II – CAVALEIRO DA ARTE
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Olavo Bilac orientou a cultura literária de Martins Fontes, como Alberto de Oliveira ensinou a Bilac fazer versos. Martins Fontes conheceu
a Olavo Bilac no dia três de janeiro de 1901, às quatorze horas, na Confeitaria Colombo, quando chegava ao Rio de Janeiro com o pai, dr. Silvério Fontes, para se internar no colégio Alfredo Gomes.
Na companhia de amigos, ambos esperavam o grande Poeta. Martins Fontes tremeu vendo entrar Olavo Bilac na Colombo, elegantíssimo, vestido de cinzento, com uma flor exótica na botoeira da lapela, com polainas brancas sobre sapatos de verniz.
Saudou-o com louvores e lágrimas nos olhos.
Alguns dias depois, visitou-o em casa. Olavo Bilac suspendeu de escrever uma crônica domingueira e ouviu de Martins Fontes os sonhos de arte e os primeiros versos que ele compunha para um livro que fora elaborado muito cedo, aos treze anos. Então,
Martins Fontes, pormenorizadamente, como o faria depois com outros poetas da época, falou sobre todos os temas do livro que germinou, floresceu, frutificou no seu espírito em plena primavera, e que se chamaria "Verão".
Olavo Bilac ouviu, carinhoso e amável, os versos de Martins Fontes, que os disse ora em calmas e suaves harmonias, ora em ribombos de trovões e gritos pavorosos de cavalgadas alucinantes. Todo esse berreiro amedrontara a vizinhança. Olavo Bilac,
deslumbrado com semelhante precocidade, de repente, disse-lhe:
- O que eu mais admiro é a sua forma. Perfeita! Magistral!
Bastaram a Martins Fontes estas palavras que, na boca de Olavo Bilac, eram uma bênção, quase uma consagração. Martins Fontes confessou que nenhum beijo de amor, durante a vida inteira, lhe foi mais grato, atendendo-se a que, naquele tempo, havia a
monomania da forma, e era Bilac que o louvava.
Martins Fontes recordava, emocionado, este lindo episódio da sua vida de artista. Ele, desde então, se tornou companheiro inseparável de Bilac. Andavam sempre juntos. Saraus literários, conferências, passeatas pelos arredores pitorescos do Rio de
Janeiro, viagens à Europa, peregrinações de arte em Paria, colaboração de poesias e de palestras – eram feitas, em conjunto, por Olavo Bilac e Martins Fontes. Em poucos anos de convívio fraternal, em plena identidade de caracteres, Martins Fontes
foi considerado discípulo predileto de Olavo Bilac. Este adorava aquele que o idolatrava.
Olavo Bilac era consagrado príncipe dos poetas brasileiros e usufruía muito prestígio nas rodas sociais e literárias do Brasil quando, na mesma ocasião, se venerava ao barão do Rio Branco e se aplaudia a Rui Barbosa. As pilhérias famosas de Olavo
Bilac corriam a terra carioca através da imprensa e da boca dos seus admiradores. Os improvisos eram aparados pelos ouvidos atentos dos amigos que os guardavam em álbuns.
Olavo Bilac foi um poeta perfeito, do lirismo ao humorismo. Estreou aos vinte e um anos com um livro de poesias cheias de graça, variedade, harmonia, serenidade, correção, impecabilidade, escrevendo a língua portuguesa como insigne mestre e
metrificando primorosamente, quando o Brasil sofria transformações políticas sob o domínio da escravidão, e vivia em ambiente asfixiante, pestilencial, de mentalidade tacanha e grosseira.
Olavo Bilac era gago, em criança. Para corrigir esse defeito, lia, em voz alta, durante horas seguidas, os clássicos portugueses, à janela da água-furtada dum sobrado na Rua do Ouvidor. Esse exercício contribuiu para adquirir incomparável voz,
quente, rica, veludínea, orquestrando musicalidades nunca ouvidas no idioma português, em idioma algum, como a classificou Martins Fontes. Parecia gráfica a impressão auditiva: notavam-se – dois pontos, agora vírgula, agora reticências. Nunca houve
na terra voz igual à de Bilac.
