Vicente de Carvalho: poeta do mar e cidadão da República
Ana Luiza Martins (*)
Fazendeiro de café
A desilusão com a política o impeliu para novo campo, diretamente ligado às lides da
cidade na qual se formou: fazendeiro de café. Como morador de Santos, conhecia uma ponta do processo, a final, aquela da comercialização e despacho
do produto para o mundo. Naquela altura, tudo indicava que lá nas origens os lucros brotavam facilmente da terra. O "enriquecer afazendando-se"
era um norte para aquela geração, pois a propriedade de terras se constituía em bem, não só pecuniário mas socialmente qualificador.
Foi experimentar. Valendo-se da fantástica subida de preços do café, em ascensão desde
1886, representando 3/5 das fontes de divisas da economia brasileira, adquiriu terras em Franca - a fazenda Frutal - lá na banda Noroeste do
estado. O momento, contudo, não foi propício. À euforia dos preços, sobreveio uma crise no setor, com a baixa cotação do produto, a partir de 1896.
Foi uma catástrofe.
O desfecho não o abate. Antes, o mobiliza para a luta. Retorna a Santos em 1901, para
a advocacia, enquanto deflagra via imprensa - vale dizer, pelo jornal O Estado de S. Paulo, do cunhado Júlio Mesquita - uma série de artigos
em que propõe soluções ousadas e polêmicas. Entre elas, a queima do café excedente, estoque que no seu entender era responsável pelo desequilíbrio
entre a oferta e a procura do mercado mundial. É o economista de plantão que está no centro do problema, que fala como lavrador, como porta-voz dos
interesses do jornal O Estado de S. Paulo e também como santista, que desde cedo vivenciara a cidade e o porto do café.
A série de artigos que publica vai desencadear reações diversas, com uma avalanche de
contestações, o que prova que o jornalista Vicente de Carvalho era muito lido. A maioria provinha de leitores desinformados da matéria, que até
confessavam não entender do assunto. Houve por bem fundamentar suas afirmações e estudou exaustivamente a crise para ajuizar com isenção, publicando
em 1901 a Solução para a Crise do Café, alentado trabalho de 154 páginas, hoje, raridade bibliográfica.
Mais do que revelar outra inusitada dimensão da vida do poeta -
homem de negócios e arguto analista econômico -, o estudo do tema resultou em substanciosa publicação, repertório de alto valor para a história
econômica do país e, sobretudo, para o entendimento da política do café. Admitindo que só o livro permitiria leitura reflexiva, desapaixonada e
passível de melhor compreensão de seus pontos de vista, reuniu os artigos vindos a lume na imprensa diária, republicados com
"o sincero desejo de ser útil" e "inspirado no legítimo interesse
que tenho no assunto como brasileiro, como paulista, como lavrador" [19].
Procurava não se deter em "tiroteios parciais"
e responder às interpelações, "protegido pela sombra de uma boa árvore", aludindo à
competente bibliografia internacional anexa.
Em apêndice, apresentava tabelas, estatísticas, quadros, documentos sobre os preços do
café em Santos e cotações mundiais, sua produção internacional, incorporando análises de países de produção expressiva do produto, resultando em
belo estudo comparativo. Sem meias palavras, partia do princípio de que a desvalorização do produto se devia exclusivamente à superprodução
brasileira. Vejamos a prosa do poeta neste terreno:
"Em números redondos, para quatorze e meio milhões de sacas que o
mundo consome anualmente, há dezesseis e meio milhões de sacas que entram nos mercados. Deve-se tal excesso exclusivamente à produção brasileira.
Nos vinte e seis anos últimos a produção do resto do mundo manteve-se estacionária. [...] O grande fator da baixa somos só nós, que fazemos o
excesso da produção sobre o consumo. E, fato digno de toda a atenção, esse excesso não consiste propriamente em café, mas nas impurezas com que
exportamos os nossos cafés, e que 'como café são torradas e oferecidas ao consumo do mundo'. Isso, que em linguagem comercial se chama 'cafés
baixos', é o que faz, por si só, a superprodução" [20].
