I – CAVALEIRO DO AMOR
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À vista das terras do Brasil, Martins Fontes imaginava-as sintetizadas na figura de linda mulher, Marabá, vestida de amarelo e verde, em
que predominava o verde tropical, assistindo a um baile de gala. Nesse baile estavam representadas todas as nações. Era na época do progresso, da liberdade e da ordem, a civilização no auge, a sociocracia. Ali as nações se confraternizavam ao som
dos hinos. No centro da sala apareceram quatro mulheres belas representando a Itália, a França, a Espanha e Portugal. No meio delas estava o Brasil, simbolizado em Marabá.
O Poeta se apaixonou por Marabá porque era a imagem do seu sonho, e ele o troveiro que ela sonhava. Ela era o tipo da brasileira morena que, talvez noutra existência, tivesse amado. Possui ardência a atração, o brilho da pele e os olhos negros
diabólicos. Dela vem, no ar, certo enfeitiçamento que há nos pomares e nos palmeirais da selva. E a carne tem a rigidez e o aroma da manga-rosa e a doçura do ananás.
Nos olhos de Marabá, o Poeta viu o Rio Amazonas com a sua paisagem grandiosa. Depois, a seca do Nordeste e a terra cearense, ao sentir o contato da pele de Marabá. E Marabá notou a distração do Poeta e levou-o dos salões onde se dançava, aos
jardins, para recordar o passado à sombra das árvores. A brisa tocou nos cabelos de Marabá e soltaram-se perfumes da mata, quentes, macios, saborosos, oriundos das frutas e das flores brasileiras, que transportam a fantasia do poeta às florestas
das montanhas, onde as espécies zoológicas e botânicas travam lutas pela sobrevivência, onde há preciosas madeiras e resinas, flores silvestres de raro esplendor, e o rumorejar incessante dos vozeios de pássaros.
A exalação da terra do Brasil, ao sol ou ao luar, embriagava-o porque lhe sugeria a sensação agradável de fluídos feminis que se evaporam do solo. É como se ardesse em desejos a carne da terra. Ele, Poeta, sentia-se orgulhoso porque em si continha
a essência que traduzia a alma da sua terra, porque em si existia a mesma alegria, veemência, pletora, ansiedade, as mesmas escaldâncias, ardor voraz da luz, seiva estival e perturbadora, que há no Brasil – vergel desabrochado em beijos. Pátria do
amor. Marabá beijou o Cavaleiro do Amor, que se arrebatou, e fê-lo rever os tempos da adolescência, vendo em êxtase a Guanabara.
Então, o Poeta perguntou a Marabá por seus antepassados. Ela lhe contou a história da sua vida. Nasceu na selva entre as tribos dos indígenas. Sonhou em grandezas e luxos, mas sentiu quanto martírio para os escravos negros que trabalhavam para a
sua manutenção, entre os ricos.
Já moça, veio parar à cidade, "paraíso dos negros foragidos" – Jabaquara, Santos, de que descreveu as glórias e a tragédia da escravatura com o episódio do negro Simeão.
O Poeta tinha lágrimas nos olhos e lamentou o destino de Marabá na mão de maus brasileiros, quando ela possuía riquezas minerais e agrícolas, malbaratadas pelos políticos. Para estes parasitas, restava o desinfetante da Ironia. Somente os artistas
a engrandecerão.
Por fim, Marabá cantou melodias sertanejas para adormecer o Poeta e fazê-lo sonhar nas belezas da sua Terra, ou, quem sabe, num jardim velho, ou parque antigo, ao luar, em cenário de balada, mergulhado em misterioso e silencioso azul, com sonora
paisagem…
Martins Fontes, no seu culto à Virgem-Mãe, Verde Pátria, com a febre tropical, com o desejo e o fervor de quem beija a uma mulher, desejava, no momento da integração do seu corpo na terra do Brasil, incendiar-se nesse vulcão verdeal, cremar-se,
transformar-se em pó de ouro verde.
O Brasil é fúlvido rubi ou brasume de sol, é energia que significa cintilância de lâmina e da qual extravasa fogo, e o som se muda em luz; devia ser a nossa moeda a traduzir em ouro a ardência solar.