Martins Fontes, com frequência, ouvia cantar um bom tenor, ótimos barítonos, baixos pungentes, mas voz de recitador é muito mais rara, muito mais difícil. Em São Paulo, no Teatro Municipal, uma noite, Martins Fontes não se conteve: embriagado pela
música da voz de Olavo Bilac, pediu à assistência que, de geração em geração, transmitisse a lembrança daquela hora divina em que Bilac falava, e tínhamos a incomparável felicidade de ouvir cantar na língua portuguesa aquela voz do céu.
Em consequência, a musicalidade, o modo de dizer, a dicção, o gesto, a sobriedade, a elegância – e esta é a palavra precisa -, tornaram Olavo Bilac o maior dos conferencistas. Havia tiques no falar de Bilac, sons pessoais inesquecíveis, silabações,
aglutinações, cicios cariocas que dão animação às palavras, sentindo-as sorrir, cantar, fulgir deslumbradoramente.
Júlio Dantas recebeu a mesma impressão quando, em 1912, pela primeira vez, apertou a mão do príncipe dos poetas brasileiros, na antecâmara, adornada de painéis do fim do século XVII, da Academia das Ciências, onde o receberam em magna e memorável
sessão, saudando-o o grande poeta Guerra Junqueira.
Olavo Bilac, aparentando juventude, sem cabelos brancos, porque os pintava, pela figura esbelta, pelo seu ar distinto e a sua elegância ao mesmo tempo irônica e triste, vestindo irrepreensível casaca com uma flor vermelha, ou talvez uma orquídea,
na lapela, à direita do presidente da Academia, o poeta Coelho de Carvalho, leu na sala das sessões o seu monumental discurso "em que, exaltando as nobres tradições daquela casa já secular, preconizava uma mais íntima aproximação das duas Academias
na obra de defesa e de aperfeiçoamento da língua portuguesa, glória e patrimônio comum".
Mas o que mais encantou a Júlio Dantas e a todos que ouviram a Olavo Bilac, naquela noite, "não foi tanto o discurso; foi a maneira por que Bilac o leu; foi a musicalidade da sua voz; foi a sua dicção impecável, rica de inflexões, variada de
ritmos, sóbria de gestos e de atitudes; foi, enfim, tudo quanto naquele homem singular – espiritualmente um ateniense – havia de harmonia, de equilíbrio, de elegância e de graça".
Foi Olavo Bilac, conforme testemunho de Martins Fontes, quem, pela primeira vez, deslumbrou o público brasileiro com o primor da arte de bem dizer. Veio até nós a fama de Castro Alves, nos comícios
abolicionistas, nos teatros românticos, eco imortal, mas apenas lembrança longínqua e vaga. Foi Olavo Bilac, o divino Olavo Bilac, quem transformou em agradável e delicioso deleite a arte de dizer versos.
Martins Fontes, como filho espiritual de Olavo Bilac, seguindo o mestre, considerava-se apenas um reflexo, mas esta glória lhe bastava, porque o seu amor seria sempre a sua sombra.
Bilac embelezou o Rio de Janeiro, influiu nos costumes, foi duca, signore, maestro. Bilac era mimado. Passava nas ruas entre louvores e aplausos, amado das crianças e dos velhos, adorado pelas mulheres, comovendo os moços. Vinham de todos os
extremos do país, e mesmo do estrangeiro, moços ardentes, lindas raparigas, almas em flor que sonhavam com o Rio de Janeiro para ver a Olavo Bilac. Só Castro Alves dispôs deste renome.
