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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (10)

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O livro Indaiá, póstumo, foi editado em junho de 1937 com impressão e composição de Elvino Pocai - Rua Rodolfo Miranda, 207, S. Paulo -, com 51 páginas. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição). Indaiá é uma praia de Bertioga/SP, território antes pertencente ao município de Santos, e Martins Fontes também cita outras praias e lugares da Baixada Santista:
 


Imagem: detalhe da página 1 do livro

Indaiá

Livro póstumo

Martins Fontes


Imagem: folha de rosto da obra

OBRAS DE MARTINS FONTES

Verão

As Cidades Eternas

Volúpia

Vulcão

Rosicler

Marabá

Pastoral

Prometheu
Escarlate

O Céu Verde

Schahrazade

Arlequinada

Partida para Cythera

Boemia Galante

A Fada Bombom

A Laranjeira em Flor

O Colar Partido

O Mar, a Terra e o Céu

No Templo e na Oficina

A Flauta Encantada

Sombra, Silêncio e Sonho

Decameron

Sevilha

Granada

A Dança

Prométhée

Terras da Fantasia

Paulistânia

Nos Rosais das Estrelas

Guanabara

Nós, as Abelhas

Fantástica

Teatro

Sol das Almas

Il Fioretti

Canções do meu Vergel

Um Manifesto socialista, escrito, por Silverio Fontes, em dezembro de 1889

A Canção de Ariel

Indaiá

Tataoca - Cerâmica Paulista


ÍNDICE

Flor de Nhacatirão pág.  7
Grinalda pág.  9
Indaiá pág. 11
Sabença pág. 15
Revelações pág. 16
No Mar da Vida pág. 18
Balanço pág. 20
Vela Branca pág. 22
Trovas Praianas pág. 23
Versão pág. 27
Cantar pág. 28
Roda pág. 29
Borboletas Brancas pág. 32
Selada pág. 33
Mar-Casado pág. 35
Adorável pág. 36
Sonhando... pág. 37
Carta para o Céu pág. 39
Selvagem pág. 41
Cocoricó pág. 44
Irerê pág. 45
Água da Fonte pág. 46
Enfim! pág. 48
 


Imagem: foto do poeta incluída no livro


Flor de Nhacatirão

 

Relendo o Diário - Ilha do Bom Abrigo,

Evocando meus tempos de garoto,

Esta flor ofereço ao nobre amigo

Este beijo consagro a Heitor Peixoto.

 


Grinalda

 

Vinte rosas ou poemas,

Nesta canção haverá

Tantas quantas são os dias

Que passaste no Indaiá.

 


Indaiá

 

Não se te apague da memória

Peço-te, flor,

O ingênuo sonho, a doce história

Do nosso amor.

 

Juro que nunca, em toda a vida,

A esquecerei.

Foste a mais bela e a mais querida

Mulher que amei.

 

Lembras-te? Dentre pitangueiras,

Dentre araçás,

Roseiras bravas e murteiras,

E manacás,

 

O nosso rancho se escondia,

Sobre o jundu,

Na ensolarada calmaria

Do Indaiaçú.

 

Ao longe, a praia, ampla e discreta,

Branca também.

Pelo mistério da hora quieta,

Ninguém, ninguém.

 

Tudo encantava a nossa vista,

Com o claro tom

Tudo tão simples, tão santista,

Isto é, tão bom!

 

De légua em légua, umas canoas,

Sob os sapés,

Tendo, nas popas e nas proas,

Os picarés.

 

De malhas finas e compridas,

Em aranhol,

Redes de arrasto, distendidas,

Secando ao sol.

 

Bancos de pedra... Dos dois lados,

Frescos frutais,

Cheios de jambos perfumados,

E sem rivais.

 

Era abundante, nas encostas,

O cambucá.

E abios de que tanto gostas,

Só no Indaiá!