Como testemunha do processo, infere e elenca as causas do crescimento excessivo da
produção, entre 1888 e 1895: a baixa do câmbio, responsável pelas proposições artificialmente colossais aos preços naquele período; o incremento
excepcional da ferrovia nas zonas cafeeiras; a extraordinária corrente de imigração, então em refluxo; a mudança da força de trabalho, de escrava
para livre, "geralmente de europeus, e muito mais inteligente e esforçado", num rasgo de
apreciação sutilmente racista, bem ao sabor da época, muito embora o poeta se colocasse contra a corrente eugenista em voga.
A busca de solução suscita polêmica, ao propor a destruição de 20% da produção:
"Deliberação corajosa de destruir 20% da nossa safra próxima, e a resolução solene de
destruir das duas que se lhe seguirem a porcentagem que representar excesso de produção sobre o consumo. Mudaremos, com isso, a situação do café no
mundo. Dispomos de força para isso, porque produzimos 75% do café fornecido ao mundo. Poremos assim de nosso lado a especulação, que aproveitará o
elemento natural da alta, fornecido por nós. [...]
"Mesmo que a eliminação, durante dois ou três anos, de 20% das
nossas safras, isto é, a superprodução anual de dois ou dois e meio milhões de sacas de cafés baixos, só tivesse como resultado uma alta de 20% nos
preços, essa eliminação seria, ainda assim, de extrema conveniência. Compensada a quantidade sacrificada pela melhoria correspondente do preço,
nenhum prejuízo sofreria o produtor; e conseguiríamos, assim, sem sacrifício, a reabilitação do café brasileiro, pela exportação unicamente de café
depurado e superior. Habituaríamos assim os consumidores a beber realmente café. Não se pode imaginar mais eficaz elemento de propaganda"
[21].
Não cabe nestes limites ajuizar da pertinência da sugestão. Contudo, importa reter que
seus alertas com relação à necessidade de otimizar o produto foram proféticos, lamentavelmente pouco ouvidos, concorrendo ainda hoje para uma imagem
desfavorável da qualidade do café brasileiro. Na ocasião, ponderava sobre a importância de reduzir os lucros em favor de sua qualificação:
"A influência nefasta dos cafés baixos não se faz apenas sentir na superprodução.
Chamamos toda a atenção para este ponto. Esses tipos impuros, verdadeira falsificação do café, são um formidável concorrente do verdadeiro café. A
observação dos mercados nos últimos anos mostra que eles tendem a nivelar-se com as qualidades superiores, não subindo até estas, mas
desmoralizando-as. De ano para ano as diferenças entre os cafés superiores e os tipos mínimos se tornam menores.
"A baixa ataca de preferência, com maior intensidade, os belos tipos de mokas e
finos. Esse caminho leva-nos ao desastre de piorar cada vez mais o nosso produto, pela falta de incentivo que obrigue o produtor a melhorar a
produção. A pequena preferência de preços obtida atualmente pelos cafés sem defeito já compensa mal o esforço que o lavrador emprega para conseguir
esses cafés, e o que ele perde em quantidade e peso.
"Essa preferência tende a diminuir cada vez mais. Caminhamos assim para
este desastre: ser de bom conselho não empregar trabalho e despesas para obter café sem defeito; mas, pelo contrário, poupar o esforço e aproveitar
os defeitos, que fazem avultar a quantidade. Nesse declive em que vamos, a lavoura brasileira se lançará, descuidadamente, no que se pode chamar uma
verdadeira falsificação do produto" [22].
Apaixonado pela causa e secundado pela grande maioria do comércio
comissário de Santos, de vários núcleos da lavoura e de algumas câmaras municipais, lidera a facção mais poderosa de cafeicultores e comerciantes.
