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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (9)

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O livro Arlequinada foi editado em 1922 pelo "Bazar Americano" - B. Barros & Cia. - Rua General Câmara nº. 18 e impresso na Tipografia do Instituto Dona Escolástica Rosa - Santos, com 79 páginas. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (com ortografia atualizada nesta transcrição):
 
Arlequinada

Fantasia Funambulesca - Mimo

Martins Fontes


Imagem: reprodução da página

OBRAS DE MARTINS FONTES

Da imitação. Tese de doutoramento em Medicina.

O Acre. Estudos de higiene rural

A gripe, em Iguape

A meningite cerebro-espinhal-epidêmica, em Vila-Bela

 

Conferências literárias

(Edições da Agência Novidades, Rua Santo Antonio, propriedade de Galeão Coutinho & Comp.)

 

No templo e na oficina

 

No templo:

Como os poetas amam a pátria

O mar

A terra

O céu

A alegria

A dança

A cavalaria

A Neurose

Bakounine

O Parnasianismo

Decameron

 

Na oficina:

Eça de Queiroz

Coelho Neto e Olavo Bilac

Rodenbach

Maupassant

Flaubert

Claude Bernard

Pasteur

Nós, as abelhas (Aos poetas da minha geração)

O lírio

Luiz Delfino

Era uma vez...

Santos

Olavo Bilac, poeta cômico

O que os cegos veem

O que os pássaros dizem

 

Poesia:

Verão, edição do Instituto D. Escolástica Rosa

A cigarra e a formiga, edição da Gazeta

Pastoral, edição da Revista do Brasil

As cidades eternas, edição da Agência Novidades

Prometheu, edição da Agência Novidades

Marabá, edição da Agência Novidades

Boêmia galante, edição da Agência Novidades

 

Teatro:

O calvário, peça em 3 atos

Arlequinada, fantasia funambulesca, em 1 ato

 

Prosa:

Segredos profissionais

Contos

O colar partido

 


A obra pertencia ao acervo de Mariano Gomes, amigo de Martins Fontes, que a autografou

Imagem: reprodução parcial da página


EX-LIBRIS

 

INCOMPARÁVEL!

A ARTE É O AZUL!

TUDO, OU NADA.

 

Sobre um negro cavalo bardado, um Pierrot de Willette vai, por uma estrada florida de rosas, com os olhos fitos numa estrela. uma nuvem, em forma de lírio e mulher, paira na altura. No céu, em torno do astro, a divisa cavaleiresca: INCOMPARÁVEL! Rumo do além, no ar, o lema religioso: A ARTE É O AZUL! Na lâmina da lança a inscrição: TUDO, OU NADA.


CENOGRAFIA DE PAIM

E

MÚSICA DE BASTOS TIGRE


A meu irmão

Waldemar Kneese Ferreira

Ao Artista e ao Amigo.


OFERENDA

 

A Paris,

E à Mulher Flor de Lis,

À Colombina de Watteau, suprema flor,

Que sorrindo seduz e sonhando promete

O imutável amor

Do Pierrot de Willette.


PROGRAMA DA FESTA GALANTE

do Primeiro Aniversário do Jockey Club de Santos,

em 4 de junho de 1922

 

Primeiro Ato

O minuete, de Gonçalves Crespo pela srta. Junia Silveira.
Fala de sua eminência o cardeal de Montmorency, da Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, pelo sr. dr. Archimedes Bava
Ballada de Pierrot, de Goulart de Andrade, pelo sr. Velsirio Fontes
Madrigal Azul Sèvres, Velho Tom, de Martins Fontes, pela srta. Virginia Rocha
Uma anedota do século XVIII, contada ao sabor do tempo, fantasia de Catulle Mendès, pela srta. Zilota Assumpção
A Arquiduquesa, do Conde de Monsaraz, pelo sr. Martins Fontes

 

Segundo ato

ARLEQUINADA

Fantasia Funambulesca, de Martins Fontes

A Colombina de Watteau Srta. Zilota Assumpção
O Pierrot de Willette sr. Martins Fontes
O Arlequim de Gavarni sr. Odecio de Camargo

(Em Paris, ao luar, no Bois de Boulogne,

em terça-feira de Carnaval.)

 

Terceiro ato

I

Chansons Grises:

- En sourdine

 

- L'heure exquise

   música de Raynaldo Hahn,

- Tous deux

   versos de Paul Verlaine
Marquise,

   música de Jules Massenet,

 

   versos d'Armand Silvestre

pela senhorita Violeta de Assumpção, ao som de cravo, tocado pela senhorita Carlota Gomes

II

Bergeries Galantes, de Lulli,  
  pela senhorita Thaisa Porchat de Assis, acompanhada a clavecítara pela senhorita Carlota Gomes

A Gavota de Gluck,

O Minuete de Boccherini,

 
  dançados pela senhorita Dulce Rodrigues e pelo sr. Arthur Porchat de Assis Filho, ao surdinar das flautas e violinos da Orquestra Jockey-Club.

Ouvir-se-á cantar - Meia-Noite - uma acordina do século XVIII.

 

- BAILE -

Traje de rigor: veste de grande baile, cabeleira empoada, polvilhada de ouro ou poalha de pedrarias, e uma lembrança ridente, carnavalesca, de cor taful.


A Paris

Paris, Paris, Paris, Paris!

Rosa de França! Imperatriz!

Maravilhosa Flor de Lis!

Paris!

 

Sempre te amei, sempre te quis!

Tudo o que sou, e quanto fiz,

Devo-te à luz fulminatriz!

Paris!

 

Berço de heroicos Amadis,

Como Rolando, São Dinis,

E o Cavaleiro São Luís!

Paris!

 

Jamais dobrou tua cerviz!