 

Coberta de hera, no caminho,

Jardim-vergel,

O nosso pouso, o nosso ninho

Caramanchel.

 

Sonhava a nossa intimidade,

Florindo, então!

Ah! que lembrança, ai, que saudade

No coração!

 

Foi nesta enseada predileta

Cheia de ingá,

Que um pescador, um grande poeta

Fez o Indaiá.

 

Gratos, recordas-te? - em surdina,

líamos, flor,

Essa encantante e feminina

Rosa de Amor!

 

E repousavas nos meus braços,

Quase a dormir...

E me faziam teus cansaços

Sempre sorrir...

 

Nada turbava a doce calma

Desse arrdor,

Que era, por nunca haver viv'alma,

Ainda melhor.

 

Semeando estrelas pela areia,

Vidrilhos no ar,

Balão aceso, a lua cheia

Prateava o mar

 

Ó luar das nossas madrugadas,

Dizei, dizei,

Aos noivos, como às namoradas,

Quanto eu chorei!

 

E tu partiste, e tu partiste,

Tudo findou.

Um remador bondoso e triste

É o que hoje sou.

 

Só vinte dias tu ficaste

Comigo aqui,

Porém, depois que te ausentaste,

Não mais te vi.

 

Desencantado, ou sem engano

Consolador,

As horas passo olhando o oceano:
Contemplo a dor.


Sabença

 

Cambeva, índio sagaz, meu sábio amigo,

Vou partir, vou-me embora, e desejava

Que até Santos também fosses comigo,

Ver São Paulo do Pico da Itupava.

 

Nem podes calcular quanto progresso

Existe na opulência da cidade,

Quanta realização, quanto sucesso

Há por efeito da eletricidade!

 

E descrevi-lhe o rádio, a telefonia,

A televisio, o raio X, o diabo,

Coisas feitas por artes do demônio,

E que da paz do espírito dão cabo.

 

Do automóvel falei por tempo infindo,

Enumerei prodígios, contei tudo!

E ele ia aquela preleção ouvindo,

Compenetrado, porém sempre mudo.

 

Respondeu-me, por fim, tímido e tosco,

Mas do modo mais lúcido e imprevisto!

- Não vou... E fique aqui você conosco,

Onde, por ora, não há nada disto...


Revelações

 

Chenchem, Antonio, Januario Paes,

Será verdade que, nas ilhotas

Dos Alcatrazes, dentro das grotas,

Existem águas medicinais?

 

Minas lendárias - e que, talvez,

Não encontrassem comparativo,

Desde as que encerram mercúrio-vivo,

às que têm prata de igual jaez?

 

Que a água da Ponta do Cavernão,

E outra, a do Sino, circunvizinha,

É muito boa, mas não cozinha,

Não serve para cozer feijão?

 

Dando-se o mesmo com o café,

Porque ela passa no algodãozinho,

Branca, branquinha, de alvor de arminho,

Que milagrosa parece até?

 

Pinga, sem nunca mudar de cor,

Escorre, limpa, do coadouro?

E respondia-me o grupo, em coro:

- Tudo isto é certo, Senhor Doutor!

 

- E isto ainda é pouco! Não há, não há

Torrão mais farto, plaga mais rica

Do que esta costa que se amplifica

Em céus abertos, ao Deus-dará!

 

Oh! que futuro fenomenal,

Que me deslumbra, que me alvoroça!

Não há riqueza que iguale a nossa:

A de São Paulo no litoral!


No Mar da Vida

 

Meus companheiros de pescaria,

Coquete, Jango, Manuel Maria,

Ai, quem me dera ter vossa fé!

Vinde vós todos em meu socorro,

Ó Quincas Lopes, ó João do Morro,

Velhos caiçaras de Itaguaré!

 

Que desespero, que contratempo!

Quem poderia supor que o tempo,

Ainda, há bem pouco, de céu azul,

Se transformasse nesse marouço,

E que eu ficasse, pelo mar grosso,

Sofrendo a fúria do vento Sul?

