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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-11)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 102 a 107):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

11

Martins Fontes, apesar da multidão, das suas ideias universais, nunca olvidou a sua terra, o Brasil, compondo poemas laudatórios que considero arrebatadoras sinfonias. Ninguém melhor que Martins Fontes poderia escrever sobre o Rio de Janeiro e a Guanabara. São raros os que conheciam, como ele, os mistérios insondáveis da cidade carioca. E dizia que a delimitação dos Estados no Brasil se fez por leis natuais, sendo o mais belo o Estado do Rio, onde a alvorada é cor-de-rosa e o mel dos canaviais amolenta os cidadãos fluminenses.

Se é crível que exista afinidade entre a esplendência dum ser e a fulgurância duma cidade, se alguém pode ser a pintura da Beleza, do Amor, da Alegria, ou se transfigurar em flor da Terra, se o indivíduo pela magia pode condensar a força e a energia dum povo, Martins Fontes, na incandescência da paixão, supunha que era a Guanabara e o Rio de Janeiro, relumbrando.

Nesta cidade, viveu o poeta os anos da mocidade quando estudava Medicina, em que se formou; foi companheiro de estudos e de boemia dos intelectuais daquela época, a qual se pode considerar a renascença da literatura brasileira que teve Carlos Alves como precursor genial.

Amar a Cidade Serpente, beijar-lhe a carne em flor, ser tudo quanto ela contém desde a concha da praia à palmeira da serra! Quando surgia a aurora, Martins Fontes queria aglomerar tudo o que o céu exibe, ou sorver-lhe o ouro ou desfazer-se em luz. A claridade do Rio se desprende do céu, em chuva. Vulcaniza-se e rebrilha tudo. O sol restruge. Sente-se a energia criadora ascender, fremindo, até o florescimento. A ideia da mulher surge em suas formas de ventres, seios, ombros, quadris, a tremerem, em anseios.

Prova-se, no vento, o calor dos cajus e cajás nos vergéis do Rio. Tudo se obscurece ante a glória a esplender, no radiecer vulcânico, como ouro e profusão, onde não há penumbras. A Terra rutila em apoteose de alegria. A vida canta, corusca, ensolarando o Rio florido, que fulgura ensanguentado, ao escarlate da luz do sol que rasga a imensidade.

Depois o apogeu do meio dia, cheio de cores, sons, festa de carnaval. O sol deslumbra e reflameja. Chove luz. Parece o Brasil entre explosões radiosas. Depois a tarde em que tudo delira e fulge.

Nesses momentos, Martins Fontes pedia ao sol que o incinerasse. Em seu último adeus, o bendiria e lhe beijaria a luz ao reduzi-lo a poeira.

Ele, livre das impurezas da sepultura, não seria Lázaro nem Jó. Não queria ficar sozinho, e até na morte queria que o sol o acompanhasse. Assim, ofereceu-lhe o coração para, chamejando, mudar-se em ouro e reproduzir a combustão dum ocaso vermelho de verão no Rio de Janeiro.

Em tão infernal fantasmagoria e estridência, a lascívia faz que a boca das Cavernas se abra fulva. E a Cidade Fantástica, bêbada, a sambar, se espelha em milhões de fachadas luminosas.

No Rio, o ardor da luz incita e não tem culpa de quem se embebeda de amor ao saborear o cheiro daquele harém. A luz auritremula e se introduz pela epiderme e nos torna a alma translúcida, refletindo o coração de toda a gente. Somente o amor traduziria o fanatismo de Martins Fontes pelo Rio de Janeiro, que ele adorava como se adora a uma mulher. Ele sentia efluir do jasmineiro o seu perfume de sassafraz e vetiver. É como rosa escarlate o cravo sangrento que sorrisse ao sol.

Como ele desejava, ao morrer, ficar sepultado nessa terra e, depois da mutação da matéria, ser esse aroma que excitará outros e encerra a juventude! Esse aroma que anda no ar, dissolvido no éter, feito fogo, a que chamam cariocinina! Quem o aspira uma vez nunca o esquece e vive longe da terra carioca torturado de saudades.

O Rio de Janeiro, visto de hidroavião, a mil metros de altura, reflama como braseiro, ao sol. Guanabara, pelas tubas da luz, conclama os poetas titãs sobre os montes íngremes. Se a vida no céu é igual à da terra, através de outros mundos, nunca haverá outro que se compare a este abismo fantástico – o Rio de Janeiro.

