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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-04)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 268 a 275):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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III – CAVALEIRO DO IDEAL

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A 1º de maio de 1896, o Centro Socialista de Santos comemorou a data gloriosa com o hasteamento, pela primeira vez, da bandeira socialista, e com uma sessão solene, à noite, onde se pronunciaram discursos, celebrando os méritos de tantos heróis que se sacrificaram em prol da emancipação humana.

Nessa noite memorável, Zézinho Fontes, filho do dr. Silvério Fontes, que aos 8 anos, em 1892, já publicara os primeiros versos no seu jornal manuscrito A Metralha, recitou um hino a Castro Alves, do qual, muitos anos depois, somente se recordava do começo – "
Primeiro de Maio é a grande data do futuro! Na frase do poeta imortal, do divino Castro Alves, a mocidade representa o porvir por antecipação, e eu que sou esse porvir ainda mais remoto, porque sou uma criança…" etc.

Martins Fontes assistia às conferências do Centro Socialista e foi testemunha de vários conflitos na sede, entre partidários do socialismo e do anarquismo. Bem cedo, ao mesmo tempo que ouvia histórias da carochinha e das Mil e Uma Noites, contadas por sua avó d. Josefina Olímpia de Aguiar Andrada Martins dos Santos, acostumou-se aos debates calorosos no Centro Socialista e se entregou aos estudos da doutrina sob a orientação de seu mestre e pai, de quem, mais tarde, divergiu, afastando-se ligeiramente do socialismo científico que segue as leis da evolução no método e na tática com o fim da sua realização e viabilidade, para o anarquismo de Proudhon, de Bakounine e de Kropotkine que, em sonho irrealizável, pensavam na abolição total e imediata do Estado, da propriedade individual e da herança patrimonial, o mantenedor da desigualdade social ou o instrumento de domínio sobre as classes, substituindo-o por uma sociedade onde o indivíduo fosse autônomo, para cuja soberania desaparecerá o sufrágio universal que é o direito dos governados escolherem os governantes, e, portanto, considerar o eleito superior aos eleitores, ou como Proudhon, verdadeiro criador do anarquismo, semeou, de conformidade com a concepção materialista da História: - a utilização de todos os meios de produção para o bem comum, o Estado, não como fim, mas unicamente meio de emancipação individual, a conciliação do individualismo e do socialismo.

Essa divergência, entre pai e filho, nasceu evidentemente de possuir Martins Fontes ardentíssima imaginação que o arrastava, em tropel irresistível, ao mundo das visões luxuriantes, vendo em todas as manifestações da Natureza e do Homem, fossem as mais transcendentes, sublimes, imortais, paradoxais, um motivo de beleza para ser interpretado pela poesia.

Do socialismo científico de Marx ascendeu ao anarquismo de Proudhon e de Bakounine. Isso não obstou que Martins Fontes deixasse de apreciar a doutrina socialista que lhe serviu de base nos estudos sociais. Influiu imenso sobre a sua atitude, a história da luta entre Marx e Bakounine, no célebre Congresso da Internacional, de Haia, no ano de 1872, de onde o segundo foi expulso.

Martins Fontes preferiu o idealismo poético do agitador revolucionário ao materialismo histórico do sábio economista. Simpatizava, por temperamento, com o apóstolo Miguel Bakounine, mais expansivo, franco, libertário, desprendido da vida, universal, cósmico, do que com o frio, o calculista, o nebuloso, o autoritário e burguês Karl Marx!

O jovem poeta deixou a cidade natal e foi completar os estudos no Rio de Janeiro, onde se formou na Faculdade de Medicina. Na capital brasileira, ao lado dos maiores talentos da época, teve a felicidade de conviver com a gloriosa geração literária de Olavo Bilac, no período de maior efervescência do parnasianismo, quando se vivia ao calor das ideias rutilantes do positivismo, idolatrando-se os mestres da disciplina mental: o filósofo Augusto Comte e o poeta Theodore de Banville.