Conservas as plácido o cariz,

E sem temor, nem cicatriz,

Paris!

 

Ao som de trompas e anafis,

Sobre os exércitoshostis,

Pairas, radias, Triumpatriz!

Paris!

 

Paris! O luxo dos rubis

O teu saber não contradiz,

- E és da ciência a Embaixatriz!

Paris!

 

Pátria dos Poetas! Genetriz

Dos pensadores mais sutis,

E das mulheres mais gentis!

Paris!

 

Sarah, Richet, Pierre Louÿs,

Jean Richepin, Schuré, Plessis

Ó de Anatole Inspiratriz!

Paris!

 

A Arte és tu mesma, Encantatriz!

A Atenas de hoje, a Itália o diz!

Deslumbratriz! Perpetuatriz!

Paris!

 

Paris! Em maio! Nos hastis,

Azuis, de todos os anis,

Brilham as flórulas gazis!

Paris!

 

Há pelo céu, perola-gris,

Um róseo tal, de tal matiz,

Que só contigo bem condiz!

Paris!

 

Cantam, em rondas juvenis,

Como os pardais, como o piriz,

Tuas Musettes e Mimis!

Paris!

 

E todas têm o chic, o X

Das elegâncias senhoris,

E das alegres Hanlon-less!

Paris!

 

E, doidivanas e beliz,

Com os teus primores pueris,

Brincas, e danças, e sorris!

Paris!

 

Amas! Teus beijos são febris!

Rubeja a linha osculatriz,

À flor das bocas feminis!

Paris!

 

Tens a volúpia de Belkiss,

A alma lirial de Beatriz,

E és virginal e sedutriz!

Paris!

 

Paris! Rainha entre as Huris!

Fada! Princesa das Peris!

Joliz, joiz, joliz, joliz!

Paris!

 

Meu coração, que te bendiz,

Que hei de morrer em ti, prediz,

Cidade-Luz, Consolatriz!

Paris!

 

Na terra em flor do teu país,

Repousarei, enfim, feliz,

Amante e Mãe! Libertatriz!

Paris!

 

A Colombina

Rondó francês, cantado ao som de avena

 

Do amor eu vivo. Noite e dia,

Naquela idade em que se abria,

Ainda medroso, ainda em botão,

Como um rosal, meu coração,

Já por amor me enfebrecia.

 

Minha primeira poesia,

Quando nem ler sequer sabia,

Foi uma ardente confissão

De amor!

 

E o meu suspiro na agonia,

Quando murchar, na tarde fria,

A última flor do meu "Verão",

Será também uma canção,

Um beijo, um ai, uma harmonia

De amor!

 

Máscaras

 

O PIERROT de Willette

A COLOMBINA de Watteau

O ARLEQUIM de Gavarni

 

Idealizada, pormenorizada, em todas as minudências, no Rio de Janeiro, na "Villa Moreau", à meia-noite de 23 de outubro de 1907, e rimada em Santos, durante 9 horas consecutivas, na terça-feira do carnaval de 1922.

 

Cores

 

Quando Pierrot entrar em cena, uma grande lanterna, de claridade cor de rosa-violáceo, róseo de tons de rosa-chá, inundará o palco; para colombina a luz deverá ser azul-céu, azul-ciúme; para Arlequim o clarão será sempre escarlate. Desde que apareçam os três, os focos luminosos devem, continuamente, combinar os jogos cromáticos, simbólicos.

 

Cenário

 

A cena representa o recanto de um parque à Le Nôtre, solitário, romanesco, numa grande cidade, em noite de plenilúnio. Na luz sobremaravilhosa, feita de azougue, há tons cerúleos, reflexos celestiais, dando a impressão de que o luar é azul. Pairam no ambiente claríssimo, bailando no ar, tamisadas, fluidificadas, eterizadas, névoas translúcidas, das quais saem mínimas piscas cintilantes, irisações sutis, gotículas fúlgidas. Velhas árvores, sombredos profundos, tufos esparsos, floridos relvados a perder de vista. Ao longe, espelhante, em chapa circular de prata fosca, a água lisa de um lago. à direita alta, um banco de mármore, modelo clássico, alvo, apesar do tempo, branquejando na escuridade que o emoldura, coberto pela folhagem rendada de um caramanchel idílico. O pano deve subir lentamente, à medida que as luzes da sala forem diminuindo, para que o clarão do luar, que inunda a cena, produza, na penumbra do teatro, um efeito deslumbrador. Ouve-se soturnamente, longamente, cantar meia-noite o relógio de uma catedral. A última badalada, escuta-se, aproximando-se, cada vez mais perto, e com mais vividez - para em seguida afastar-se, apagar-se completamente, um estranho rumos, carnavalesco, diabólico - gritos finíssimos, falinhas, vozes silvantes, assovios estrídulos, soalhar de pandeiros, trintrilintrins e ferrinhos, birbirinchins de gaitas, liailialiailis de flautins, chascarrachás, dongolodrons, sons de risos e guisos retintinulos, entre ribombos de zabumbas e de bombos, tutuques de recorrecos, timbalejos e atabales.

 

Depois, o silêncio evocador e a pureza da noite inspirador. Pierrot, dentro, em surdina, canta com melancolia, a antiquíssima área veneziana de carnaval:

 

Flon, flon, flon, flon, la ri, don daire,

Flon, flon, flon, flon, la ri, don da...

Tra la, tra la, la, la, la, laire,

Tra la, la, la, la, la, la, la...

 

Cena I

PIERROT

Dedilhando a guitarra, cantareja, recitando, a

 

Serenata - Soneto [*]

 

Maravilhosamente a lua,

como uma concha alva do mar,

Recurva e pálida, flutua,

Tremula, tremula, a brilhar.