 

No rancho aguardam-me ansiosamente!

Mas quem diria, tão de repente,

Que o mar, tão manso, ficasse mau?

Cheio de abismos, peixes vorazes,

Ali, na Laje dos Alcatrazes,

Há muito mero, muito perau!

 

Estou perdido! Chove! A canoa,

Desarvorada, bordeja, à toa!

E eu me concentro, para rezar.

Virgem das Virgens! E, ao nome dela,

Subitamente, cessa a procela,

Todo de rosas se torna o mar!

 

E a lua aponta, cobrindo tudo

De um manto feito de ouro e veludo

Tudo aclarando com o seu candor!

E o barco, inteiro, chega à Atalaia,

E eu, são e salvo, salto na praia,

Volto à choupana do meu amor!

 

Nossa Senhora, cheia de graça,

Que a vossa bênção feliz me faça,

Me livre sempre de todo o mal,

Tornai-me simples como os pastores,

Como os barqueiros, os pescadores,

A santa gente do litoral!


Balanço

 

Ó bambuais tranquilos,

Bambuais...

Plácidos asilos

Claustrais...

 

Quanta suavidade,

Bambus,

Vossa majestade

Traduz...

 

Sem mostrar escolhas,

Viveis...

E as rendadas folhas

Moveis...

 

Tendes harpas de ouro

Na voz...

Meu balançadouro

Sois vós...

 

Como errante sombra,

Aqui,

Sobre vossa alfombra

Dormi...

 

Oh! sempre bendito

Sejais,

Graves e contritos

Bambuais...

 

Vossa fé serena,

Assim,

Também teve pena

De mim...

 

Deu-me a calma, a doce

Mudez,

Qual se um monge eu fosse

Talvez...

 

Oh! que insulamento

Me dais...

Sois o meu convento,

Bambuais...

 

E com o vosso afeto,

De Irmão,

Deste-me o completo

Perdão...

 

Em vossa concórdia

Capaz

Da misericórdia

Da paz...


Vela Branca

 

Vem singrando a Gaivota,

Balouçando, ao boléu!

Todo o mar chmalota

O rebriho do céu!

 

Mas, meu Deus, que lindeza

É a Gaivota, a singrar!

Sob a azul correnteza

Escumante do mar!

 

Já passou pela Moela,

Vai dobrando o Farol!

Todo o mar se amarela,

Na queimada do sol!

 

A água, elástica e lisa,

É uma seda, a brilhar!

E a Gaivota desliza,

Sobre o espelho do mar!

 

Nela vem Maricota,

Maricota lá vem!

gosto dessa gaivota,

Que também me quer bem...


Trovas Praianas

 

Mancha de amor verdadeiro

Não me sai mais do coração:

É como a do cajueiro,

Tal qual a do jambolão.

 

Não se apaga nunca. Às vezes,

Por si própria, esmaia a cor,

Mas no fim de doze meses,

Quando as árvores dão flor.

 

Há frutas verdes, do mato,

Muito moças, muito duras,

Que são, até no formato,

Mais doces do que as maduras.

 

Não pares na cantoria,

Não cantes, de quando em quando:

Só quem canta, todo o dia,

Canta de noite, sonhando...

 

Quem é tua namorada?

Ficas tonto e tartamudo.

Tua boca não diz nada,

Mas teus olhos dizem tudo.

 

Logo, assim que acaba a chuva,

Mal termina a chuvarada,

A folha da brejaúva

Fica toda prateada.

 

- Bem-te-vi! não viste nada.

Que descobriste, escarninho?

Vai-te embora, alma penada;

Cala a boca, passarinho.

 

- Feia... Escreveste na areia...

Feia, sim, estava escrito...

Não faz mal que eu seja feia:

Sou a feia do bonito.

 

Graguatá, de flor vermelha,

Toda de espinhos cercada:

Ao que tu és se assemelha

O amor da mulher casada.