A influência dessa notável geração perdurou, durante toda a vida, nos processos e nos métodos artísticos de Martins Fontes, que, apesar dos anos de estúrdia e boemia, jamais se esquecera dos deveres de médico, pontual nas clínicas dos hospitais, onde exerceu as suas atividades profissionais, mantendo-se, em contradição com os colegas, filhos da burguesia, irredutível em seus princípios filosóficos que lhe ensinara o pai, o dr. Silvério Fontes.

Depois das viagens de estudo pelo Brasil, pela América do Norte e Europa, recolheu-se ao torrão natal para se dedicar à família, abrindo consultório médico. Nos vagares dos serviços múltiplos da Delegacia de Saúde, do Hospital do Isolamento e dos Postos Médicos de várias sociedades beneficentes e hospitais, cultuava a sua arte, sem interesses financeiros, nem contagem ou audácia para mendigar a publicação dos versos nas empresas editoras. Martins Fontes estava encarreirado na vida. Assumira grandes responsabilidades familiares, profissionais e sociais.

A 27 de junho de 1928, faleceu o dr. Silvério Fontes, aos setenta anos, após sofrimentos prolongados, firme nas suas convicções socialistas, a cujos progressos e evolver assistiu com entusiasmo, cheio de felicidade, no recatado silêncio do lar e em nobre afastamento do meio social burguês de cidade provinciana.

A todos dizia, em vibrantes palavras, sem receio dos contraditores, eternos e inveterados reacionários: "
A revolução social está em marcha no mundo inteiro e a sua vitória será para breve".

Essa revolução, segundo o dr. Silvério Fontes, se processaria de acordo com as leis evolutivas, em crescentes, lentas adaptações, à medida que se fossem vencendo as reações de forças contrárias, sob fiscalização dum poder central, como transição para o sonhado período da liberdade individual.

Podemos avaliar o duríssimo golpe que Martins Fontes sofreu na vida com a morte do pai, cujo acompanhamento fúnebre até o Cemitério do Paquetá foi, pelo número e pelas representações de todas as classes da sociedade santista e paulistana, excepcional consagração póstuma ao sábio e filósofo dr. Silvério Fontes. Apesar de todo o conforto moral dos amigos e do povo a Martins Fontes, neste, permaneceu sem fim profunda e amarga saudade.

Martins Fontes, conquanto afirmasse a certeza de vitória da futura revolução social, compreendia-a sob o aspecto de imediata ação revolucionária, pelo esmagamento total de qualquer espécie de autoridade ditatorial , com a implantação do anarquismo, cujos ídolos eram Bakounine e Kropotkine, dois príncipes russos, aristocratas generosos, altruístas, abnegados.

E anarquismo não é a palavra que significa, para a burguesia aterrorizada, desordem, lutas violentas, mas a que traduz a ausência de governo, tal como a explicaram Kropotkine e Réclus, em 1878, sob o ponto de vista teórico: a) apropriação coletiva da riqueza social; b) abolição do Estado em todas as suas formas, incluindo a pretendida Agência Central de Serviços Públicos; para cuja prática seriam empregados os meios seguintes: pela rejeição do sufrágio, "
porque o voto não pode ser considerado um princípio de direito capaz de realizar a chamada soberania do povo".

Nestes alicerces, Kropotkine levantou a Ideia-anarquista, sob nova orientação, mantendo-a incólume até a morte. Kropotkine foi a maior adoração de Martins Fontes, porque na História da Humanidade não houve figura mais bela, nem mais pura. A fonte de beleza artística e de sonhos libertários, na poesia de Martins Fontes, encontramo-la no culto exaltado a Pedro Kropotkine, cuja via, reencarnação da de Francisco de Assis, de Buda ou de Prometeu, merecia uma epopeia moderna, tragédia lírica ou poema teatral para consagrá-lo, imortalizá-lo.

