II – CAVALEIRO DA ARTE
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Martins Fontes transcendia nos louvores aos poetas e artistas da nossa tera, mesmo aos que desempenhavam misteres de apóstolos da ciência e
da religião. Ouvia-o louvar o médico que não descansa porque o seu destino é enxugar as lágrimas dos infelizes, pensando no exemplo do doutor Martins Sampaio; os sacerdotes católicos como o padre João Baptista de Carvalho, que possuía grande
cultura e talento, com pesar desvirtuado para a Igreja ditadora, e que, com sobranceria e nobreza, defendeu a honra da terra piratiningana nos dolorosos dias da revolução constitucionalista pela qual se sacrificaram inutilmente tantas esperanças
moças; depois, monsenhor Moreira, o protótipo do santo franciscano, cuja lembrança perdura em cada luz que alveja em Santos e cujo coração, tal qual uma lâmpada, viceja no altar-mor da Capela do Monte Serrate.
Dos poetas e artistas do seu culto, Martins Fontes delineava o perfil num traço forte e profundo. Assim, Raimundo Correia no soneto "Mal Secreto" fez pensar a Martins Fontes no espelho que reproduzia o coração dos amantes. Essa obra-prima da poesia
brasileira lembra a face dum cristal onde se reflete a alma humana em toda a verdade e que alguém ao ver-se nele retratado se considera o ente mais desgraçado que há no mundo.
Raimundo Correia, em tantos versos de fatura e meticulosidade perfeita, escreveu decassílabos que rebrilham, doendo nos olhos pela clareza fulgurante nos recortes raros e diversos ao tecer da métrica, que coruscam em virtuosismos vivíssimos como
rubis ou borboletas e abelhas centelhantes, que reluzem, estrelecem, rebrasilham.
Eis como a arte de Raimundo Correia, a quem os poetas novos do Brasil vão glorificar num monumento, impressionava a Martins Fontes. Para maior grandeza da glorificação, Martins Fontes sugeria que se desse o nome de Raimundo Correia ao bosque azul
do Itatiaia, a um rio, a um píncaro, a uma floresta, ou, na cidade, entre jardins, defronte ao mar, a uma fonte. Seria essa a demonstração de que a Pátria pertence aos seus Reveladores.
E perpassam outros: Francisca Júlia da Silva, musa impassível, cujo parnasianismo Martins Fontes louvava profetizando que a Pátria um dia lhe levantará uma estátua; Vicente de Carvalho, o "pescador de pérolas" a quem também a cidade de Santos, sua
terra natal, levantará uma estátua simbolizando uma fonte junto ao mar, uma glória de quem genialmente escreveu um dos maiores poemas da literatura brasileira – Fugindo ao cativeiro -, para glória de quem previdentemente organizou a
instrução pública e criou o serviço sanitário no Estado de São Paulo, durante a rápida passagem, em 1892, pela Secretaria do Interior, convidando Pasteur para essa missão humanitária; Alberto Sousa, o romanesco semeador encantado da beleza que
continua a viver na lembrança de todos pelo talento de jornalista, historiador e poeta; Ricardo Gonçalves, o Dom Ricardito, poeta boêmio de Ipês, tribuno, epigramista e troveiro de barcarolas que soube, em verso, descrever a vida do sertão
paulista e em quadros coloridos a paisagem e os costumes, como Baptista Cepêlos a história dos bandeirantes; Amadeu Amaral, um santo que trazia a nostalgia do céu no azul dos olhos, tristonho poeta, suave na voz e nos modos, vivendo entre as névoas
do sonho, com os olhos virados para o céu que o atraiu; Júlio César da Silva, o lapidador do verso e da rima, pondo no sentimento da fineza a naturalidade da flor; Puvis de Chavannes, poeta simbólico e diáfano que soube interpretar a brancura e o
lirismo em tons de puro idealismo com clareza; Raul Pompeia, o panfletário e trágico artista que possuía estilo musical, claro, heroico; Pradal Mallet, que Martins Fontes não conheceu mas que viu ressuscitado pelo Alegre Bando quando Coelho Neto e
Olavo Bilac recitavam os seus poemas; Paula Ney, o orador épico, dominando a palavra, de ironia e verbo lampejante; Emíilio Rouède, o jornalista de largos conhecimentos, imprevisto em qualquer matéria que tratasse com sarcasmo e pilhéria; Euclides
da Cunha, "espelho de ouro da resplendência verde do Brasil", expressou em prosa dúctil e clara as belezas do Amazonas ao Prata com amor inultrapassável; Filipe de Oliveira, que Martins Fontes viu pela última vez numa ceia da Vila Kyrial, onde o
ouviu recitar uma canção que lhe pareceu o fulgir duma fonte desabrochando em espiral de tons de ouro e rosa; enfim, Cleómenes Campos, de quem Martins Fontes imaginou, para louvá-lo, uma igreja branca e acesa onde meninas solteiras cantam
acompanhadas do coro das velhas rendeiras, onde a mirra e o incenso sobrem do altar velho e sobre cujo alvor, pelos ermos, o coração do poeta de "Mãos postas" abençoa a Capela, espalhando a luz da lua.