 

Vejo, por tudo, o alvor da tua

Carne, que é feita de luar...

Sonho-te branca e semi-nua:

Fecho os meus olhos para olhar.

 

Como um zaimph de musselina,

Tal qual o véu de Salammbô,

Há, no luar, a luz divina

 

De uma paisagem à Watteau.

Abre a janela, Colombina,

E ouve a guitarra de Pierrot.

 

[*] Música de Bastos Tigre

 

voltando-se para a plateia

 

O Pierrot de Willete! O Pierrot de Paris!

O Pierrot de Rostand e de Zamacois!

Bem vedes, não sou eu o Pierrot, bufo e belo,

Filho de Cassandrino ou de Polichinelo,

Que, através de Molière, a sorrir, fulgirá

Na obra de Champfleury, D'Hervilly, Bergerat.

Não uso os escarpins, nem os pompons do Gille

Do Deburau, Grétry, Paul Legrand e Banville.

É alvo, claro, lunar, feito em branco-maior.

O Pierrot de Climène e Maurice Bouchor;

Figura de alvaiade, inocente e glutona,

De chapéu à Colin e larga pantalona;

Tipo de mimo alvar e que Daumier reduz

A um misto de Scapin e de karagheuz.

Não: eu sou o Pierrot de cor de rosa e preto,

O Mephisto-Musset, o Lord Byron-Hamleto,

O lírico e macabro humorista do spleen,

Da cabeleira empoada e calções de cetim,

Que procura esparzir, pelo mundo tristonho,

Na ironia da vida, a poesia do sonho.

Ser absurdo, talvez, mas, entretanto, real,

Que é, na fashion wildiana, o Dom Subtil, tal qual.

Amo o imprevisto, o raro, o precioso, o burlesco,

o ultrafantástico, o requinte, o romanesco,

Seduz-me o éter azul que há nos ponches de rum,

O flavor do champanhe extra-dry, Kroug ou Mumm.

Tenho, na compleição, pela marivaudagem,

O aspecto de uma antiga e joliz personagem,

Que, provando um licor, marrasquino ou cointreau,

Se disfarçasse num supertriste Pierrot,

Um Pierrot que, a sugar granjeias de anisette,

Fosse poeta! Eis o que é ser Pierrot de Willette!

Pierrot à Rollinat, à Coppée, à Vannôs,

Perfumado a Coty e alvo de pó de arroz!

Os delicados têm, por minha imagem fina,

O vício, a tentação do ópio ou da cocaína,

Sou gaulês, de Paris: em Montmartre nasci,

Certa noite, ao luar, de um beijo de Mimi

Pinson e de Verlaine; alei-me, e, entre conquistas,

Embalaram-me o berço os maiores artistas,

Sou, como podeis ver, desde a cabeça aos pés,

O Fantasio-Ariel que é Catulle Mendès!

Se a lágrima é talvez minha Mãe, o sorriso

Abençoou-me, ao nascer, como um Pai sem juízo,

Sinto-me sideral, como a voz, minha irmã,

Das "Chansons Grises", do segrel Raynaldo Hahn.

Guardo, no meu dandismo, a essência que prefere,

À neurose do gênio, ou biscuit, bibelot,

Amo o azulor da China: - Ego sum Pierrot,

Fazem-me companhia, em momentos de insânia,

Robin, Puck, Oberon, Trilby, Punch e Titania,

O Clown-Club infernal, fantochada gazil,

Do estrelado, infinito, incomparável Will,

Quando, dentro da noite, esfuzia e restruge

A orquestra dos anões, no antro do Moulin-Rouge!

E, na Place Pigalle, ardeja no ar o som

Das canções do Rictus e de Raoul Ponchon.

Chama-se o meu solar - Moulin de la Gallette.

Pois sobre ele é que paira o Pierrot de Willette.

Ronsardizo, e damejo; apraz-me idilizar

Com a primeira mulher que me perturba o olhar.

Porque eu sou como Atys, o inefável amante

Da - "Fête chez Thérèse" e da "Chamson Charmante".

E se Brummel pareço e me visto no Pool,

Tenho avidez no olhar, mas de infinito azul!

A boemia super, ultra, hiper-quimerizada

Faz, do culto da graça a beleza encantada.

Para mim, pode vir, provir de onde vier,

De Redfern ou Paquin, divinizo a mulher.

Nada pode existir que suavize a amargura,

o perene pavor, a contínua tortura

De adoecer, de envelhecer e de morrer,

A não ser a dulcês, a não ser o prazer

De achar a rima das estrofes que fizeres,

Poeta, no beijo-flor da boca das mulheres!

Amemos, pois: - o mais, tudo é imaginação.

O amor é a luz, é o ar, a vida, o sonho, o pão!

Se Pierrot deve ter o candor da açucena,

Do lírio, do jasmim, da camélia alba-plena,

Da violeta de Parma ou do gelo polar,

Da angélica, do cisne e da espuma do mar,

Branco, branco do alvor da nuvem, fina e fria,

Branco, mas branco ideal, como na "Simfonia

(Esse poema lunar que fulge nos - Émaux

Et Camées, livro de ouro e missal de Pierrot)

Toda em Branco Maior", do helênico Théophile

Gautier, Orpheu-Gautier, como disse Banville,

Eu não serei Pierrot, eu não serei Pierrot,

Porque um ente mais triste ainda ninguém sonhou!

Porque: - "Je suis cellui au coeur vestu de noir!"

Como disse esse irmão do adorável Ronsard.

Sou triste, porque vivo, apaixonadamente,

Incontentado, insatisfeito, e sempre crente,

A procurar, por toda parte, a perfeição,

Que me deslumbra o sonho e foge à nossa mão.

Sinto que há de brilhar uma mulher na terra,

Em cuja humana forma a beleza se encerra!