Segue-se a noite verde, sob o luar mágico. E o Rio de Janeiro clangoreja. Numa noite assim, Martins Fontes ouviu cantar uma canção amorosa, sentiu o verbo criador, compreendeu o que quer dizer "amor" e qual a causa por que a terra carioca vive a cantar. O cheiro dos pomos tropicais das montanhas no Rio de Janeiro tem fragrâncias acidulosas. Na aragem há maciezas de pelos e penugens, e saboreiam-se os frutos através da pele com a sensação de mastigar jasmins e magnólias,num torpor de moleza e molícia. Entre os refolhos de aventais, uns olhos luzem como vagalumes e falenas. Tudo se esvai e se alquebra entre cicios e cochichos.

Súbito, estranha figura irradia na mata, e branca e bela sobe, rebrilha. Uns chamam-lhe Mãe d'Água, outros Uiara, outros a Lua. O luar em Copacabana, no Ipanema ou no Leblon, é superior à música humana que tenha o condão de inspirar. Parece um repuxo de neve, como chuva de prata, suspenso no ar. Dá a ilusão de ver milhões de pombas voando. A luz possui o poder de se esvair e renascer das cinzas. A areia ferve e rebrilha. O albor do luar retém a ardência do oceano e não há miragem mortal que o sugira. Entre névoas, amontoam-se travesseiros e desdobram-se lençóis fofos onde espáduas, colos, braços e quadris arfam, fluem na bruma. No seu silêncio não há mortes, nem mistérios, nem lembranças de além túmulo, mas vida, ardente, sonhadora, amorosa, em todo o seu esplendor. A beleza que aureola a criação doureja o Ipanema, em noite estival.

Ao luar, sente-se o beijo cantar. A sua luz nos incita à volúpia e nos induz à dormência, lavra na areia do Leblon versos de amor, romances sem palavras, sonatas mudas.

Quando a saudade apertava, Martins Fontes, durante horas e horas, relembrava-se dos pregões do Rio, dos vendedores de tangerina, melancia, pinha, pitanga, manga-rosa, abacate e laranja; daquele doce de figo em calda, que ele e Olavo Bilac comeram numa fazenda, e que expressava a finura das transições de elegância, feita por mão de santa; daquela orquídea Alba-Plana do Amazonas que viu na Tijuca, à tarde, ostentando no alto, em sua palidez, a angelical beleza das mulheres, tal como flor polar, palente e pura, que lunária concentra o sol e pela raridade se assemelha aos diamantes orientais.

As fontes luminosas do Rio endoideciam Martins Fontes, que as via transporem o azul em constantes mutações. As florações líquidas surtem em mil cambiantes, desprendem-se em pérolas e rosas, renovam-se em lírios e diamantes.

As fontes simbolizam o Ideal, sem repouso, entre surtos e assaltos, ora vencendo a altura, ora rolando de asas partidas.

O Poeta louvava também os rapazes do Rio, de sangue indígena, que remavam sem temer o vento, a chuva, a névoa, o frio, rasgando o oceano, em cujo exercício duplicavam a força da juventude, com alegria de viver de modo ardente. E vinha a recordação da Ilha de Paquetá, a ilha encantada que sempre vira, em sonhos, onde nasceu a sua avó d. Josefina Olímpia Aguiar de Andrade, e onde tudo quanto ali se sepulta ressuscita entre explosões flamantes; e da festa da padroeira, a quinze de agosto, no Rio, sobre a colina, perto do mar, na capela branca, onde o poviléu se ajoelha e reza à Senhora do Bom Jardim, os sinos dobram e repicam.

Depois a adorada Rua Gonçalves Dias, como tantas outras, velho corredor das famosas confeitarias que começa no Mercado das Flores,, Praça do Supremo Artista – Bilac – e termina, entre cantigas de pássaros, na Carioca, próxima à Confeitaria Colombo.

E os dias de Carnaval, nessas ruas, deram a Martins Fontes a inspiração para descrever esses dias de loucura, atingindo ao mais alto da técnica do verso, com a reprodução exata de todos os exageros da folia no Rio de Janeiro. Com palavras ricas e sonorosas, pinta-nos aquela grande loucura da alegria brasileira. Durante quatro noites e três dias, a enorme cidade, metrópole moderna, completamente embriagada, canta, berra, estrebucha, silva, revoluteia, dança, tresvaria, por dezenas de bairros. E desfilavam os cortejos, a massa popular pelas ruas, avenidas, num absoluto delírio…

As grutas são ouvidos da Terra. Dentro das suas amplidões, rugem vozes, retroam paixões, retumbam lutas. Martins Fontes, junto à Orela das Furnas, exclamou o que sentia à caverna profunda e soturna: - Ó Guanabara, eu te amo! E ouviu pulsar o ceu coração no coração da Terra.

Martins Fontes interpretou, em versos de primoroso lavor, a poesia dos formosos arrabaldes do Rio de Janeiro. A Baía Guanabara será sempre o motivo de exaltação dos poetas e dos artistas. O contorno, quase circular, da baía, os morros circundantes, a vegetação compacta das florestas, o alinhamento dos jardins arborizados, formam os elementos daquela paisagem, onde há fulgores tropicais e que se assemelha à cálida pintura da terra em flor, encandecendo e trescalando ao sol.