Com essa ideia de intensa sensibilidade e espiritualismo quase místico, Martins Fontes dedicou a Cleómenes Campos A Canção de Ariel, a quem se tornou um santo pela doçura, de quem se desprende, a evolar-se, em volutas, a essência inspiradora
da harmonia, e a quem Martins Fontes contou uma história de fadas, rainhas e anões para adormecê-lo, pois era um cortejo de reis, príncipes, duques, gnomos, caminhando ao luar, e que numa volta se diluiu em nuvem.
Contudo, Martins Fontes jamais soube louvar-se, ocultava-se, esforçando-se em enaltecer os outros, e encalistrava-se quando lhe lisonjeavam os versos, a sua arte impecável e o seu pensamento profundo e avançado. Inquiria, constantemente, dos
amigos, o grau de poesia que cada um encontrava nos versos, por escrúpulo de honesto Cavaleiro da Arte. Temia que o rigor da forma prejudicasse a essência do sentimento e da ideia.
Assim, Martins Fontes, justamente considerado um dos maiores poetas brasileiros, consagrou a atribulada existência ao Belo que soube interpretar em versos perfeitos e musicais. Os seus numerosos livros de versos atestam intenso labor literário,
apesar das preocupações materiais, absorventes e estéreis. Quando o livro O Verão surgiu nas montras dos livreiros, todos anunciaram o aparecimento dum grande poeta, revelando-se artista cinzelador do verso.
O eco da voz que o proclamou poeta parnasiano se reproduziu de ouvido em ouvido de milhares de admiradores. Citam-no como poeta dessa escola notável à qual pertenceram Olavo Bilac, Emílio de Menezes,
Raimundo Correia, Goulart de Andrade, Bastos Tigre e muitos outros talentos de inatingível grandeza. A história da literatura brasileira poderá citar com orgulho esses frios, rígidos e intransigentes buriladores de versos preciosos em língua
portuguesa. Cultuaram a Arte, com a veneração dos idólatras sinceros. Não iludiram os seus semelhantes com prestidigitações e malabarismos literários de que tanto abusam os cabotinos. O próprio sentimento ganhou sublimes rutilâncias dentro da
disciplina parnasiana.
Se houve exageros no culto da forma, provieram de poetas medíocres que, à força de aperfeiçoá-la, desgastaram o sentimento em tênue pó, disperso no espaço ao sopro leve da respiração, deixando inerte e sem alma o corpo da criação poética. A arte,
nesta escola, era tortura, mas bendizemo-la porque selecionou os verdadeiros poetas dentre os desgarrados versejadores de futilidades.
Arte é o deus dos artistas. Prescinde de todos os outros deuses. Arte é a expressão sublime do engenho humano. Se a Humanidade desaparecesse por efeito dos cataclismos, a Arte restaria imortal, como única e sobrevivente criação do homem.
Martins Fontes afirmou que na vida ascendente tudo é Amor, na era vital sobre-humana do amanhã vitorioso tudo desaparecerá para só viver o Amor, corola expansiva, conclusão na plenitude, força perpétua, simpatia gravitante, lei que regula a atração
na física, a afinidade na química, vindo em dinamismo eletivo, desde a estrutura dos cristais pastorianos ao ritmo dos astros hugocêntricos. O entusiasmo que causa esta fenomenalidade uniforme e omniativa, sempre rejuvenescida, produz,
passivamente, o sentimento estético, o prazer contemplativo.
Para Martins Fontes, a estética, ciência do belo na Arte, criadora desses sentimentos, tinha origem na fisiologia e na psicologia, como a determinaram as teorias de Grant Allen, Helmholtz e Veron. O homem, na época pre-histórica, já possuía
rudimentar sentimento estético pelo poder de apreciar certas combinações de linhas, formas, cores, movimentos e sons que, com seu natural desenvolvimento, constituíram as artes.