Solicita ao Congresso do Estado a iniciativa de um convênio entre todos os estados brasileiros produtores de café e a eliminação, durante algum
tempo, de uma porcentagem de nossa safra. Na ocasião, agradece o apoio de Antonio Prado, Rodrigues Alves, Luís Pereira Barreto
[23].
A despeito do respaldo e da competente argumentação, não logrou a implantação do
projeto. Onze anos depois, passada a crise pela "solução natural", demonstraria, por outro texto, a pertinência de sua proposta, lamentando o
quanto a lavoura paulista pusera fora desde 1901:
"Que imensa fortuna a lavoura paulista pôs fora desde 1901!
Parece-nos que lhe deve doer a ela, mais do que o remorso, a certeza de que não quis sacrificar um total de 60.000 contos para conseguir a
eliminação de 7.609.000 sacas de café ordinário em 1901-1903 - e tem agora de pagar, como está pagando e pagará durante prazo desconhecido, 30 mil
contos por ano... Para quê? Na hipótese mais favorável, favorável até ao absurdo, para obter, depois de tantos anos perdidos, um resultado igual ao
que teria obtido desde 1901..." [24].
Oportuno lembrar que, posteriormente, na década de
1930, a proposta pioneira de Vicente de Carvalho seria adotada pelo governo quando, em face da superprodução, se decidiu pela queima de parte do
produto. Com uma diferença: a orientação do fazendeiro Vicente de Carvalho incidia sobre a destruição do excedente, relativo aos "cafés baixos",
desqualificadores da produção brasileira; em 1930, esta seleção não ocorreu.
Carta do advogado Vicente de Carvalho a Argymiro Silveira, de 6 de agosto de 1903.
Ele residia na Rua General Câmara, 336, e tinha escritório na Rua XV de Novembro, 81,
1º andar
Foto: Biblioteca Guita e José Mindlin, publicada com o texto
Empresário de sucesso
O tino comercial, surpreendente num bacharel e poeta, mas previsível no santista que
muito cedo se envolvera com as lides mercantis, explica o cuidado em diversificar seus negócios. Quando fazendeiro em Franca, associou-se ao amigo
João da Silva Martins na fundação de uma firma voltada para a exploração da navegação fluvial no Vale do Ribeira. Nascia, em 1902, a Silva Martins &
Cia., que ganhou a concorrência do Governo do Estado para a navegação no Ribeira de Iguape e seus afluentes.
Adquirira dois vapores que se encontravam no Rio Mogi, propriedade da Companhia
Paulista de Estradas de Ferro, e o negócio foi tomando vulto. Sob o título de Empresa de Navegação Fluvial Sul Paulista passou a servir a região,
acrescida de novo material flutuante, chegando a contar em 1917 com uma frota de oito vapores e várias embarcações menores. Transformou-se em
sociedade anônima, empresa sólida e altamente lucrativa.
Os cargos que assumiu posteriormente na magistratura - juiz de direito, em 1908, e
ministro do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 1914 - obrigaram-no a manter-se à margem dos quadros da firma. Não obstante, detinha o
maior número de quotas do capital, e era o principal mentor de sua administração.
Dotado, enfim, de folga econômica, passou a
desfrutar com a família de viagens para a Europa em 1905, 1909 e 1913, algumas delas em busca de tratamento da saúde já abalada. Na última, com a
mulher e os treze filhos, tendo o caçula apenas um ano de idade, estabeleceu-se em Bruxelas, fixando depois residência em Genebra por sete meses.
(*) Ana
Luiza Martins é historiadora do Condephaat, co-autora de Arcadas, História da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Alternativa) e autora de Império do Café. A Grande Lavoura do Brasil (Atual).
NOTAS:
[19]
Vicente de Carvalho, Solução da Crise do Café, São Paulo, Livraria Civilização, 1901.
[20] Idem, ibidem, p. 17.
[21] Idem, ibidem.
[22] Idem, ibidem, pp. 3,4.
[23] Idem, ibidem, p. 72.
[24] Hermes Vieira, op.
cit. pp. 155-6.
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