Vaso de argila a perfumar o óleo aromal!

E é pelo culto ideal dessa imagem real,

Que extravago, soluço, e os meus versos componho,

Julgando ver a realidade do meu sonho!

Fecho os olhos, e vejo esse Silfo, esse Djinn!

Mas, quando os olhos abro, ela foge de mim!

Quero, incessantemente, alcançar o impossível!

Tenho a dor do ideal, a ânsia do inatingível!

Abrasa-me a certeza, ilumina-me a fé!

Sinto que hei de te amar, Salammbó, Salomé!

Vivo da aspiração de contemplar, um dia,

Na carne da mulher, a suprema poesia!

Fulge dentro de mim, arde em meu coração,

O infernal frenesi da alma de Dão João!

E o castigo maior do desespero humano

É o que eu sofro, ao possuir cada mulher que engano,

Porque sinto, depois do seu beijo falaz,

Que ela ainda não era a mulher que me apraz!

Às vezes, nos vaivens do turbilhão da rua,

Ouço uma doce voz, que julgo ser a sua;

Volto-me, tento ver de que rosa saiu,

De que boca esse olor, como um beijo, fugiu.

E vejo que não era essa a voz que eu sonhava,

Porque, se a voz sorria, a boca me enganava...

Num salão, de repente, uma linda mulher

Olha-me, olho-a também, com o fervor de quem quer

Descobrir, encontrar a feição que procura.

E noto, a estremecer, que há na sua figura

O impecável da linha, a floral distinção,

A harmonia perfeita e da minha paixão!

Corro, anseio, e ela ri, e, a sorrir, entretanto,

Com o seu sorriso desencanta o meu encanto...

Fora tudo ilusão, fantasia talvez...

A beleza enganara, ainda mais uma vez...

Assim vivo, assim sofro, assim me desespero,

Dizem que sou cruel, sendo apenas sincero,

Ora, por hoje ser dia de carnaval,

Lembrei-me de buscar o meu amor ideal,

Que na vida, jamais, sem máscara, encontrara,

Numa galante Colombina, linda e rara,

Que, disfarçada em figurinha de Watteau,

Fosse a imagem real que procura Pierrot.

Era uma extravagante insensatez de artista,

Impossível, bem sei, por ser ultra-imprevista.

Saí sem esperança. A verdade, porém,

É às vezes falaciosa, ilusória também.

Foi por isso que, estando eu em plena folia,

por acaso encontrei, tal qual desejaria,

Uma formosa colombina de Watteau,

Que, passando por mim, de repente parou

E disse: - "Serás tu, ó Pierrot de Willette,

O poeta do meu sonho, a alma que me promete

A Fada-Realidade? És o Príncipe, o Rei

Que, incansável, procuro, e jamais encontrei?"

Estático, tremi! Era Ela! Era Ela!

A imarcescível Flor! A Mulher sempre bela!

Ela! Ela! A visão do meu sonho! e, a sonhar,

As pálpebras cerrei, ante a deusa sem par!

Um segundo depois, abri-as... Fora um sonho!

Nunca, nunca, porém, tão nítido e risonho!

Agora, meia-noite acaba de bater.

Findou-se o carnaval. Volto ao meu padecer.

A este jardim corri, inconsolado e louco,

Para, na solidão, poder chorar um pouco.

Nunca mais, nunca mais, nunca mais, me amor!

 

Pierrot se afasta, vai até o fundo do jardim, sempre molhado, emoldurado, argentizado pelo luar.

Ouve-se dentro, festivamente, delirantemente, cantar a velha área veneziana de carnaval, uma voz nova e melodiosíssima de mulher, e aparece

 

Cena II

COLOMBINA

 

Pareceu-me entrevê-lo, ainda há pouco, ao fulgor

Da lua, lindo e triste, o meu Pierrot... Contudo,

Enganei-me, pois todo o jardim está mudo.

Ninguém! Que solidão! Que poesia! Ninguém!

Estou só, como sempre à minh'alma convém.

 

Cantarola, retintinindo o pandeiro, a

 

SERENATA - RONDEL [*]

 

Abre a janela, meu amor,

Ouve esta leve serenata.

No meu semblante se retrata

Da lua a mística descor.

 

Tudo, no frígido palor

Da noite lírica, é de prata,

Abre a janela, meu amor,

Ouve esta leve serenata.

 

À luz do luar inspirador,

Que os namorados arrebata,

Fiz um rondel, em tua oblata,

Fino e gentil como uma flor.

Abre a janela, meu amor.

 

[*] Música de Bastos Tigre

 

Amo. Amo idealmente, amo profundamente,

A um sonhador, a um poeta, a um ser inexistente.

Minh'alma feminil borboleta irial,

Feita de irisações de nácar e cristal,

De asterismos de irídio, almandinas, granadas,

Cheia de fluídos de ouro e auras eletrizadas,

Sofre, sempre sofreu e há de sempre sofrer,

Só porque não existe esse ilógico ser,

Esse príncipe-herói! Dizem que sou absurda,

Mas eu não creio, em quem me julga cega e surda,

E os olhos fecho e me narciso, a idilizar

Com ese poeta que edulcora o meu sonhar...

Sim, é o famoso Atys, o inefável amante

Da "Fête chez Thérèse" e da "Chanson Charmante"...

Amo o raro, o precioso, o sensível, sutil,

De Pajou, Popelin, Clodion, Becerril.

Sou fina e frágil como a flor formosa e branca,

A papoula de Islur, a pérola de Lanca.

Choro, e o pranto, a fluir, das pálpebras me cai,

Como quem desfolhasse um jasmim de Xangai.