A preferência por estas combinações se baseava na excitação dos nervos da sensibilidade, localizados no cérebro, para a formação dos órgãos. O ouvido possui, irradiados na caverna óssea, três mil fibras que são outras tantas três mil notas,
enquanto o teclado moderno apresenta oitenta e quatro notas. Com o ouvido educado, ouvem-se as notas principais e todo o cortejo das harmônicas. Estas são os diferentes timbres e notas acessórias, resultantes da justaposição dos sons diversos.
A sensação da luz é igual à do som. As ondas luminosas vibram as fibras do nervo ótico, com as mesmas complexidades que o som, originando sensações simples e complexas conforme há uma ou mais vibrações simultâneas. O movimento duma molécula
luminosa ou sonora forma o elemento primário da sensação que varia de acordo com a intensidade da mesma molécula. Quanto maior for a vibração da onda luminosa ou sonora, tanto maior o prazer, desde que essa onda não encontre certas condições
neutralizadoras do silêncio e da sombra.
A concordância harmônica das vibrações, sob o aspecto psicológico – uma das condições principais do sentimento estético -, acha um auxiliar na unidade final do pensamento que produziu a obra artística. Assim como os olhos encontram prazer na
harmonia das linhas e das cores dum quadro ou duma estátua, assim a lógica intelectual somente se satisfaz reunindo num grupo único a diversidade de ideias expressas pelas diferentes partes duma obra.
O princípio é manter a unidade duma só ideia, ainda que, para maior beleza, se intercale a oposição e a repetição. Esses princípios aliam-se à linha, à cor, ao som, ao movimento. A linha reta representa a unidade; a linha curva, a variedade. Da sua
combinação ou ausência duma delas, formou-se o estilo, reflexo da personalidade do verdadeiro artista que, pela imaginação, calor e entusiasmo, sensibilidade de esteta, inteligência arguta de psicólogo e poder criador, exprime as impressões sob
qualquer forma de arte.
A linha sinuosa ou ondeada é a linha da vida, porque os seres são sinuosos, tanto vegetais como animais. Isso mesmo não representa o ideal porque é preciso o contraste doutras linhas. Há também a linha oblíqua que define o caráter do estilo
conforme sai de baixo para cima, traduzindo a expansão, a alegria, a franqueza, ou de cima para baixo, expressando a concentração, a tristeza, a frieza, a morte.
O mesmo se dá com os sons, a cor, o movimento. Verifica-se, segundo Félicien Challaye, que a fisiologia, a ciência das funções orgânicas, ressurgida com a filosofia positiva, se adaptou à estética para explicar a influência das vibrações luminosas
e das ondas sonoras nos olhos e nos ouvidos, produzindo prazer e bem-estar.
Veron, de fato, dá importância aos efeitos da arte nos órgãos auditivos e visuais e também deduz da História a manifestação do sentimento estético que todos possuem em medida igual, variando o gosto conforme o desenvolvimento de certas fibras
nervosas, mais ou menos excitáveis, ou de acordo com a educação e a sensibilidade do apreciador duma obra de arte.
Portanto, a variedade e diversidade dos gostos é constante. Cientificamente sabemos que o som é produzido pela vibração de moléculas que nos ferem os ouvidos, em ondas mais ou menos graduadas. Muitos supõem que uma nota musical é um som único; no
entanto, para a produção desse mesmo som, há uma infinidade de harmônicas que, pela quantidade maior ou menor, dão o timbre. É por isso que o instrumento de cordas é riquíssimo em harmônicas.
Também se quer dar explicação idêntica à linha, à cor, à luz, que vibram com igual intensidade. Para essas impressões, a perfeição das fibras nervosas varia em cada pessoa, cuja variedade se explica por defeito natural ou por falta de exercício,
criando-se o gosto artístico que influi na preferência duns pela música e doutros pela poesia, escultura, pintura, arquitetura, danças, teatro, para o que é indispensável possuir-se sensibilidade fina dos ouvidos e dos olhos, e sentimento profundo
da estética das coisas de que nos cercamos, fundamentando-se a delicadeza deste sentimento na particularidade de avaliar o poder impressivo duma obra de arte.
