expressão por uma equivalente,
Rediz, em suma, o que por outra forma eu disse:
Virtude, honestidade, escrúpulos, tolice,
Divergem como sons, valem-se como essência.

A vida é uma batalha encarniçada. Vence-a
O mais forte. De que? De audácia e de energia.
Deixemos à fraqueza as regras que ela cria.
As ficções da Moral, as ficções do Direito,
Velhas superstições, traçam um trilho estreito
Por onde os fracos vão submissos e lhes basta
Fora delas a vida humana é bem mais vasta.

FAUSTO
- Talvez tenha razão... Sou dos homens que pensam.

MEFISTÓFELES
Pois, meu santo senhor, peço-lhe a sua bençam...
E vou à minha vida.

FAUSTO (falando consigo)
Eu estaco
Diante de uma ilusão. Porque? Porque sou fraco.

(Fausto fica absorto. Passa, na rua, uma voz cantarolando):

Alma que pairas suspensa
Em nuvens de ínfima fé,
Lastimas que a minha crença
Seja tão frágil como é.

Aflige-te este sossego
Com que, sem medo e sem norte,
Sigo com passos de cego
Pela vida e para a morte.

Supões, trêmula de susto,
Que eu, vivendo assim, depois,
Perca o céu que a tanto custo
Tentas ganhar para os dois.

Em teu coração aflito
Receias que sobrenade
O nosso amor infinito
Num vácuo de eternidade.

Fazes o que te compete,
Eu, o quanto em mim está:
Crês no que o céu te promete,
Eu, no que a terra me dá.

MEFISTÓFELES
- Decidiu-se?

FAUSTO
- Pensei. Isto é...

MEFISTÓFELES
Hesita, é justo.
Eu compreendo-o bem. Não se perde sem custo
Um ótimo negócio, ou a alma - e o caso é disso.

Tenho as minhas razões de prestar-lhe um serviço,
Ofereço-lh'o. É só.

Está, não o disfarce,
À beira de um abismo a que vai despenhar-se:
A vergonha, que é nada, a miséria, que é tudo.

Na sua original vocação de suicida,
Repugna-lhe aceitar a mão com que lhe acudo.
Louvo-lhe essa altivez, que o honra e o que o liquida.
Vai cair. Vai cair, de mais a mais, no lodo,
Circunstância propícia. Ótimo! Desse modo
Cultivará melhor a Virtude, flor rara...

Compra um lugar no céu pelos olhos da cara.
É a minha opinião. Vai pagar em excesso.
Mesmo o que valha mais não vale qualquer preço.

Enfim, ama a Virtude. É louvável. Não creio
Que renda muito. Mas... é um "sport". É um recreio
Com ela o deixo, e sigo a bater noutra porta.
Cultive a sua flor, eu cuido da minha horta.
Cumpra a sua missão, eu faço o meu negócio.
É boa! Qualquer um serve-me para sócio,
Servia-me o Diabo. E venho dar com um Santo!
Enganei-me, está visto.

(despedindo)

Até mais ver!

FAUSTO
No entanto...

MEFISTÓFELES (consultando o relógio)
- Meio dia. Bonito! Eu, cabeça grisalha
De velho capitão, perdi nesta batalha
Armas, bagagens, tudo - até a hora do almoço.
Adeus...

FAUSTO
Espere um pouco. Atenda-me...

MEFISTÓFELES
- Não posso.
"Primo vivere". O almoço é dever; quanto à prosa
É simples devoção - e mais sendo ociosa.
Pretende repetir-me o que já disse à farta:
As razões da Moral... Não ponha mais na carta,
Um etc. diz tudo que quer que eu ouça.

Olhe, a Moral talvez me seduzisse em moça.
Acho-a velha. Que quer? Envelheceu com o mundo.
Carrancuda de rosto, é ingênua no fundo.
A fantasia é como a catarata da alma:
Cumpre estirpá-la e ver claro, com siso e calma,
O que é a terra, lama; o que nós somos, barro.

O idealismo é como o fumo de um cigarro:
Tenta subir ao céu e se desmancha no ar.
Temos a vida, é tudo: uma terra a lavrar.
Utilizemos todo o chão de que dispomos
Para a fecundação de árvores que dêem pomos.
Limpemo-la, sem dó, de escrúpulos daninhos.
Cultivar a virtude é cultivar espinhos.
Uma bela tarefa, útil e tentadora:
Seduz os tolos, tenta os fracos, é a lavoura
Dos inertes... Exige uma grande constância
Em não ser nada. Adeus! Eu, aqui onde me ouve,
Penso convictamente assim: como sustância
A frondosa Moral não vale um pé de couve.

O meu amigo é moço; eu quasi velho. Tenho
Essa vantagem. Triste? Utilíssima. Empenho
Na batalha da vida o que aprendi vivendo.
Viver é para mim negócio de que entendo,
Busco vencer o mais com o mínimo de esforço.
Resisto, porque sei ceder. Não quebro, torço
Os princípios são bons como assunto de estilo:
Não prestam para mais. O coração tranqüilo
É o coração à larga. Em toda esta viagem
Feita através de um mundo inconsistente e fútil,
Deve-se carregar o menos de bagagem:
Para que serve a alma? A alma é um peso inútil...

VICENTE DE CARVALHO

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