 

A aroeira pequenina

É folhuda, pelo avesso...

Assim é muita menina,

Redondinha, que eu conheço...

 

Tens agora amores novos.

Já sei. Zangada não fico.

O chupim também põe ovos

No ninho do tico-tico.

 

A saia da Maricota

Não se lava com sabão,

Mas com jasmim, quando brota,

Ou laranjeira em botão.

 

Abaixai, curva do Outeiro,

Quero ver o Paquetá,

Quero er meu marinheiro

Nos braços de quem está.

 

Jacutinga depenada,

Tem carne, como ninguém...

Há muita moça delgada,

Que, despida, é assim também...

 

A Meriti, quando cheira,

No mês de maio do amor

Cheira a menina solteira,

Tem cheiro de moça em flor.

 

A Praia do Tombo é linda,

Não pense mecê que é prosa:

É tal qual a Nha Benvinda,

Porque é toda cor de rosa!

 

Azul, que, às vezes, ondeia,

Azul, tirante a lilá,

Em noites de lua cheia,

Fica a Praia do Indaiá!

 

Indaiá, dos meus amores,

Querida praia deserta,

Toda coberta de flores,

Toda de ninhos coberta!

 

Foi aqui, neste retiro,

Que, a 3 de junho, encontrei

Aquela por quem suspiro,

Aquela a quem sempre amei!

 

Foi-se embora, foi-se embora,

Para sempre me esquece3u...

Quem é que, cantando, chora?

Ai, pobre de mim, sou eu!

 

Quem toca viola sente

Que as cordas sentem também...

E uma estala, de repente,

Como o coração da gente,

Se fala de quem quer bem.

 

Trovas soltas, velhas trovas

Cantadas em tom de prece...

E, sendo velhas, são novas,

Pois o amor não envelhece!

 

Canções de amor, harmonias

Talvez esquecidas já...

Ai, foram só vinte dias

Que ela passou no Indaiá!


Versão

 

Pontualmente, com seu largo chapéu de palha,

Protegida do sol e dos ventos marinhos,

Ela, tal como quem cantarola e trabalha,

Distribuía a merenda aos nossos passarinhos.

 

De pão de ló com leite, a feliz pequerralha

Recebia  ração, ao longo dos caminhos.

E a cada um ela dava uma fina migalha,

Que cada qual levava aos filhotes, nos ninhos.

 

Depois que ela partiu, houve quem, na lavoura,

Que o passaredo invade e por vezes castiga,

Fizesse de espantalho o chapéu da Senhora...

 

Mas eles, habituais, redobrando a cantiga,

Vieram todos, revoando, em folgaz dobadoura,

Supondo que voltara a adorável amiga...


Cantar

 

Com seu vestido de chita,

Descalça, e assim tão bonita,

Menina e moça, ao luar,

A linda Maria Rosa,

Pomba arisca e melindrosa,

Vai como sempre cantar!

 

Todos se agradam de ouvi-la.

Os moradores da vila

Conhecem o seu andar.

E a linda rosa Maria

os rapazes desafia,

Com seu feitiço, a cantar!

 

Não há quem não goste dela,

Porque a pequena é tão bela

Que é de a cabeça virar...

E, sempre, a Maria Rosa

A quadra, a toada, a glosa

Repete, no seu cantar!

 

Diz, no estribilho dolente,

Quanto sonha, quanto sente,

Quem ama, escutando o mar.

Confessa esta flor, tão linda,

Que escrever não sabe ainda,

Mas sabe, ao menos, cantar!


Roda

 

E nós entrávamos na roda,

No batepé, na barulhada,

Cantando as já fora da moda

Canções daquela criançada...

 

- Tempo será!

É de mi-c-o-có!

Laranja da China,

Tabaco em pó!

 

Refrões de grossa geringonça,

Que ainda se cantam no Morrete,

E que nos vêm do Tempo do Onça,

De quando Adão era cadete...