Para mim, nada sei que console a amargura,

O perene pavor, a contínua tortura

De adoecer, de envelhecer e de morrer,

A não ser a delícia, a não ser o prazer

De, ao menos um segundo, uma só vez, na vida,

Encontrar esse espelho, essa imagem querida,

Que nos dê num olhar, ou num beijo aromal,

A sensação do sonho, o sabor do ideal!

Sinto que há de existir esse poeta na terra,

Em cujo coração a beleza se encerra.

Mas onde? Em que cidade, em que aéreo país

Vive essa flor azul que me fará feliz?

Às vezes nos vaivens do turbilhão da rua,

Ouço uma doce voz que julgo ser a sua:

Volto-me, tento ver de que boca saiu,

De que rosa esse olor, como um beijo, fugiu.

E vejo que não era essa a voz que eu sonhava,

porque, se a voz sorria, a boca me enganava.

Num salão, de repente, um galhardo rapaz

Olha-me, olho-o também, com a esperança vivaz

De descobrir na sua impecável figura,

A harmonia da linha, a suprema finura,

O espiritual apuro, a graça, a distinção,

O fulgor da beleza e da minha paixão!

Corro, anseio, e ele ri, e, a sorrir, entretanto,

Com o seu sorriso desencanta o meu encanto.

Sim, os olhos serão os que eu vivo a sonhar,

Porém os olhos só, não a expressão do olhar.

Só eu sei quanto e quanto esperar desespera.

Dizem que sou cruel, sendo apenas sincera.

Fora tudo ilusão, fantasia talvez...

A beleza enganara ainda mais uma vez.

E assim vivo, a penar, neste anseio medonho.

Jamais encontrarei a afeição do meu sonho.

Ora, por hoje ser dia de carnaval,

Lembrei-me de buscar o meu noivo ideal,

Que na vida, jamais, sem máscara, encontrara,

Num mascarado, de elegância fina e clara,

Que tivesse o matiz, a quintessência, o X

Do Pierrot de Willette, o Pierrot de Paris!

Era uma extravagância, hiper-super-incrível,

Excêntrica, bem sei, por ser ultraimpossível,

Extra-humana e terrestre e natural. Porém,

Às vezes, a verdade é ilusória também.

Para os poetas são só, verdadeiros e certos,

Os sonhos que eles veem, tendo os olhos abertos.

Ora, por ser o acaso um dos nomes de Deus,

Em pleno carnaval entre vários Romeus,

Encontrei um Pierrot, um Pierrot de Willette,

Que, no grácil do todo e no gênio, reflete

Essa flama sagrada, esse fluído estelar

Que, num homem perfeito, ando sempre a buscar.

Arfei, fremi de orgulho: era chegado o instante,

O minuto febril, o segundo anelante,

O instantâneo esplendor desejado por mim,

Em que a Musa e o Poeta iam beijar-se, enfim!

Ia dar-se o que nunca houve jamais, suponho:

Realizar-se na terra a perfeição do sonho!

E falei-lhe! E cerrei as pálpebras... Sorri!

Mas, quando despertei, pálida, estremeci:

O meu Pierrot afim evolara-se... Fora...

Uma visão lunar da noite inspiradora.

Contudo, à névoa, à luz do luar cor de marfim,

Pareceu-me entrevê-lo, aqui neste jardim.

Mas qual... Por mais que o queira e por mais que arquitete,

Nunca mais te verei, ó Pierrot de Willette!

Foi um sonho! porém nunca tão ilusor!

Nunca mais, nunca mais, nunca mais, meu amor!

 

Às últimas palavras de Colombina, Pierrot, ao voltar do fundo do jardim, para, perplexo, estupefato

 

Cena III

PIERROT

Sim, é alucinação! mas bendigo o meu sonho!

 

COLOMBINA

Revirando-se repentinamente, trêmula, surpresa, nervosíssima, vivacíssima

Ele, que encantador! O Pierrot que eu suponho!

 

PIERROT

Vejamos se isto acaso é um delírio visual...

 

COLOMBINA

Nunca se deve crer no sobrenatural...

 

PIERROT

Já sofri tanto, que não quero, não desejo,

Inteiramente em vão, desfolhar o meu beijo.

 

COLOMBINA

Já sofri tanto, que não quero, ainda uma vez,

Comprometer-me pela minha palidez.

Seja, ou não seja, vou baixar a mascarilha

 

PIERROT

Céus! Que flor de Nattier!

 

COLOMBINA

Que Frago-maravilha!

 

PIERROT

Será Ela, meu Deus!

 

COLOMBINA

Será Ele, Senhor!

Buenas-noches, Pierrot.

 

PIERROT

Aproximando-se, com viveza nervosa, insistentemente

Boa-noite, meu amor

 

COLOMBINA

Afastando-se, com galanteria e desenvoltura

Dizer-me poderá, se não se compromete,

Que deseja de mim o Pierrot de Willette?

 

PIERROT

Só desejo saber o teu nome e quem és,

E depois, para sempre, ajoelhar-me a teus pés...

Qual será, Flor de Lis, de Chéret, de Gérôme,

De Gervez e Degas, o dulçor do teu nome?

Como te chamarás? Rumilly? Pompadour?

Rosa-Lis de Le Brun, de Lancret, de La Tour!

 

COLOMBINA

Graciosíssima

Prefiro, com arte

Pierrot a quem amo

Querido Pierrot,

 

Em vez de contar-te

Como é que me chamo,

Dizer-te quem sou.

 

Escuta uma história,

(Que, se causa pena,

Banville a bendiz)

A lenda notória

De certa pequena

Que havia em Paris.

 

Chamou-se Heloisa,

(De pais sevilhanos,

Segundo Mendès).

Era uma petiza

Dos seus nove anos,

No máximo dez.