Martins Fontes, em arroubante momento de exaltação pelas ideias do genial apóstolo da redenção humana, esboçou uma epopeia em três atos, para um fim fantástico. Trazia-a de cor. Repetia-a aos amigos íntimos e camaradas. Esmiuçava-lhe as cenas, os quadros, as apoteoses. Desenhava os cenários; discriminava as caracterizações; dava o corte dos trajes; dispunha o mobiliário; combinava as luzes da ribalta.

Por fim, no supremo esforço de completo realismo, imitava o ribombo dos canhões, o estouro das granadas, o ululo do povo em revolta, o pipocar da fuzilaria. Era magistral! Nada faltaria ao engrandecimento daquele vulto que se erige no espaço, semeando estrelas na amplidão!

Pedro Kropotkine nasceu em Moscou a 9 de dezembro de 1842. Descendia da casa real de Rurik e era filho dos príncipes de Kropotkine. A corte russa deslumbrava o mundo diplomático com ostentosos e luxuriantes bailes no célebre Palácio de Inverno, em São Petersburgo, ritmados por famosas orquestras. Predominavam os uniformes de gala que brilhavam sob a iluminação fantástica.

Nessa corte devassa e fulgurante vivia a princesinha Mirski, prima de Pedro, de quem ele se apaixonara, ainda menino, mas cujo casamento seria proibido por determinação dos costumes aristocráticos na Rússia. Kropotkine deveria sufocar o sentimento do amor, em nome dos inflexíveis preconceitos da sociedade. Desde cedo, na mais mimosa infância, Pedro começou a observar os antagonismos entre a aristocracia e o povo russo. Os fidalgos, civis e militares, eram déspotas. O povo vivia em regime de escravidão, no culto da divindade do tzar.

Certo dia, à hora do jantar, o velho príncipe de Kropotkine, por motivo fútil, esbofeteou a Frol, antigo, fiel e estimado mordomo. Pedro se indignou. Correu à escadaria da cozinha, onde Frol sufocava o castigo injusto com lágrimas sentidas. Pedro se sentou, junto, a consolá-lo e a chorar também, ao que o antigo criado, comovido, passando as mãos nos cabelos da generosa criança, disse:

- O principezinho não será como seu pai.

Outros criados da casa não se fartavam de repetir:

- Pedro vai ser como sua mãe que está no céu.

- Não sei o que me diz que o meu senhor será muito, muito bom.

Pedro foi internado no Colégio dos Pajens, onde só admitiam filhos de fidalgos. Cursou as aulas com distinção. Ganhou sempre os primeiros prêmios. Viajou pela Sibéria e China. De volta, nomeado secretário da Sociedade de Geografia de São Petersburgo, escreveu notável memória sobre os gelos da Finlândia, que só terminou em 1873. Na sua viagem à Bélgica e à Suíça, testemunhou a luta espetacular entre Marx e Bakounine e se interessou pelos estudos socialistas.

Voltou à Rússia. Filiou-se a um clube revolucionário. Fez numerosas e clandestinas conferências sobre a história da Internacional. Uniu-se a outros propagandistas, quase todos abnegados aristocratas, sublimes dedicações, mártires e santos, na cruzada de espalhar a doutrina do socialismo entre milhões de russos escravizados, incultos e bisonhos.

Entretanto, alguns meses depois, a polícia interveio e prendeu Pedro Kropotkine na fortaleza onde Bakounine cumprira a pena de oito anos, agrilhoado. Pedro se ressentia de construção física muito fraca. Adoeceu e foi transportado para o hospital do presídio, de onde os amigos dedicados o libertaram, em julho de 1876.

Esta evasão foi o episódio mais emocionante da vida de Kropotkine. Para tão perigosa tarefa, estudaram-se todas as formas de ludibriar a sentinela que estivesse à vista no momento exato da fuga. Combinaram-se planos audaciosos. Inventaram-se sinais. Marcaram-se o dia, as horas, os minutos. Enfim, chegou a oportunidade auspiciosa. Pedro, passeando no pátio com a sentinela ao lado, atrasou-se alguns passos, desembaraçou-se do camisolão do hospital e, em trajes menores, correu para o portão, onde o esperava uma carruagem misteriosa, enquanto a rabeca dum amigo, à janela do quarto no terceiro andar dum prédio em frente ao presídio, tocava qualquer melodia, como aviso de que o caminho estava desimpedido pelas ruas estreitas e tortuosas da cidade… E desapareceu.