A inteligência, à maneira do sentimento e da vontade, cuja sede é o cérebro, funciona como elemento primordial na concepção da obra de arte. Seja qual for a função fisiológica e biológica na arte, o prazer estético encontra nos efeitos morais a sua
capital importância. Portanto, argumenta Challaye, não basta o conhecimento da fisiologia dos olhos e dos ouvidos para avaliar o sentimento estético, é imprescindível o estudo psicológico junto ao fisiológico – a consciência ao lado do organismo.
Isso não obstou a que se introduzissem no estudo dos fenômenos estéticos os processos fecundos da física e da biologia, de que se originou a estética experimental, ramo importante da psicofísica, mas tais processos cabem perfeitamente no âmbito da
psicologia que constata os fatos e induz as leis, estuda os prazeres, as dores, sensações, emoções, inclinações, paixões, imagens, ideias, raciocínios, desejos, hábitos etc., enquanto a estética também como ciência normativa, com a função da lógica
e da moral, determina valores mas não impõe regras à criação da obra de arte ou à apreciação da beleza, servindo unicamente de disciplina dos gêneros e das artes, dentro da qual a imaginação criadora do artista, ou o senso analítico do crítico
literário e de arte, é livre.
A finalidade da estética, na prática, é utilizada, sob o ponto de vista pedagógico, para desenvolver as faculdades humanas sem intenção de formar artistas; na teoria procura satisfazer o desejo de conhecer a origem das grandes criações artísticas e
o sentimento pela beleza dos seres e das coisas, orientando o pensamento para o estudo da vida interior onde reside o segredo dessa criação artística e dos seus enigmas.
O prazer estético, o amor do belo, ou a vontade de criar obras de arte, são, como os outros, fenômenos psicológicos, pelo mesmo motivo que a ideologia metafísica contém muito de psicologia nas suas observações, tais como no-las legou o seu máximo
criador, Platão, com a célebre teoria das reminiscências.
Plantão concebia dois mundos: o sensível e o inteligível sobrepondo-se este àquele. Ao mundo inteligível pertencem as ideias metodicamente hierarquizadas, no cimo das quais se encontra a ideia do Bem, a ideia suprema e perfeita que regula todas as
outras.
Há a dialética do espírito e a dialética do coração. Uma é a ordem e a luz do mundo inteligível. A outra é a reminiscência da suprema Beleza. A arte, conforme essa teoria, é a cópia fiel das
reminiscências do Belo e da Ideia absoluta. A missão do artista é executá-la o mais fielmente possível para atingir a imortalidade da obra e do seu gênio. Mas a estética é considerada parte da psicologia porque, em destaque, estuda mais de perto os
fatos íntimos da vida para o belo, como a Lógica para a verdade e a Moral para o bem.
A estética pode se considerar a psicologia do artista e do amador da beleza que se diferenciam em criador e crítico, aproximando-se ambos pela igualdade da emoção estética. Tanto um como outro, para essa missão, devem possuir cultura artística ou
ter vivido em meios artísticos. A beleza na natureza só é compreendida e conhecida depois do estudo da beleza na arte. Ora, o belo da natureza, ou natural, é perfeito em si, e o belo da arate, ou artificial, é a imitação dessa natureza com todos os
predicados bons ou maus. A função do belo artístico é imitar sem copiar servilmente.
A arte se encaminha para todas as direções dos sentimentos humanos. O feio, como o belo, encontra-se simultaneamente em todas as obras da literatura e das artes plásticas. A verdadeira e única fonte da arte é o artista. E o grau de realidade que
contém uma obra, avalia o poder de imaginação para concebê-la com o relevo que se lhe nota.
Eis por que em todas as grandes obras admiramos mais os tipos que os artistas criam, do que a perfeita igualdade dos que existiam na realidade, porque, no perpassar das cenas, os caracteres das
personagens simbolizam sempre as qualidades e os vícios observados nas pessoas que nos cercam na sociedade. Outras vezes, o artista deduz pela imaginação o assunto da sua obra, ainda mesmo que jamais existisse na vida real, mas supondo que assim
aconteceria se fosse verdadeiro. O que nos empolga na obra de arte é o gênio do artista quando a idealiza.
A estética psicológica, desta forma, estuda os estados da alma do artista, recorrendo à psicologia comparada. Por estes processos poderá conhecer as variações do sentimento estético nas pessoas e seus ambientes, e nos animais domésticos. Por isso,
não basta considerar a estética um estudo psicológico, é preciso juntar-lhe uma estética sociológica e histórica, na opinião autorizada do filósofo Félicieu Challaye. Ora, a sociologia e a história estudam a humanidade, com a diferença de que
aquela trata dos seus caracteres, e esta narra os acontecimentos.