Martins Fontes amava, adorava o Brasil. Condoia-lhe vê-lo envilecido e desgovernado. Orgulhava-se da sua imponência, mas se revoltava ao lembrar-se das humilhações e dos atentados que lhe infligem os medíocres oportunistas, ofendendo, lesando,
aviltando, quando, para sua glória, devera antes ser governado por um Profeta-Artista.
Martins Fontes se ufanava da natureza do Brasil pela sua opulência e majestade. Por isso, o Brasil se destina, no continente americano, a ser ampla represa de felicidade. O ouro sai do chão em Goiás, na Baía e Mato Grosso, para inundar as arcas do
planeta. Bendita seja a Verde Pátria onde há florestas somente de fruta-pão! O Brasil é palavra mágica pela qual evocamos a terra abrasados de fé e esperança, e na qual há os sabores das nossas frutas, brasume irial, perfume das flores, enfim um
vergel que muda o ouro do sol em pó, e onde o irapuru canta ao luar.
Olavo Bilac anunciara que surgiria um poeta novo e ardente, eco da Terra, alma do povo. Martins Fontes sempre acreditou nesse gênio da raça, diante de cjo altar se posternava, esperando-o mesmo até o seu último dia.
Deixemos passar o mundo vil e asqueroso. Ele virá e viverá para cantar quanto o Brasil é grande. Apesar da sua luz, o Brasil é um país triste, dá a impressão soturna de uma perpétua sessão magna do Instituto Histórico – dizia Martins Fontes, nos
seus momentos ironizantes.
Maravilhosa manhã de sol! Dia todo de ouro! Céu de safira côncava! Tudo verde, tudo em flor! A natureza toda vestida de coloridos gaios e glaucos! O cristal do verão vibrando no éter! Luz sinfônica, em que alma do Brasil esplende e estruge! Assim
exclamaria Martins Fontes ante a paisagem brasileira ao sol, quando, a caminho do sertão, ia a cavalo, e, por efeito do fenômeno da vitrificação, via, no vale duma serra, um palácio a relampejar por ondas sangrentas, como em incêndio, cujos olhos
de fogo se dilatavam como espelhos ustórios, queimantes.
No meio da floresta, sob sol tropical, o calor era sufocante. Havia calmaria. O verde tinha cambiantes. A terra queimava e se estalava. Não se ouvia nem o bater de asas. Soprava o vento sudeste, abafadiço, do mormaço, abanando as folhas, levantando
pó. Era o vendaval da floresta. Trovejava. O céu se cobria de nuvens pardas, escuras. Relampejava. Chovia. A tempestade estrugia. Com a água, o calor da terra e da mata abrandava. Bonança. Frescura. Tudo rejuvenescia. Paira a harmonia dos sons das
águas e das aves.
A água, em caudal, despenhava-se nas cachoeiras, com troncos, folhas e ramos, ou se estagnava em leito negro e pestilento, de margens lodacentas. Parecia um lago imóvel de ébano. No entanto, essa água alimenta e dessedenta a Floresta.
Entardece. Tarde curta, clara, calmosa. Na montanha, a palmeira parece que tem as palmas incandescentes. O sol vai morrer e ainda fulge. É o fim da juventude e essa luz simboliza a saudade. O sossego é tão profundo que se ouve brotar o mato e se vê
crescer a relva.
Anoitece. A lua surge. Há cantares de pássaros. Exalam-se perfumes inebriantes e intensos da piprioca do Pará, de ervas, frutos e flores. A vegetação e caules de cipós se entrelaçam, formando barreiras espessas. Do chão, recamado de fofas plumas e
fetos, levantam-se zumbidos de insetos invisíveis. O luar, no íntimo da mata virgem, deslumbra e aterra. A onça sai do esconderijo e uiva à lua. Um corvo gigante esvoaça e se dirige ao pântano de águas negras que dorme ao luar, e onde, abrindo-se,
branqueja a vitória-régia, de que se evolam perfumes, ao lado dos nelumbos, ninfeácea do Amazonas de cor de rosa ou de asa de pavão ou escarlate, que parece berço de criança sobre as águas; e da mãe d'água que, à flor das águas, sobe desabrochada,
deslumbrando e prateando a floresta e que aparece a ondear nas enchentes.