Começou, então, o apostolado de Kropotkine no movimento socialista do Ocidente, como digno sucessor de Bakounine, ora na Suíça, ora na França, ora na Inglaterra, acolá desterrado, aqui preso, além perseguido. Nas Ilhas Britânicas, Ilhas dos Exilados Políticos, "recanto único no mundo onde se permite o livre câmbio e a liberdade de todas as ideias", como no-lo dizia Martins Fontes, Kropotkine encontrou refúgio e paz.

Apesar do exílio, Kropotkine se lembrava da priminha, a princesa Mirski, com quem se correspondia amorosamente. O resto da existência de Kropotkine foi dedicado à propaganda intensa das suas ideias, as quais giravam ao redor dos fundamentos seguintes: o anarquismo como fim, e o coletivismo como forma transitória da propriedade; a abolição de todas as formas de governo, e a livre federação dos grupos produtores e consumidores.

E tinham por finalidade esta reivindicação: "
dê cada qual segundo as suas faculdades; receba cada qual segundo as suas necessidades". Kropotkine explicava-a dizendo: "A revolução francesa foi obra dos enciclopedistas, porque é lenta, mas eficaz a ação dos filósofos. O Terror acabou por não aterrorizar. Nela surgiu a ideia da transformação social. A Comuna é sua filha. Anarquismo, socialismo, coletivismo, tudo isto é cooperação para o bem comum. O sol nasce para todos: a água, a luz, o ar, a terra, na morte, são patrimônios gerais; por quê a terra, na vida, hoje, não será também, se já o foi? O espírito gregário e a confraternidade estabelecerão a paz definitiva. A nova Revolução será na Rússia, porque é mais supliciada, sofrida, depois da conflagração da Europa inteira, talvez no mundo inteiro".

Estes pensamentos de Kropotkine eram muitas vezes repetidos de cor por Martins Fontes, que os achou proféticos, considerando que Karl Marx, fundado em leis matemáticas, positivando, guiando-se pela razão, acreditou que a transformação social se faria – ao cantar do galo gaulês -; mas Kropotkine, orientando-se pelo coração, acertou, porque o sentimento é que ilumina os povos, e viver é amar.

Este conflito entre marxistas e bakuninistas, entre os princípios do federalismo e os princípios da centralização, entre a Comuna livre e o governo paternal do Estado, entre a ação livre das massas populares e o aperfeiçoamento legal do capitalismo em vigor, enfim, entre o espírito latino e o espírito alemão -, foi necessário porque a Alemanha, depois de bater a França no campo de batalha, em 1870, pretendia a supremacia no domínio da ciência, da política, da filosofia e também do socialismo. Nas montanhas do Jura, Kropotkine tomou conhecimento direto e prático do anarquismo. Acompanhou as polêmicas e a crítica do socialismo estadista, verificando o receio dum despotismo econômico, muito mais perigoso do que um simples despotismo político.

O caráter revolucionário da agitação, os princípios igualitários dos trabalhadores com desvelo absoluto à causa do partido, fizeram de Pedro Kropotkine um sincero e convicto anarquista, depois que permaneceu algum tempo e abandonou saudoso aquelas montanhas.

Alentou-o a visão da futura humanidade, em completo desenvolvimento da inteligência, do gosto artístico, do espírito inventivo, do gênio audaz, quando desaparecerem as mesquinhas preocupações das primordiais necessidades do ser humano, com a satisfação dos alimentos e do abrigo, com a simplificação da luta pela existência contra as forças naturais.