A obra de arte, assim considerada, é um produto do meio social, como o afirmou Madame de Stael para a literatura, e Taine para esta e para todas as artes. Seja qual for o temperamento do artista, ele sofre as influências do meio social onde vive –
o pensamento e os costumes da sociedade. Ainda segundo Taine, o mestre eminente da Filosofia da Arte, as condições essenciais que determinam o aparecimento da obra de arte são: a raça, o meio e o momento – três forças que constituem a história das
artes.
Estas condições obedecem a uma lei mecânica segundo a qual o efeito total se compõe inteiramente pela grandeza e direção especificada das forças que o produzem. Esta mecânica explica o passado, mas se pudessem medir e calcular essas forças,
prever-se-ia a civilização futura. Com a transformação das sociedades, surge uma nova arte, o mesmo que se dá com as democracias políticas que estão evolvendo para as democracias econômicas (coletivismo de produção e de consumo), a arte proletária,
a arte da vida humana em seus movimentos de massa para uma finalidade comum.
Muito mais atraente que todas as modalidades da estética é a vida humana. Compete aos artistas, como aos sociólogos, exaltar as conquistas humanas e escalpelar os defeitos sociais para dar à sociedade uma organização mais consentânea com o Bem – já
o dizia o notável publicista brasileiro Pedro do Couto – porque à grande massa se devem dirigir "falando uma linguagem que lhes é mais acessível, pintando com cores nítidas a situação de gozo dos exploradores, dos inúteis, dos parasitas, em
contraste clamoroso com a miséria mais tremenda em que jazem as classes que mais diretamente concorrem para o amanho do planeta".
A vida em repouso, como na estatuária antiga, encanta, mas a vida ativa, em conjunto, em grupos movimentados, envolvidos de luz e cor, é a perfeição da Arte.
Na arte, tudo é meio de expressão, tanto na antiga como na moderna. A linha direita ou curva, horizontal ou vertical, oblíqua ou perpendicular, tem cunho e expressão. A arte grega, criadora dessas expressão linear, influenciou muita gente em
preferi-la porque representa a harmonia das proporções e a perfeição das formas geométricas.
As obras antigas vincam impassibilidade latente da vida, cujas fisionomias são calmas, o que contrasta com a vida moderna e contemporânea de psicologia profunda e movimentada. A arte antiga difere da moderna por conter esta mais vida emotiva e
expressiva. Para uma obra satisfazer completamente deve juntar à unidade harmônica das partes o fim intelectual da ação. Não se pode conceber uma obra de arte sem a sua finalidade racional que deve ser moral, abominando toda a baixeza, de maneira
que a generosidade do coração e a grandeza de alma nos seduzam e encantem.
Enfim, o prazer dos ouvidos e dos olhos, como qualquer outro, consiste num excesso passageiro da atividade cerebral, vibrando aceleradamente as fibras nervosas. O ouvido e a vista, dizia Martins
Fontes, têm a privilégio de produzir belas sensações. Frise-se que se não confunda este prazer com o do olfato, o do paladar e o do tato, os quais, gerando sentimentos e ideias, causam apenas sensações agradáveis e de natureza diferente.
Pelo contrário, as sensações dos ouvidos e dos olhos se dirigem espontaneamente aos centros onde se elaboram as imagens para a concepção do pensamento. Portanto, o sentimento estético é um prazer
admirativo que por sua vez resulta do estímulo e recrudescimento da energia e da atividade cerebral, produzindo a intensidade e multiplicidade das impressões recebidas das linhas, das formas, das cores, dos sons e dos movimentos, de que se conclui
que a arte nasceu com o homem, criador supremo da linguagem.
Desde os tempos primitivos, o Homem, inconsciente e voluntariamente, fez arte com a pedra trabalhada, fabricou os utensílios, construiu as cavernas, esculpiu toscas decorações, esqueletos fósseis, objetos de ornamento, braceletes, anéis. Já
conhecia a música e o canto, o que nos comprova que a Arte não distingue somente os povos civilizados e superiores. Nos selvagens ou nos primitivos, encontramos manifestações mais ou menos rudes da inteligência humana.
Sobre a poesia é que talvez não existam prováveis demonstrações entre os selvagens. Na antiguidade, os povos do oriente cantavam em hinos os sentimentos religiosos e as descrições da natureza que se transformaram mais tarde em epopeias, produto
coletivo dum povo. Com o tempo, as epopeias se personalizaram até o exagero das abstrações metafísicas e acadêmicas.