Bilac era a Graça. Gentil-homem, elegante, vitorioso, fez-se o protetor de todos os poetas humildes, e pela Piedade chegou à Perfeição. Procurou manter impecável a sua vida individual, para assim nobilitar a sua classe, honrar a Poesia, defender
com as asas seus irmãos repudiados. Com Vigny, foi ele, entre nós, o advogado dos seus companheiros, o dignificador dos Poetas.
Martins Fontes observava-o na intimidade, em casa, onde Bilac nunca estava sem fazer nada, tal era a atividade do seu espírito, a disciplina a que se submeteu, por ser de fato trabalhador infatigável. Bilac sempre arranjava, quando não escrevia nem
lia, meio de mudar penas, apontar lápis, cortar papel, endireitar livros, arrumar objetos, limpar quadros. Desde cedo, por ser madrugador jovial, como um pássaro, sempre o viu ocupado.
De manhã, às primeiras horas, Martins Fontes ia encontrá-lo barbeado, lavadíssimo, vestido com gosto, de sapatos brancos, ou de escarpins, meias de seda clara, calça de flanela, paletó de fantasia à inglesa, camisa mole e gravata à La Vallière,
sentado à mesa de trabalho, com todo o escritório arrumado, a escrever os seus folhetins e crônicas para jornais e revistas, enfim, uma das suas páginas de renda e ouro fino.
Mas, para fazer versos, tudo mudava. Bilac, altas horas da noite, em segredo profundo, no silêncio estrelado, como o próprio céu, gerava, criava, transfigurava a língua portuguesa. Filigranou, nesses momentos de sublime gestação, as poesias de
Panóplias, Via Láctea, Sarças de Fogo, Alma Inquieta, As Viagens, o Caçador de Esmeraldas e Tarde.
Martins Fontes admirava em Olavo Bilac o patriota e o educador. Olavo Bilac adorava o Brasil, o qual, como disse o Mestre, mais do que nunca precisava do amor de quantos o habitam, nele nascidos ou por ele acolhidos, irmanados todos pela vontade de
servi-lo e engrandecê-lo. Olavo Bilac acreditava ardentemente no valor do trabalho humano, na força criadora da inteligência, no poder infinito da bondade e na grandeza do futuro da nossa nacionalidade.
Olavo Bilac considerava como verdadeiro patriotismo um amor elevado e austero, que reconhece os defeitos da Pátria – não para amaldiçoá-los ou para rir deles, mas para perdoá-los, estudá-los e corrigi-los; um amor que se enraíza mais no meio moral
do que no meio físico, e vai procurar a sua seiva nutritiva no âmago longínquo do passado, no sacrossanto humo das origens da raça, da língua, da história, e no padecimento obscuro, apagado, anônimo das relações que antes das nossa viveram, suaram
e penaram na terra que servimos e adoramos.
Olavo Bilac mantinha com Martins Fontes palestras inúmeras sobre o destino e a situação financeira do Brasil, temendo e sofrendo pelo seu futuro. Ele aconselhava que todos os brasileiros deixassem após si um trabalho de arte que deliciasse algumas
almas; um progresso científico que melhorasse as condições da humanidade, uma tentativa em bem da paz e da ventura da espécie, ou, ao menos, um consolo dado ao infortúnio geral, uma boa ação anônima e desinteressada, uma só palavra de amor e de
piedade que mantivesse o entusiasmo e a esperança dos seus semelhantes.
Foi essa paixão ao Brasil, esse receio de clarividente que, em consequência imediata, levou Bilac a criar o escoteirismo entre nós, a fundar a Liga da Defesa Nacional, tendo trocado as primeiras ideias com Martins Fontes.
Olavo Bilac foi um grande educador, um dos mais nobres títulos, um dos florões mais belos do seu brasão heroico, paladino de múltiplas cruzadas. Escreveu trinta livros para uso das escolas brasileiras, com imensa habilidade e perícia, livros únicos
no gênero, porque é dificílima a literatura infantil, da qual ele foi o real fundador no Brasil. Rendilhou comédias, contos, histórias, poesias, ensaios, obras primas de puro amor, de comovente ternura, de carinho à infância, numa pobre terra que
nem editores tinha, nada possuía de regular, paciente e complexo trabalho que foi feito ao alcance das inteligências infantis, mas em forma escorreita, trasladado em vernáculo, em prosa de ouro, em versos modelares.