Em segredo, as ninfeáceas vivem e morrem sem que alguém as veja na pujança da sua beleza. Assim elas se comparam a certos poetas solitários e desconhecidos.
Na negrura da mata, os vagalumes fosforejam. O Amor celebra a festa dos himeneus do pólen. Tanta magia criou a lenda, e da poesia desta se originou a fé. Nessa hora da noite luarenta e nesses sítios tenebrosos, Iara, alta, jovem, bela, vem pentear
os cabelos verdes e luminosos, significando o vigor da flora americana, sendo a musa do Brasil.
Conta a lenda que, ao sol do meio dia, sob o perfume capitoso da floresta da Amazônia, Lascívia sonha que é feiticeira com poder para se transformar em água, pássaro, plantas, árvore, fruta, borboleta, beija-flor, voltando à forma feminina, e que o
sol é seu noivo.
Ante essa maravilha florestal, o artista murmura a sua prece, comparando a imponência e a bravura da floresta à língua portuguesa, em que, pelos seus predicados de opulência verbal, os poetas cantarão a terra do Brasil.
O luar à noite, na floresta, faz sonhar os pássaros nos ramos. Tudo sorri e rebrilha. As plantas e as flores se desejam, falam e se beijam. No ar pairam rumores de rimas. O luar brasileiro, cuja luz ilude, não se sabendo se vem da lua ou da aurora,
parece alvo cortinado de núpcias sobre a terra. As estrelas cadentes se desprendem do céu. A claridade fluídica prateia as árvores. Deus fez as estrelas e as flores numa noite assim, e do que lhe restou dos astros e das rosas criou a carne das
mulheres.
A noite é o templo do pensamento. O luar tem para o amor a alvura duma bênção, e a sua alvinitência é tal que se supõe ver a conjugação, no Infinito, das oito luas dos anéis de Saturno.
Numa noite sarada de luar brasileiro, o Poeta diz versos sem pensar, ao léu, pelo espaço, encontrando rimas no som do beijo que trocou com a amante. Sentimos na música da noite, em plena floresta do Brasil ou no descampado do sertão infindo, tudo o
que a terra sente. Poderes germinais e planetários agem, em nós, sob viva efusão de energias cálidas, elétricas. Cada qual sintetiza o oceano imenso, ardendo e vibrando como vulcão.
O luar alucina o Poeta, que não sabe se é a neurose do gênio ou a combustão do instinto o que sente, mas compreende porque todos nós somos poetas no Brasil, orgulhando-nos de ver que a natureza encerra toda a glória do mundo, e sentindo que a nossa
Pátria é o seu coração.
No céu transparente, o Poeta quer pairar, embriagando-se e se deslumbrando nos aromas e na luz. Os poetas, nestas noites enlanguescentes, sobre o mar, sob o céu ou no seio da montanha, são o amor eterno e imenso que anima os amantes a se beijarem,
seja ao luar ou ao sol, num contínuo abraço, revivendo o vigor juvenil que faz antegozar a delícia da morte, confundindo no fervor da paixão a carne, como enorme flor hermafrodita.
O céu verde do Brasil inspirou a Martins Fontes as poesias de profundo sentido patriótico, de nobre amor à terra natal. Um dia, já moço, partiu, em peregrinação pela terra brasileira, pela terra verde da Pátria, e voltou cheio de visões
deslumbradoras. E as visões persistiram na mente do Poeta pelos anos afora; afeiçoaram-lhe o caráter à terra violenta, convulsionada e tórrida; e quase o metamorfosearam em tronco e raízes, enquanto a alma, num símbolo característico, era onda,
vaga, água do mar, a cuja superfície o Luar de prata passeava, deixando longo rastro tremeluzente. E a vaga, avançando para a terra verde, lambia-lhe as areias pardas das praias.
A terra lhe sugestionava a cor verde dos vegetais, e desfilavam os campos, os montes, as campinas, as várzeas, a verdejar, a verdeluzir em tons de verde-mar, verde-gaio, verde-cré de cálida e selvagem verdidão.