A necessidade de se defenderem dos animais ferozes e da inclemência da natureza obrigou o Homem, por instinto de conservação, a melhorar as condições de vida. De igual forma, a Arte preencheu uma necessidade espiritual, único motivo que diferencia
o Homem dos outros animais, ainda que seja comum a ambos a lei da atividade; o homem nasce inteligente como todos os animais, e como este aplica a inteligência em procurar a satisfação de necessidades e evitar a dor, o sofrimento.
Porém, a atividade superior do homem obrigou-o a progresso contínuo de gerações a gerações, através de milhares de séculos, cuja causa verdadeira é a faculdade que possui de analisar e generalizar.
Com esta faculdade, criou a Ciência, origem de todo o progresso.
A humanidade, no decorrer dos séculos, encontrou sérios obstáculos, de que resultou a queda de muitas civilizações e o aparecimento de outras. O homem, com faculdades superiores, não daria curso ao progresso se não criasse o instrumento
transmissor, por intermédio do instinto de imitação, nele desenvolvido em alto grau – a linguagem.
Há quem pondere que a origem da linguagem se encontra na onomatopeia. Talvez, no princípio, o Homem se utilizasse dela para a formação de termos que significassem gritos, gestos e os fenômenos da natureza. Com o evolver das ideias, surgiu a
linguagem metafísica para a tradução dos sentimentos e dos pensamentos que provêm do "eu" quando o espírito influi no físico e vice-versa. A metáfora distingue-se como elemento de valor na origem da linguagem ao lado do instinto de imitação que não
é absoluto.
A escrita, como a linguagem, foi imitativa, de que ainda há provas no idioma chinês. O ritmo desempenhou importante papel nas línguas primitivas, tal como para a criança que sente prazer na cantilena com que a adormecem, quando a embalam, e também
entre os selvagens que, com batuques, bumbos, tambores, acompanham as suas danças características.
Pelas primeiras manifestações da linguagem, da escrita imitativa, do ritmo, conclui-se que a Arte vem desde o berço da humanidade, como efeito da sua atividade cerebral, afastando-se a hipótese de que seja privilégio dos povos civilizados. A
poesia, ou antes a linguagem poética, foi a inicial manifestação artística, o que se prova pelos Vedas, Ilíada, Odisseia, Salmos etc.
A arte vivia latente nos povos pré-históricos. Com o decorrer dos séculos amoldou-se e manifestou-se soberbamente nas civilizações da Grécia e da Idade Média. O homem desse período longínquo tinha duas formas de expressão: o grito e o gesto. Por
eles formou a linguagem mímica, acompanhada da escrita por imagens. Assim traduziam ainda que imperfeitamente, ideias e sentimentos. Com a simplificação das imagens, apareceram os hieróglifos, tão difíceis de se compreenderem. Por esse tão
imperfeito sistema de comunicação da palavra escrita ou falada, supõe-se que o homem das cavernas, de inteligência rudimentar, não podia dizer tudo aquilo que pensava, a não saer por analogia.
Com o desenvolvimento paulatino das civilizações, aclarou-se o sistema expressivo, pelo qual se avalia o caminho decorrido, durante o qual se aperfeiçoou o sistema das imagens em sinais convencionais que, constituindo os sons fonéticos do alfabeto,
deu origem aos idiomas dos povos da terra. Pela combinação do ritmo dos sons nas palavras pode-se variar o pensamento e o sentimento, até o sublime, à quintessência da linguagem, como a idealizava Martins Fontes, dizendo que a própria palavra, em
transformações multisseculares, voltaria a som, genialmente expressivo.
O homem utilizou a poesia como processo de arte inicial para exprimir a beleza que o cercava e que sentia, enquanto a prosa era empregada na conversação vulgar, e para a elocução de ideias filosóficas. Eugénio Veron, conforme ainda a opinião de
Martins Fontes, concluiu que este meio de expressão,oriunda das originais imagens e imitações, graduando a sua intrincada gama de tonalidades, despertou sensações e sentimentos que são a substância da Arte, manifestação duma emoção que se
exterioriza ou por combinação de linhas, formas ou cores, ou por série de gestos, sons, palavras, submetidas a ritmos especiais. O homem, no qual incide esta manifestação, pelas suas tendências pessoais, escolherá a arte que melhor e simpaticamente
translade sentimentos e emoções que lhe fizeram vibrar o cérebro. |