O fim da educação, segundo Olavo Bilac, não é preparar eruditos frios, nem sábios secos, nem ideólogos impassíveis, indiferentes às lutas sociais; é preparar homens de pensamento e ação, a um tempo compassivos e enérgicos, corajosos e hábeis,
capazes de empregar valiosamente em proveito da coletividade todas as forças vivas da sua alma e todo o arsenal de conhecimentos de que os apercebeu o estudo.
Olavo Bilac e Martins Fontes foram sócios num grande negócio comercial, a Agência Americana. Juntos, montaram, nas praças de Paris, Londres, Hamburgo, Havre, Nova York, o serviço de propaganda dos produtos do Brasil, com informações diárias sobre
cotações dos mercados, principalmente na parte referente às compras de café. Olavo Bilac fez a execução desse plano gigantesco, num serviço rápido, exato, minucioso de informações abundantíssimas. Formou três códigos, dos quais um para serviço
particular dos agentes, em que substituía a combinação de palavras em ordem alfabética pelos termos de mitologia.
O arquivo da Agência, formado pela correspondência comercial, era todo escrito por Bilac, em francês, espanhol e português, com toda a correção, limpeza, método, clareza, inteligência, honestidade,
generosidade. E Bilac era o mais completo secretário, como provou em várias missões e na secretaria de muitas sociedades e academias literárias. Eram modelares as cartas e ofícios que escrevia quando exercia esse cargo espinhoso.
A correspondência íntima, a carta que escrevia aos amigos, essa era impagável, deliciosa, linda mesmo, contava-nos Martins Fontes, porque a letra de Bilac impressionava desde logo: legível, redonda, de talhe inconfundível, muito bonita e original,
originalíssima como tudo dele, só comparável à sua voz divina, também clara, sonora, cariciosa. Essa correspondência, Bilac a queria secreta, porque nela a gente fala à vontade, onde nos mostramos a nu, tornando-se até escandalosa.
Tanto Olavo Bilac, como Martins Fontes, na correspondência particular que trocavam, diziam tudo, absolutamente francos, sinceros com os seus amigos. Martins Fontes mostrou-me essa correspondência, cuidadosamente amarrada em pacotes e escondida no
fundo duma gaveta da sua mesa de trabalho, para ser queimada depois da sua morte. Aos próprios amigos, ele solicitava que procedessem conforme era seu desejo, da mesma forma, com a sua correspondência. E se justificava. Se tínhamos pudor de nos
despirmos no meio da rua, igualmente devíamos sentir vergonha de publicar ou de divulgar as cartas íntimas.
Com referência a Olavo Bilac, Martins Fontes pensava no trabalho encantador de reunir, em vez das cartas, tudo quanto o Mestre escreveu sobre as suas viagens e sobre Eça de Queiroz, de quem foi íntimo, e de se publicar o "Dicionário Analógico" que
redigiu durante vinte anos, ao qual Bilac chamava – Fábrica da Neurastenia.
Em Paris, durante a Grande Guerra de 1914-1918, Olavo Bilac e Martins Fontes, na qualidade de sócios da Agência Americana, viviam fraternalmente e juntos remexeram todos os lugares pitorescos, os monumentos históricos, museus, bibliotecas, casas de
poetas, filósofos e artistas, e as catedrais famosas.
Bilac tinha a paixão das catedrais. Nessa época, período final da sua nobre existência, das mais amargas da sua vida, Bilac passava os dias fastidiosos encerrado no seu escritório da Rue Gaillon a reproduzir em papelão as grandes catedrais da
França e os monumentos arquitetônicos da Europa. Martins Fontes encontrava-o recortando, colando, enxugando, ajeitando, peça a peça, os retalhos que recortava de revistas.