Perante este verdor sem rival no mundo, o Poeta, no delírio destas tonalidades verdeais, explodia em cânticos ao céu verde do Brasil. Longo tempo, em meus ouvidos, perduravam as sonoridades das poesias de evocação da terra brasileira.
Quantas vezes se me despertou a ideia de que este grande Poeta, após o vultoso labor poético em tantos versos soltos ao capricho tumultuário da imaginação, poderia enfim, no apogeu do talento e da técnica, consubstanciar as aspirações do povo
brasileiro em alentado poema nacional. Jamais o quis escrever. Justificava-se dizendo sempre que o seu temperamento irrequieto e a imaginação febricitante não lhe permitiam labores de acurada paciência ou de contínua imobilidade num gabinete de
trabalho, por maior e requintado conforto que possuísse. Preferiu cantar a sua terra em pequenos poemas dispersos, sem a unidade das epopeias, pintando em cores vivas pedaços da natureza, ou quadros da vida sertaneja.
Era o deslumbramento ante as cachoeiras da sua Pátria – Iguaçu, Sete Quedas, Paulo Afonso – que comparava aos poetas a quem o destino captou a energia para utilizá-la numa usina elétrica. Era o louvor à hospitalidade do povo nortista em seu
"copiar" ou alpendre, onde os viajantes encontram, a qualquer hora, uma rede para descansar e frutas para saciar a fome.
Subindo às montanhas, ante o horizonte, vemos surgir surpresas da Terra Verde. As campinas se alongam em chapadões desde o Serro da Estrela a Montemor. Este mar do Amazonas é o Brasil que nos deslumbra e apaixona, o país da esmeralda e do ouro em
pó.
Ao amanhecer, o ar é de cristal, há faiscações de ouro e prata, brilhos de aurora, róseos de conchas, um fulgir de vidramento. Ao meio dia, o vendaval ruge em pompa amazônica. Nuvens lilás-cinzentas pintam o próximo temporal. Anoitece; e a treva,
esparsa pelo vento, desenovela o fumaréu.
Eis a mangueira. Tem seiva tão forte que apesar de a sangrarem, esgotando-a, se revigora incrivelmente. Martins Fontes reconheceu um pouco que era como a mangueira, pois em cada manga se sente pulsar o coração da Terra. Os ipês, com frondes
amarelas, como chuva de ouro parada no ar, simbolizam o Brasil onde é tão fácil encontrar ouro. Na sua copa, alta ea florida, no sertão profundo, fulge a generosidade que espalha ouro do pão a todos em todo o mundo.
As palmeiras do Mangue são irmãs gêmeas das palmeiras da Rua Paissandu, no Rio. Elas fazem pensar nos colunários de ouro do Peru. Pindoretama canta e fulgura ao sol. As palmeiras, na retidão e na altura, são a imagem do Brasil. A palmeira, ao
tufão, resiste com firmeza altiva. Julgam-na mesquinha porque não dá sombra, não abriga ninhos, mas bela e orgulhosa, à margem das estradas, ostenta o porte da mulher varonil. Imaginando-a assim, Martins Fontes, na Ilha do Sol, beijou a uma
palmeira que, em setembro, cheira a carne de mulher, cujo odor entontece a quem tiver a volúpia de o provar, esquecendo-se de outros prazeres na vida.
A paineira, quando se recobre de cor-de-rosa, é linda, moça, boa, nobre, alegre. Canta, em plena mata figurando a vida. A paina rósea é tão sedosa e fina que é agradável sentir-lhe a macieza. A paineira, graciosa e gigante, esgalhando-se em redor,
subindo, lembra uma Iara. Se uma paineira, numa paisagem, é uma glória, imaginemos um bairro que se chama Paineiras – floresta cor de rosa, na qual o verde da Terra resplende.
O Bico de Papagaio, na floresta candente que trescala ao sol, varia os verdores do retinto ao verde-gaio que tem cambiantes e oleosidades de efeitos imagináveis. Tudo aquilo que fenece, renasce verdeluzindo. O verde, em ondas, se expande; em
turbilhões se desmancha; aos borbotões relumbreia. A mata, verdilustrosa, arde em flamância.