 

- Bento, que Bento,

Frade!

Furar um bolo...

Bolo!

 

Canivetinho do pintainho,

Que anda na barra

Do vinte e dois...

Mingorra!

Mingorra!

Ficaste forra!

 

Caia a tarde, alta e serena...

E vinha a noite, de mansinho...

E nós na - Roda da Morena,

Ou da - Coroanha do Caminho...

 

- Surupango, da vingança,

Toda a gente passarão...

 

E o luar entrava pela mata...

Aparecia a lua cheia...

E nós naquela serenata,

Vendo espalhar o luar de prata

Açúcar branco pela areia...

 

- Uma, duas angolinhas,

Finca o pé na pampolinha...

O rapaz

Que jogo faz?

Faz o jogo do capão...

Vá dizer, Manoel João,

Que lá vai um be-lis-cão...

E recolha o seu pezinho

Da conchinha de uma mão...

É de rim-fon-fon,

É de rim-fon-fon!

Pé de pilão

Carne seca com feijão!

 

Coroanha, minguito

Bololão, bololão!

 

- O anel que tu me deste,

Era vidro e se quebrou.

O amor que tu me tinhas,

Era pouco e se acabou...


Borboletas Brancas

 

No seio da Concha, a espuma,

Da onda crespa, se amontoa.

E o vento bate-lhe... E, em pluma,

Ela transforma-se, e voa.

 

No ar claríssimo, subindo,

Alando-se das maretas,

Simula, em flocos, um lindo

Enxame de borboletas.

 

Brancas, festivas, e soltas,

Desfolham-se as açucenas,

Ou tremeluzem, revoltas,

Transmudadas em falenas.

 

E o enxame todo se irisa,

Se arcoirisa o enorme bando,

Sob os embalos da brisa,

Ao sol do Indaiá bailando.


Selada

 

Na Selada, o chão de areia,

Cor de rosa, rosa-chá,

Tem a tinta que roseia

A escumilha do Indaiá!

 

E esse rosado rebrilha,

Enche de relumes o ar!

Maravilha! maravilha!

A arder, pirilampejar!

 

O oceano ali tumultua,

É verde intenso e feroz!

Nem mesmo o beijo da lua

Consegue abrandar-lhe a voz!

 

Montes fulvos, grandes fornos

Fecham o âmbito, infernais,

Tendo o aspecto, nos contornos,

De gigantescos portais.

 

Ninguém. Segredo profundo.

E o doido, a estardalhaçar:

Viúvo, exilado no mundo,

Blasfema, estrondeia o mar!

 

Neste idílico recanto,

Da juçara e do abricó,

Pelo imprevisto do encanto,

Ninguém devera estar só.

 

Não devera, na verdade,

Nesta ardente solidão,

Nunca existir a unidade

Que amargura o coração.

 

Deviam unir-se as bocas,

Com o mais fremente fervor,

Apaixonadas e loucas,

No iluminismo do amor!

 

Aqui, desvairado, em prece,

Solitário, a soluçar,

Com quem é que se parece,

Com quem se parece o mar?


Mar-Casado

 

Quem não se tem deslumbrado,

Surpreendido quando vê

As águas do Mar-Casado,

Caminho do Perequê?

 

Narram antigos caiçaras

Que, quando vaza a maré,

Através de pedras claras,

Ao ilhéu pode ir-se a pé.

 

E, respondendo a perguntas,

Contam os homens do mar,

Que, quem as vê, quando juntas,

Será feliz, se casar.

 

Mas se as encontra apartadas,

Segundo a crença nos diz,

Por mil histórias provadas,

Casando, não é feliz.

 

Ora, lá fomos, no instante

Do afastamento, e eis por que

Sofro o efeito da vazante

Das águas do Perequê.