 

Às vezes com fome,

A pobre menina

Ficava de pé,

Na Place Vandôme,

À curva da esquina

Da Rue de la Paix.

 

E, ali, suplicante,

Qual um passarinho,

Fragílimo e nu,

Com voz pipilante,

Dizia, baixinho:

- "Senhor, dê-me um sou".

 

E a quem implorava,

Porque era preciso

Ganhar para o pão,

A esmola pagava,

Mostrando um sorriso

De sua invenção!

 

Tão débil, tão leve,

Tão branca, tão fina,

De alvura polar!

Dir-se-ia de neve,

Talvez de neblina

E espuma do mar!

 

Um riso inventado!

Inédito! novo!

Tem tal brilhantez,

Que eu vejo espelhado,

Num lírio do povo,

O gênio francês!

 

Banville a batiza

(Primor de uma raça)

De um modo feliz,

- Em vez de Heloisa,

Chamando-lhe - A Graça!

Que é a flor de Paris!

 

PIERROT

Porém então com quê tu te chamas a Graça?

A graça que sorri, que reluz, esvoaça!

Ó Colombina de Watteau, Flor de Paris,

Bleuet-Gaieté, Muguet-Sourire, Flor de Lis!

És a linda Ninon, a adorável Ninette

Do Mephisto-Musset que é o Pierrot de Willette!

Amo-te! ó Schahrazade, ó Musette, ó Suzon,

Lyly-Biscuit, Lila-Baiser, Rose-Bonbon!

Sejas quem fores tu, seja qual for teu nome,

Ajoelhado me tens! teu sonho apaixonou-me!

Retira a mascarilha, ó Jo, ó Zo, ó Lo,

E beija-me afinal! encontraste Pierrot!

 

COLOMBINA

Perdão, perdão, perdão, só fugirei contigo

Se souber quem tu és, e o que fazes, amigo.

 

PIERROT

Quem sou eu? Um poeta,

Sonhador, esteta,

Alma idealista,

De artista.

 

Vivo de esperança,

Como uma criança,

E de ansiedade,

Saudade!

 

Ah! nem sei dizer-vos

Como são meus nervos,

Cordas de argentinos

Violinos,

 

Todas estalando,

A vibrarem, quando,

Num divino enlevo,

Escrevo.

 

Sofro ardentemente!

Como um ser doente,

A sonhar, me inflamo,

E amo!

 

Amo os véus de gaze

Que simulam quase

O ar feito brocado

Dourado...

 

A névoa tecida,

Rosicolorida,

Numa transparência

De essência...

 

Luz que se tamisa,

Ou se peroliza,

Em multiriantes

Cambiantes...

 

Amo os vinhos claros,

Os confeitos raros,

A maciez das cores

Nas flores...

 

Sempre as meias tintas,

Vagas, indistintas,

E os perfumes quentes,

Dormentes,

 

Se me inebriaram,

Muito me embalaram

Como superfinas

Surdinas...

 

Porque os meus sentidos

Vivem confundidos:

Sinto mil segredos

Com os dedos...

 

Olho pelo olfato,

Ouço pelo tato,

Provo quanto evoco,

E toco.

 

Amo o olhar que fala,

Ri, seduz, trescala,

E que, sendo mudo,

Diz tudo...

 

E a aromal delícia,

Lânguida carícia,

Cheia de finezas

Chinesas,

 

Com que, à flor da pele,

Dedilhando, excele,

Qual sobre um sonhado

Teclado,

 

A mão pequenina,

Mão de Colombina,

Que afagar suponho,

Em sonho!

 

Não sei o que exceda

Ao arminho, à seda

Dessa mão que almejo,

E beijo.

 

Linda mão direita,

Que, de tão perfeita,

Só à esquerda, é claro,

Comparo...

 

Doce mão de fada,

Palma enluarada,

Que suplico, exoro,

Imploro.

 

E que Colombina

Me dará, divina,

Qual se oferta um goivo

A um noivo!

 

COLOMBINA

Pierrot, Pássaro-Azul, sonha assim, canta mais:

És Banville a trilar, modular madrigais,

Amo-te, ó meu Pierrot, porém tu, alma ardente,

Amarás, como eu amo, a beleza somente?

 

PIERROT

Amo-te! Amo a beleza e ando a cantar, ao léu.

Adoro a Colombina e as estrelas do céu.

Beijo as estrelas! Vivo a adorá-las e vê-las!

Mesmo os olhos fechando, eu namoro as estrelas!

À noite, à lua loura, à janela, a sonhar,

Na água-furtada, além, do meu sétimo andar,

Chamo por elas, e elas vêm, quando eu as chamo...

Não te posso dizer de que maneira as amo!

Na corda bamba, a palpitar, de um raio azul,

De um longo raio de luar, fino e taful,

Elas, vestidas de amianto e malachite,

De rádio e prata, de ouro e mica e lazulite,

Falam-me, riem, mas o verso não traduz

os seus pipilos, monossílabos de luz!

Oh! são divinas, liriais, leves e belas!

E os nomes delas! mas, meu Deus, os nomes delas

Parecem feitos de miosota ou de pompom!

Os nomes delas! Mas, meu Deus, que doce som!

São títulos reais, nomes de princesinhas!

De rainhas do Céu! E elas todas são minhas!

Nisá, Iantê, Carmê, Lis, Lisi, Êniô,

Namoradas do azul, as noivas de Pierrot!

 

COLOMBINA

Eu quisera também ser a luz de um artista!

 

PIERROT

E que és, então?

 

COLOMBINA

Pierrot, sou apenas florista.

 

PIERROT

Florista?