O melado do capim pinga, untuoso, peguento como açúcar em fermentação. Além desta maravilha verdeal, vê-se a maior beleza – milhares de laranjeiras, como espumas do mar, que alvejam ao sol.
Martins Fontes queria morrer e se cremar neste inferno verde, para sentir que o seu coração transfundia no infinito.
O vento passa nas cordas ou ramadas da carnaubeira e fá-la modular. Parecem violões tocando musica de choros, lundus, emboladas. Esse canto vem das raízes e se descerra em pendões farfalhosos quando a fronde musical floresce. Assim, a
árvore-orquestra sinfoniza em escalas cromáticas os motivos temáticos da Terra.
No coqueiro, em cujas palmas, como disse primorosamente o grande escritor João Luso, há uma agudíssima e incomparável sensibilidade, remexe-se a tremer e jamais respousa. Até nas calmarias do verão, dia e noite, incansável, vibram as palmas,
parecendo ter nervos e coração.
Martins Fontes louvava os coqueiros porque enfrentavam os temporais, era a fartura do selvagem e tudo neles tem serventia. Eis porque o coqueiro caracteriza a mocidade e a nação brasileira.
Os bambuais vivem tranquilos, como claustros plácidos onde o homem fatigado e inquieto encontra repouso e solidão, ouvindo os suaves bambus que tem harpas de ouro na voz e dão sombra e paz como num convento.
O velho Jequitibá, nas serranias, é o nume da Terra. A amplidão se abre à sua divindade. A homenagem do homem é sempre humilde e diminuta. A selva toda açambarca a sua força. As suas raízes se entranham. À beira do abismo, o seu soluço escoa com o
rolar pesado das cachoeiras. Enfim, para a saudade de Martins Fontes, o Jequitibá se chamaria Alberto de Oliveira, o cantor imortal da flora do Brasil.
O Poeta, quando moço, nos dias de noroeste, seguia pelas praias o Jacatirão que, na mata ou nos vergéis, poderá ser contemplado pelos artistas, tanta a beleza que irradia do seu porte e colorido, ou ia pelos campos apanhar cambucaba que tem o sabor
da manga e é rainha de todas as frutas das terras secas.
Durante uma celebração dos selvagens, no Acre, Martins Fontes bebeu, dum só trago, o Iagê. Ele adormeceu e sonhou que via a grandeza do futuro, no tempo e no espaço, em que tudo era azul, e que percorria um continente em fogo onde a Terra Virgem da
Feitiçaria se enormizava sob esplendores incríveis. E a visão se ampliava. Vieram os lagos dourados que, ocultos no seio da mata, velam os seus tesouros que ao sol esplendem e ao luar fulguram.
Vinham os rios vermelhos que galopam em busca do mar, inundam estâncias, movem engenhos, fecundam campinas, rasgam o sertão, dão de beber a tantas famílias, trabalham dia e noite sem paga nenhuma, praticam o bem cantando sempre. Mas o Rio Amazonas,
o rei dos rios, somente é belo quando sonhado, porque ao vermo-lo nos desilude. Aterra-nos a monotonia do plaino onde o imprevisto e o imponente não existem, tanto ele é grande e mau, construindo e destruindo, furiosamente. É bem melhor imaginá-lo.
O Amazonas, pelos seus delírios, representa um aspecto do inconsciente a que muitos chamam Deus.
Na sua peregrinação através do Brasil, certa vez, Martins Fontes viajava pelos sertões do Sul, e, numa tarde de inverno, em pleno campo, encontrou um cavalo domesticado, velho e cego, a beber água podre. Isso lhe causou pena porque se lembrou dos
heróis infelizes, dos reis sem trono, dos poetas elegantes na miséria, na velhice desconsolada.
Como esse cavalo é diferente do cavalo selvagem do Rio Grande do Sul, o Bagual, que investe contra o cavalo civilizado quando o encontra no caminho, obrigando-o a abandonar o cavaleiro e a seguir com os outros. Enquanto isto se passa nas campinas,
muitas vezes ao longe se ouve a canção dos vaqueiros que conduzem os carros gritando: - Eh! Boi! |