Adorável

 

Ao Pescador de Pérolas, Vicente

De Carvalho, a Cidade ergue um altar,

Simbolizado numa Fonte e em frente

De um ninho-roseiral, junto do Mar!

 

E o rosal dessa Fonte é confidente

Dos que, em segredo, aprendem a noivar!

Nele, os pássaros nossos, docemente,

Os "Poemas e Canções" vêm recitar!

 

Fluem da Fonte as vozes amorosas,

Beijos e aromas, pela praia, além,

Rola, rimam, em rondas vaporosas,

 

Sem que se possa distinguir, porém,

Se a música do amor foge das rosas,

Se do perfume que seus versos têm!


Sonhando...

 

Sonhei... Sonhava, à distância,

Num tempo que já lá vai...

Meus companheiros de infância,

Brincai comigo, brincai...

 

Abrahão, Chico, Manduca,

Ó Joãozinho Carvalhal,

Onde armastes a arapuca,

Que deixamos no quintal?

 

Onde, à saída da escola,
Conforme a combinação,

Puseste tu a gaiola,

Samuel, do meu coração?

 

- Foi naquele abricoteiro

Das Duas Pedras... Foi lá...

No que, de outubro a janeiro,

Fica assim de sabiá!

 

E até lá fomos... E achamos

A gaiola, entre os cipós,

Cheinha de gaturamos,

Saíras e curiós!

 

De pintassilgos da serra,

De sanhaços e azulões,

E de canários da terra,

Campainhando as canções!

 

E os passarinhos praieiros

Davam ares, joviais,

De alguns dos meus companheiros!

Mas eram eles tais quais!

 

Com eles se pareciam,

No todo, em tudo, a saltar,

Na voz com que me sorriam,

Na candura do cantar!

 

Não sei como aquele bando

Escapou... E era uma vez...

O grupo foi-se acabando;

Restam, de tantos, só três.

 

Soltaram-se os passarinhos,

Tão amigos, todos meus,

Dispersos pelos caminhos,

Dizendo-me: Adeus! Adeus!

 

Meu tempo de criançola,

Ai, que saudade me dás!

Ficou aberta a gaiola,

Fugiram os sabiás...


Carta para o Céu

 

Zéca, a saudade faz, tantos anos após,

Que a Casa dos Martins, berço dos meus Avós,

À Praça de José Bonifácio de Andrada,

Se abra, em festa, outra vez, na Cidade Encantada,

para te bem louvar, para te agradecer!

E, com a antiga ventura, amistoso prazer,

Ouvir, com o fantasiar com que sempre os dizias,

Ao Carlitos, a Dick, ao Alvaro, ao Elias,

Ao Heraclio, ao Nhõnhô, ao Juca, ao Diogo, a André,

Aos companheiros teus, convivas do Chalé,

Um dos casos de outrora! À sala de visitas,

Toda de flores cheia e de rendas e fitas,

Começavas, então, a narrar em comum,

Uma história caiçara, um dos teus contos, um

Dos romances de amor da gente litorânea.

E a alegria, ao te ouvir, tornava-se instantânea.

Eram reproduções, desenhos sempre fiéis,

Dos nossos naturais e dos nossos painéis,

Feitos com a cor local, sob o cenário visto

Nas marinhas do bom Benedicto Calixto.

Pintavas o guri do Paranapuã,

Que o remédio roubou para salvar a irmã;

O Noroeste, O assustado, A galinha com gogó,

O tico-tico-rei, O tiê-pardo e o tié fogo,

A goiabada, Os pães quentinhos de cará,

Vendidos nos Quartéis, vindos do Guarujá!

Eras do Club XV, eras Baptista Coelho,

O, então, Fanfan do Diario, estroina rapazelho

Que depois se firmou tão brilhante escritor,

Nos tempos do Isidoro e do querido Heitor!

Bravo! Ascendeste! Foste espontâneo humorista,

Teatrólogo sagaz, hábil folhetinista!