Quem, aos vinte anos, viu a Guanabara, sob a pujança de todas as suas riquezas pinturescas – cores variegadas, luz intensa, perfumes capitosos – jamais a esquecerá. Como filtro mágico, dominará o felizardo durante a vida inteira; obrigá-lo-á a proclamar, a cada instante e sob qualquer motivo, em diálogo ou monólogo, os seus encantos eternos. A tortura da saudade transformá-lo-á num poeta lírico, contemplativo e ao mesmo tempo ardoroso, apaixonado.

Martins Fontes adorava as mil chácaras ensombradas de frondes gigantescas na Guanabara, onde viveram, como fidalgos, nossos ancestrais. Apraz ver do Sumará, as brenhas de ingás, cajazeiros, palmeirais, coqueirais, grumixameiras que se abrigam no sopé dos montes.

Ao meio dia, o sol transforma o arvoredo em rútila estampa de metal, e o seu calor tropical de quarenta graus estonteia como no Amazonas, causando febres e delírios. O ar revibra e os arredores se emolduram a vermelho. A natureza, voracíssima, mistura exalos dos fermentos de amoras e manacá, murta e ananás, das frutas e das flores.

Da Gávea a São Cristóvão e ao Morro do Vintém, há surpresas incontáveis. A paisagem, dos cumes às campinas, é a mesma. Duzentas chácaras vão de Vila Isabel às corcundas da montanha Andaraí. Do Jockey Club ao Conde de Bonfim, desdobram-se, em profusão, cambucazeiros, laranjais, ilhotas e moitas. Estas chácaras à noite e ao luar deslumbram. Nas residências senhoriais, acende-se o candelabro para o serão, alumiando o lar e zelando as chácaras adormecidas.

Outrora, eram alegres. Em muitas, realizavam-se bailes. Tornaram-se famosos os bailes na Fazenda da Samangolê. Em seges, cadeirinhas, carruagens a quatro cavalos, vinham senhoras e trunfas e anquinhas. Ao longe, ouvia-se a orquestra. Os negros dançavam o cateretê nos terreiros. Balões, lanternas, fogueiras, como era costume nas fazendas em dias de festa, espalhavam clarões e penumbras, à cuja luz todos folgavam. Em longas mesas surdiam manjares profusos e imensos, quitutes, petiscos. Cantavam, dançavam até que despontasse a madrugada. E a festa se acabava.

E vamos subindo os morros, serras e montanhas que cercam o Rio de Janeiro, com amor todo maternal, afetuoso. O Corcovado, ao crepúsculo, ergue o vulto na selva, multiplicando em milhões de verdores, desde o verde amarelo ao verde azulado, cuja amplitude se compara ao sonho, coruscando no espaço sobre o alantil.

O céu da América reverdeja, se oxida, se azinhavra ao abrolhar dos frutos, e evoca, tal amplidão, uma epopeia numa palavra – Brasil.

Descortina-se maravilhoso espetáculos das alturas, vendo-se ora as várzeas de Campos, ora o Rio de Janeiro dentro da moldura fantástica, fulgurando como tesouro mágico. Se alguém nessas alturas, à noite, erguesse o braço, apanharia com a mão astros e estrelas, como se fossem flores. No alto do "Dedo de Deus" sente-se a impressão do infinito da eternidade por sobre a ossatura das montanhas.

Sob o temporal, a serra atroa e restruge. O raio rasga a treva, em arabescos. Ouvem-se soluços. Pretos possessos choram sobre os teclados da Serra dos Órgãos que gemem.

Ao amanhecer, na bonança, poder-se-ia ver do cume do Pão de Açúcar um halo ou arco-íris, desde a Gamboa ao mar. Era fantástico ver-se a Via Láctea duma ponte curva, com sete clarões, a encender-se no infinito.

A tão sublime panorama, desde as culminâncias das montanhas às planuras da Guanabara em lucipotência, compara-se Castro Alves em quem os nossos maiores poetas se inspiraram para compor a orquestração vocabular e as retumbantes sonoridades que traduziriam ideias vibradoras, emocionantes, onde se glorificaram estes protofonistas e intérpretes da grandeza florestal do Brasil.

Martins Fontes, ao evocar o genial Castro Alves, estupendamente brasileiro, estrugia e se alvoroçava, esboçava esta figura gigantesca, exaltava-a quanto podia como poeta único. Martins Fontes queria que o nome de Castro Alves fosse dado a um píncaro no Rio de Janeiro ou à Montanha, ou a uma floresta, erguendo-se o seu museu numa gruta das nossas matas. Somente na selva, ouvindo-se cascatas, devem construir a Castro Alves um templo.