 

COLOMBINA

Sim, florista. As flores, para mim,

Têm outros nomes diferentes... Sendo assim,

Em vez de irídeas, de gardênias e de rosas,

De jacintos, jasmins, heliantos, tuberosas,

Chamam-se: - Amor, Sorriso, Esperança, Ilusão,

Beijo, Carícia, Abraço, Alegria, Paixão,

Tristeza, Desespero, Amargura, Saudade...

Há uma cananga rósea e de tal suavidade,

Tal colorido de candura e de pudor,

Que bem se poderia, a essa medrosa flor,

Denominar, pois vibra ao mais fagueiro adejo,

O inocente rubor que há no primeiro beijo...

Ora, vê tu, Pierrot, como as flores também

São capazes de amar, de sentir como alguém?

 

PIERROT

De modo que se alguém, ante a linda florista,

Ante a sua leveza amorável de artista,

Disser: - Dê-me um Sorriso ou dois e mesmo três...

É, gracioso, depois desta primeira vez,

Com mais intimidade, aproveitando o ensejo,

pedir, em vez de um nardo ou de um junquilho, um beijo?

 

COLOMBINA

A florista dirá que não o tem para dar,

E lhe oferta um Suspiro ou talvez um Pesar...

Pierrot, porque será que se diz, com encanto,

Esta mulher parece uma flor! - e, no entanto,

Ao ver-se uma violeta, uma hortênsia qualquer,

Não se diz que essa flor é uma linda mulher?

 

PIERROT

Colombina, é encantador

Ouvir, a alguém que nos quer,

Dizer que a mulher é flor,

E a flor é também mulher.

 

Será doce, meu amor,

Quem te vir e te disser:

Esta mulher é uma flor!

E esta flor é uma mulher!

 

COLOMBINA

Já que a palavra flor também é feminina,

Borda-me um madrigal, mostrando a Colombina

ue se a flor é mulher, a mulher sempre é flor,

Faze-me desta ideia um soneto primor.

 

PIERROT

Improvisando, colhendo uma rosa e sorrindo a Colombina

 

Quem há que, ao ver uma mulher,

Não tem a ideia carinhosa

De compará-la a uma formosa,

A uma querida flor qualquer?

 

Diz-se, daquela a quem se quer,

Ser ela a "Flor Maravilhosa",

Inspiradora como a rosa,

Ou como o lírio rosicler!

 

Embora antigo, é sempre belo,

Por ser exato, o paralelo.

Justo será quem o fizer.

 

E ainda mais justo quem dissesse:

- Que linda flor! até parece

Mulher!

 

COLOMBINA

Bravo! Caro Pierrot, o teu soneto é lindo!

 

PIERROT

E eu fi-lo à proporção que te via sorrindo...

 

COLOMBINA

Já que metrificar tão agradável é,

Da mulher e da flor, faze-me um triolé.

 

PIERROT

Improvisando, dirigindo-se a Colombina

 

Esta mulher é uma flor!

Encanta quem tal disser.

Mas é comum o louvor:

Esta mulher é uma flor!

Por isso manda o primor

Dizer que a flor é mulher.

Esta mulher é uma flor!

Encanta quem tal disser.

 

COLOMBINA

Bravo! Faze-me ainda, ó Pierrot adorável

Numa sílaba só, um soneto impecável

 

Faze-me as quadras, ó Pierrot,

Com a rima em a, com a rima em ô;

Pois um soneto que é perfeito,

Sendo a rigor, deve ser feito,

Variando as sílabas finais,

No cromatismo das vogais;

Com duas rimas nos quartetos,

E também duas nos tercetos;

Pois sendo assim, dis Boileau,

Vale um poema, Pierrot.

 

Faze um soneto sobre o aroma,

Que, inebriando a quem o toma,

É como um suavio abrasador

Que, apaixonada, oferta a flor.

 

PIERROT

É como um beijo, sim, é talvez uma prece

Esse ósculo ebriante e que à noite parece

O eco de certa voz que nos encantará!

Perfume evanescente e misterioso que a

 

Vo-

Gar,

Ro-

Sar

 

O

Ar

Do

Lar,

 

Na

Flor

 

Por

A-

Mor!

 

COLOMBINA

No teu verso, Pierrot, a leveza sorri.

É em seda de Macau, renda de Chantilly,

Que costumas bordar e florir teus tercetos,

Teus rondéis e rondós, teus pantuns e sonetos?

Oh! não pode existir maior lavor do que há

No virelai, no cassidé, na moalaká!

 

PIERROT

A ciência de rimar, o bem trovar, à antiga,

Lembra-me a intrepidez, minha formosa amiga,

Dos ginastas que, sobre uma corda a vibrar,

De tão tenso o metal, espaventeiam no ar,

Dando pulos-mortais, pondo os pés para cima,

Tendo, numa das mãos, um dixe irial, que é a rima,

Guizo multicolor, omnicolor, que faz

O acrobata fulgir, sobre os bicos de gás,

Vindo da móvel prancha à corda, de repente,

Virtuosíssimo, salta, elastissimamente,

E a sua alta figura, ágil, de volatim,

Cambalhota, a subir, foge do trampolim,

Fura o teto do circo, e, sobre as nuvens, pelas

Alturas, vai rolar no esplendor das estrelas!

 

COLOMBINA

Glória! Mas será sempre a Arte um salto mortal,

Prodigioso equilíbrio, ultrapiramidal,

Como o surto do teu mago funambulesco,

Ícaro saltimbanco, Auriol banvillesco?

 

PIERROT

Ars Una, Species Mille. A Arte é o Azul! O amor,

A harmonia infinita a sorrir numa flor.

A Arte é bem como a flor: tem espinhos, querida,

Mas só ela perfuma a tristeza da vida.

O poeta é para nós tal qual o rouxinol.

Seu sonho inspirador é como a luz do sol,

Que, a tudo quanto beija, oira de alacridade.