Coisas que já lá vão, coisas que longe vão,

Mas comovem ainda o nosso coração,

E me fazem sonhar e me deixam confuso,

Recordando o Rouède, o adorado João Luso,

A quem tanto quiseste e que sempre nos quis,

Quando eu era garoto e tu eras feliz.

Tinhas, naquela idade, alma vibrante e inquieta,

A mania de andar sempre de bicicleta...

Eras galanteador como poucos serão,

Caprichoso no traje e no tocar violão...

À noite, quanta vez, sob a lua de prata,

Te escutei, à janela, ouvindo a serenata

Do teu Chico Vicente e do nosso Mimi,

Cada qual amador no Teatro Guarani...

Zéca, isto tudo faz que eu muito me enterneça,

E comece a chorar, eu criança travessa...

Zéca, muito obrigado - e isto não por mim só

Porém pela Oração que rezaste a Vóvó.


Selvagem

Narrativa caiçara de

Vicente de Carvalho

Em baixo do barranco a embarcação parou.

- A Deus todos! Adeus! Vou para a guerra! Vou,

Porém não sei se volto... Adeus, minha Teresa!

Adeus! Jura que me hás de esperar, com firmeza!

Que se eu morrer, também nunca te casarás!

Oculta entre moitais de híspidos craguatás,

A rapariga, em pranto, a namorada antiga,

A noiva para sempre, adorável amiga,

Junto ao peito do herói, jurou, jurou, jurou.

E assim ele partiu. A canoa zarpou.

Voltava agora, ao fim de três anos, voltava,

Tendo enfrentado a morte, a guerra hedionda e brava.

Deu baixa na milícia, e retornava, enfim.

Num alto de espigão, dominando o fortim

Da Bertioga, reviu sua praia, seu berço.

E, relembrando a noiva, ia rezando um terço,

Quando, sob o dossel de um pé de cambucá,

Viu dois homens em luta, e um deles no outro dá

Machadada tão forte e tão certa - que a fronte

Lhe rachou, abriu toda, e, feroz, brutamonte,

Fugiu, largou na estrada o agonizante e, qual

O canguçu, entrou no ínvio do matagal,

E desapareceu. Surpreendido, apiedado,

Ele acorre a acudir àquele desgraçado,

Que em seus braços expira. Era inclemente o sol,

Incendiando a extensão da Prainha ao Farol.

E ele à sombra recolhe esse desconhecido,

Mas todo se manchou do seu sangue escorrido.

Depois, por largo tempo, esteve a olhar, a olhar

O verdoengo frutal do Indaiá, sobre o mar.

Resolveu, afinal, prosseguir seu caminho...

E eis que encontra, na enseada, um antigo vizinho,

E com ele conversa e reconta a aflição,

Que ainda há pouco sentira, e a morte, e a fuga, e o chão

Onde depositara o cadáver sangrento,

Que, em seus braços, tivera, em trágico momento.

No rancho em que parou, demorou-se demais,

Ali esteve a evocar mil casos infernais,

Com essa imaginação, viva e cheia de encantos,

Que possuem, narrando, os praieiros de Santos.

Quando, à tarde, chegou ao seu pouso, no fim

Do estirão, que do Umbu vai ao Monte-Sandim,

Na curva do Iriri, viu à porta da venda

Do João de Itaguaré, muita gente em contenda.

Falavam, discutindo. Ele, ao se aproximar,

Notou, logo, que alguém, morador do lugar,

Entre essa multidão apinhada dizia

Ser ele, que chegara aí pelo meio-dia,

O criminoso, o mau, o real matador

Do esposo de Teresa, em vingança de amor.

Atônito, ele quis explicar, dizer tudo,

Porém permaneceu estarrecido e mudo.

Nisto, dentre uns moitais de híspidos craguatás,

Tendo ao colo um guri, desvairada e minaz,

Teresa apareceu, de modo repentino,

Exclamando: - Assassino! assassino! assassino!