Todo aquele jogo de quebra-cabeça, trabalho paciente e meticuloso, enviava a um menino, na vizinhança, que ele adorava. Martins Fontes, depois de tudo pronto, carregava essas lembranças, que
alegravam o petiz quando as recebia.
De todas aquelas igrejas e monumentos, Olavo Bilac admirava a Notre Dame de Paris, apesar de livre pensador, mas artista requintado. Muitas vezes, Olavo Bilac arrastava Martins Fontes até a Catedral do Velho, como lhe chamava por costume carioca,
para se referir a Vitor Hugo. Na Catedral Hugoana, Olavo Bilac acreditava que Martins Fontes se penitenciasse das crises escarlates em Montmartre, passando aí momentos de purificação, com o mesmo intuito com que os positivistas vão ao Père-Lachaise,
repousar em vida, ao lado de Augusto Comte que lá repousa na morte, mais vivo que todos nós.
Mas, dos tempos da Europa, Bilac tinha predileção nítida pela Santa Capela de Luís XI. Olavo Bilac conhecia, nas suas menores minúcias, a Santa Capela, como se fosse propriedade sua. Sabia o preço dos vidrais maravilhantes, o nome dos coloristas,
as restaurações. Pois a Capela lhe foi oferecida por Martins Fontes, simbolicamente, um dia qualquer, sem determinada significação, porque eles não davam presentes em aniversários ou datas queridas; davam sempre, continuamente, pelo prazer de dar,
pela glória solar de distribuir o que possuíam. Sentados no coro da Capela, ambos riram, brincaram, praticaram crueldades chinesas, condenavam a suplícios fantásticos certos políticos brasileiros e vários jornalistas rabazes. Martins Fontes jamais
esqueceu esse momento.
Na tarde do dia 15 de maio de 1918, Martins Fontes se despedia, em Paris, no limiar da casa de Vítor Hugo, do seu amigo e companheiro Olavo Bilac que, também, mais tarde, voltava ao Brasil, velho e desalentado, deixando a França querida, cheio de
saudades porque Paris era a Terra, fora de Paris só há paisagem.
Olavo Bilac queria desaparecer como os pássaros, ignoradamente, adentrar-se pela mata e… nunca mais voltar, como Tapir que, velho e cansado de lutas, buscou a morte nos abismos da floresta onde penetrou ao anoitecer, quando o sol também pouco a
pouco se diluiu nas trevas do horizonte. Poucos dias antes de se recolher para morrer, considerado um arterioscleroso, um insuficiente, cardiorrenal, sofrendo de há muito de um extenso edema crônico do pulmão, apiedado da tristeza de Martins Fontes
que guardou na memória fidelissimamente as suas últimas palavras, Olavo Bilac lhe disse:
- Compara a minha velhice à luz de uma tarde de verão, dessas que só se veem em nosso firmamento… É uma luz que não quer morrer, uma luz que se agarra desesperadamente a tudo, e que, como os tísicos irremediavelmente condenados, loucamente se atira
ao prazer, amando e chorando, aproveitando com febre os derradeiros instantes da existência: expelida das furnas, apega-se aos vales; rechaçada das rechãs, segura-se aos píncaros das serras; espancada dos montes, pela noite que cresce, refugia-se
nas nuvens; e já a treva cobriu toda a terra, e ainda essa luz, recalcitrante e teimosa, tinge vagamente o céu todo povoado de estrelas. Eu sou assim! Somente agora me sinto capaz de amar e ser amado. Que amor pode ter à terra o arbusto que cresceu
em um ano, e ao qual um ano bastou para levar do mistério do nada à surpresa da vida? Que amor pode ter ao Amor a vida que ainda não se entendeu a si mesma? Agora é que eu sei amar, agora é que eu quero amar! Anatole France, como sempre, tem razão:
a Mocidade, como em alguns insetos, deveria ser o remate da vida… Há quem dê férias ao coração… Nem férias, nem aposentadorias! Morrerei protestando contra a velhice… Velhice… palavra mole, viscosa, como uma lagarta…
Olavo Bilac, a muito custo, entrecortado de longos silêncios, assim falou e, como se voltasse, viu que Martins Fontes estava chorando, de cabeça baixa, sem poder se dominar. Olavo Bilac, repentino, num dos seus rompantes engraçados e comuns na
intimidade de ambos, vociferou:
- Chorando? Desaforo! Sentimental ridículo! Então porque eu vou morrer, começas a chorar desde já? Levanta o moral, como dizia o Plácido, toma o teu whisky, olha que maravilha aquela estrela…
Em toda a existência gloriosa, Martins Fontes viveu destas recordações que o inspiravam. Bilac há mais de vinte e dois anos escreveu a Martins Fontes dizendo-lhe que ficou triste a pensar o dia inteiro no seu pesar quando ele morresse. Se Bilac
sofreu essa dor, não previu a saudade que Fontes tivesse e que foi profundíssima. Martins Fontes o adorava. Devia-lhe os sonhos de Arte, a amizade de Coelho Neto e a disciplina de Sully Prudhomme. As flores lhe faziam recordar Bilac e com seu nome
há uma estrela no céu.
A maior glorificação de Bilac se realizou numa festa em que se reuniram, em conclave, os discípulos do Mestre, pelo ano de 1908, no Palace Teatro, oferecendo-lhe um banquete. Consagravam-no Príncipe dos Poetas Brasileiros.
Leal de Sousa, eloquente orador, saudou-o em nome das várias gerações de literatos que ali estavam representadas desde o venerando e notável escritor Machado de Assis até o jovem e esperançoso poeta Martins Fontes, cantando e de pé, como se
rezasse, num brinde em que disse, com arrojo inocente da fé, que comparava o Poeta imenso à Guanabara em dia de sol, para lhe celebrar a altitude e a magia do gênio fulgente, inclinando-se ante Ele, tal como Lamartine a Byron, e Alfredo de Musset
ao velho Lamartine.
Martins Fontes, interpretando o pensamento das novas gerações, enalteceu a obra fecunda de Olavo Bilac, entrecortando a oração de poesias para demonstrar a sua memória fenomenal igual à do Mestre, e o valor da arte do escultor perfeito e imortal de
tantas obras primas do lirismo brasileiro; e terminou por aclamar em arrebatadoras e delirantes invocações, a Olavo Bilac, o príncipe da poesia, e a Coelho Neto, o príncipe da prosa.
Machado de Assis se levantou, saiu do lugar onde estava e se acercou de Martins Fontes. Com naturalidade, fugidio sorriso e afetuoso aperto de mão, Machado de Assis felicitou Martins Fontes, enquanto estrugiam as palmas. Nesse momento, Martins
Fontes sentira sobre a cabeça o peso descomunal dum ato injusto de que nunca se esquecera, contra a velhice gloriosa do romancista vivo da mais velha geração literária do Brasil, que findaria a existência poucos meses depois, levando para o túmulo,
como um avarento, o segredo da sua arte.
Aníbal Teófilo de Ladislao y Silva de Figueiredo y Melo de Giron de Tôrres y Espinosa (comprido nome que Martins Fontes me repetia sempre ao lembrar-se de famosos cavaleiros andantes, de audazes guerreiros e trovadores enamorados da idade Média) –
seguiu as tradições da sua ilustre família, Tôrres y Espinosa, banida de Espanha após um levante carlista, e as suas próprias tendências: assentou praça como cadete, matriculando-se na Escola Militar do Ceará; participou da Revolta da Armada em
setembro de 1893 e de toda a campanha de Canudos; possuía temperamento cavalheiresco e gênio de artista, templário do Ideal e servidor da Beleza. |