O anarquismo é o fundamento do individualismo que representa a plena expansão de todas as faculdades do homem, o desenvolvimento superior do que lhe é original, a maior fecundidade da inteligência, do sentimento e da vontade. O salariato desaparecerá com a posse em comum dos materiais necessários à produção e dos instrumentos de trabalho. Os operários gozarão em comum dos frutos da produção e labor realizados igualmente em conjunto, consoante as suas necessidades.

A realização deste ideal pouco importa que leve tempo longínquo. Kropotkine traçou-lhe o plano, assim: primeiro, focalizar pela análise da sociedade as tendências que a caracterizam em dado momento da sua evolução e acentuá-las como se apresentam; em seguida, cumpre traduzi-las na prática, portanto, executá-las em nossas relações com todos aqueles que pensam como nós; por fim, promover, já no período revolucionário, a demolição das instituições arcaicas, bem como dos preconceitos que emperram o livre desenvolvimento dessas tendências.

A ideia da sociedade sem Estado suscitará objeções profundas, obstáculos quase intransponíveis, em virtude do nosso enraizamento secular no preconceito das funções providenciais do Estado. A nossa educação se ressente, disse-o notável comentador da filosofia de Kropotkine, da crença da necessidade imperiosa de governo nos destinos da sociedade, conforme no-lo ensinam o Direito Romano, o Direito Constitucional e o Administrativo, ministrados nas faculdades das universidades burguesas, onde, para manter tais preconceitos, elaboraram sistemas de filosofia especiais, e se redigiram várias teorias do valor da lei e da sua pretensa importância nas sociedades humanas. A política se baseia nestes princípios. Os políticos se servem deles como escudo, nas lutas eleitorais, a fim de arengarem ao povo a sua pepineira no estafado estribilho:

- Dá-me as rédeas do poder e verás como, com o meu querer e poder, te livro das misérias que te acabrunham.

Para Martins Fontes, idólatra de Kropotkine, o Anarquismo era mais do que a concepção duma sociedade livre, fazia parte da filosofia natural, e seu desenvolvimento deveria se fazer por métodos diversos dos metafísicos ou dialéticos, empregados até aqui nas ciências sociológicas; o anarquismo deve ser construído sobre as bases das ciências naturais por induções aplicadas às instituições humanas, criando-se a ciência revolucionária que dará à Humanidade mais vantagens do que todas as convenções e matanças inúteis.

Aqui, surge o filósofo deste Ideal, Pompeyo Gener. Mas Kropotkine foi mártir; simboliza a Bondade, a Ternura, a Doçura, a Misericórdia, o Perdão, o Amor; reservou para si todos os sacrifícios; nunca falou ou cuidou de si; não se lhe encontrava defeito ou falha; enfim, foi arcangelesco!

E Martins Fontes exultava: "Ver nascer uma teoria, da qual resulta um bem geral! Oh! O desabrochar do Ideal! Comparar a orquestra à sociedade futura. No dia em que cada cidadão trabalhar para a obra coletiva, como os artistas de um concerto sinfônico, executando sua parte com escrúpulo, atentamente, preocupados com o efeito de um conjunto, unidos estreitamente, em confraternização abstrata, a paz cantará na Terra, Pátria comum".

A necessidade corresponderá ao chefe da orquestra, imagem da unidade na variedade. Analogia exata. Durante a sinfonia, aplacam-se as almas: todo o mundo é bom. Sentimentos puros embalsamam o ambiente, a liberdade harmoniza as consciências, a concórdia paira religiosamente. Ideal. Realidade do sonho. Idealistas, ansiosos, sedentos de liberdade, mas de liberdade infinita, queremos a ausência total do autoritarismo, a supressão, a anulação da ditadura – e só a anarquia de Kropotkine ou de Rèclus nos satisfaz e consola e sobreleva, super-humanizando-nos.

O socialismo, como o sonhava Eça de Queiroz, deve ser integral, combater todos os males sociais e morais, não só as opressões e injustiças, mas ainda toda a sorte de egoísmos, toda a severidade nociva, todos os padecimentos evitáveis. É mister fazer justiça ao povo, para que ele não a faça pelas suas próprias mãos.