Ainda tens, ainda tens tintas de sangue as mãos,

Tinta de sangue a roupa, ó vilão dos vilãos!

Ele ouviu, espectral, essas palavras suas,

E respondeu: - Fui eu! Fui eu mesmo! E se duas

Vidas ele tivesse, eu as tirara, a quem

Me roubou minha noiva e me matou também.


Cocoricó

 

Modorra. Maresia. O sol rescalda,

A esparzir pedrarias pela areia.

Tudo é verde, de um vivo de esmeralda,

Que, engastada em zarcão, se rebraseia.

 

O canavial imóvel da sofralda

Do Camburé, no sítio da Baleia,

Tal qual um caldeirão de doce em calda,

Forte, o cheiro a garapa, vaporeia.

 

Nem um leve bulir, mínimo estalo.

Potencial, em clarões cor de abricó,

A luz a mata circunvolve, em halo.

 

Mas, das bandas de além, do cafundó,

Inesperadamente, explode um galo,

Na clarinada do cocoricó!


Irerê

 

De madrugada, lampeira,

Ela quis ir tomar banho,

No poço da cachoeira,

E eu, prontamente, a acompanho.

 

Fazia frio. Entre brumas,

A Estrela d'Alva brilhava,

Baixa, sobre as sumaúmas,

Na lomba da Murungava.

 

Despiu-se. Entrou na água clara,

Bebeu-a, beijou-a, em festa!

E era tal qual uma Iara,

Tendo um diamante na testa!

 

De boninas coroei-a!

Ri, delirei de alegria!

Disse versos à Sereia,

Que era o que ela parecia.

 

De esperanças e de enganos,

Vivo aqui colhendo os frutos.

E isto faz, hoje, dois anos,

Dez dias e onze minutos.


Água da Fonte

 

Não seres tu. Não seres mais. Disperso,

Não saberes quem foste, ou tenhas sido,

Espalhado no todo do Universo,

Na unidade do Cosmos confundido...

 

E, praticando o bem, sem seres crente,

Útil, de coração simples e grato,

Desejaras fundir-te, totalmente,

Apagado, de vez, no anonimato.

 

Colhes o fruto, de sabor divino,

Ao alcance da mão, de preferência.

Quem o plantou? Que importa, peregrino,

Se é de todos o prêmio da existência?

 

Chegas à fonte, e bebes, e respiras

O ar macio, puríssimo da serra,

Amas a vida e ao seu calor te inspiras...

A quem os deves? De quem são? - Da Terra.

 

Assim, dando expansão à alma contente,

Sobre episódios líricos diversos,

Faze versos, também naturalmente,

Já que sabes apenas fazer versos.

 

Poesia, meu Irmão, poesia pura

É amor, piedade, sonho, sentimento:

É cantar como os pássaros, na altura,

Florescer como as árvores, ao vento.

 

Arte? É dom singular, como a beleza.

Deve ser inconsciente em nosso ofício,

Da perfeição da flor, a Natureza

Demonstrou quanto é fútil o artifício.

 

Versejemos, rimemos, de maneira

Que a ventura comum seja completa:

Como a água flui, dá rosas a roseira,

Ou como o Poverello era poeta...


Enfim!

 

Vivo. Desde o raiar da madrugada,

Mourejo. E, como os outros companheiros,

À pesca vou, sem medo de aguaceiros,

Sem o menor temor da trovoada.

 

Frutas cultivo. Canto, às vezes. Nada

Na consciência me pesa. Entre coqueiros,

Prego sermões aos pássaros brejeiros,

Com o bom humor de uma alma descuidada.

 

Longe dos homens da cidade, ao fundo

Deste céu, afinal, me consolei,

E com os pobres praianos me confundo.

 

Mais feliz, mais sereno do que um rei,

Desprendi-me de tudo o que há no mundo,

E, franciscanamente, aqui fiquei.


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