A Arte, sendo o martírio, é uma fatalidade.

Não se pode impedir, ninguém pode evitar

Que um rosal se abra em flor e haja espumas no mar.

Já leste alguma vez "Florise" de Banville,

Jóia como não há quem mais fina burile?

Nesse poema se vê, com ternura e prazer,

Que quem nasceu artista, artista há de morrer.

 

COLOMBINA

(Distraída)

 

Quero agora, Pierrot, no meu leque de fada,

A tua profissão de fé, numa balada.

Dá-me o teu braço, e vem, sob o dossel do luar,

Nas varetas de um leque a tu'alma espelhar.

 

Desaparecem, muito unidos, no jardim solitário.

 

Cena IV

 

Desde o encontro de Pierrot e Colombina, volta e meia aparece, escondendo-se por entre as árvores, velando-se na bruna, a silhueta simiesca de Arlequim

 

ARLEQUIM

 

Entra arremedando Pierrot, cantando desafinadamente, mefistofelicamente, a velha ária de carnaval. Depois, fingindo tocar bandurra, trauteia as três quadras da satireta

 

NA MÁSCARA DE COLOMBINA [*]

 

Para os meus olhos, Sereia,

Mesmo vestida, andas nua:

És mais alva do que a lua

Cheia.

 

Também o mar, como tu,

Trajando espumas de gaze,

Deixa mirar-se e anda quase

Nu.

 

São de nuvens de oxigênio

Teus vestidos? São de vidro?

Ou são de vapores de hidro-

Gênio?

 

[*] Música de Bastos Tigre

 

Mudando de tom. Dirigindo-se ao público.

Ah! sim, tenho o dever,

Mesmo o prazer,

De apresentar minhas credenciais.

Se nem de nome me conheceis,

Com isto nada perdereis...

Mas o fato é que sou conhecido demais.

Sou eterno, imortal

E foto-fulgural!

Tenho nas mãos todo o poder papal,

Todo o prestígio mundial!

Assim, com ar de sizudo,

Abelhudo,

De todos faço um estudo,

E eis tudo!

 

Impando, pimpando, movendo as pernas como compassos, pavoneando, piruetando.

 

Eu sou tão fino

Quanto Aretino,

Sendo mais bufo

Do que Tartufo.

Almavivesco,

Hoffmanesco,

E figaresco,

Tenho o sarcasmo

Do grande Erasmo.

Sou Cagliostro, a raposa,

Em que mexer ninguém ousa.

Cético,

Eclético,

peripatético, estrambótico,

melodramático e pirótico,

Quando é preciso, faço das minhas:

Vou saindo, às rebatinhas,

E dando adeus de gatinhas.

Eu sou a Avó,

Que tem na pele

Toda a peçonha de Noccoló,

O Macchiavelli!

Assobiando, casquinando.

Sou sacripante,

No revirete,

Recalcitrante,

Sempre pimpante,

Pintalegrete.

O Heroi-Eloi,

O pisa-verdes, o pisa-flores

De cujas dores

Ninguém se dói.

Fantasmagoricamente,

Abracadabrantemente,

Na minha demonolatria,

Pansofia,

Meus argumentos a priori,

A fortiori,

São os mesmos de quem julga

Ter a orelha atrás da pulga.

Ah! sou Doutor em audácia,

Em filáucia, contumácia,

Pertinácia!

Sei obtusangular, mas com sutileza,

E o adversário na empresa

Hipopotamizar,

Rinocerontizar,

Quando, no ardil do aranzel,

Me urge exercer, executar

Meu papel

De bacharel!

Mereço ou não o laurel,

O espadim

De Frei Thomás,

Capataz

De Satanás?

Trastalastrás,

Viva Arlequim!

Perleudo,

Zombador,

Nego tudo

Quanto for,

Desde a estrela até a flor.

E o meu riso deixa mudo,

Enraivece o Criador!

Oh! Oh! Oh!

Sabaoth!

Cantarejando

Junto de um copo de Lacryma-Cristi,

Nunca ninguém me viu triste.

Mamam os filhos, às vezes,

Sem parar, sem ter canseira:

Mamam na Mãe nove meses,

E no Pai a vida inteira.

Alterando o tom da voz, fanho, tatibitante, sassamelo,

coaxando, cacarejando, gluglutejando.

Sou nervoso,

Prestigioso,

Alto, anguloso.

E fátuo, e ancho,

Meu ser balança

Tal como um Sancho

Que não tem pança.

Por entre os sonsos,

Em desengonços,

Me decuplico,

Me multiplico,

Aos pinchos,

Guinchos,

Botes,

Pinotes,

Mas sendo sempre o mesmo, em toda parte,

Porque, em verdade e reverdade,

O meu talento se reparte

Por toda a humanidade,

Dando saltos mortais,

Moraes, Imorais,

Espirituais.

A mofar ironias

E picardias,

Tenho o estilo trufado de anedotas

E chacotas.

Oh! Oh! Oh!

Sabaoth!

Aprecio a mulher:

E, mesmo sem ser anjo,

Prefiro-a à inteligência de um marmanjo,

Hipocampelefantocamelos qualquer.

Prezo o dinheiro.

Fazem-me dele o companheiro,

Pelo contágio

Do ágio.

Mas, sem ser Pierrot,

Thesaurocrypsonychochrysides não sou.

Gosto de mim, mas sem pudibundismos,

Ou quixotismos.

Prefiro ter remorso a sofrer reumatismo,

A dor física dói: - tudo o mais é histerismo.

Oh! Arlequim, nem a esmo,

Tão bom rapaz,

Seria capaz

De ser o heautontimorumenos, carrasco

De si mesmo.

Porque me inspira horror o ridículo, o asco

Que produz o fiasco.

Sendo mais velho do que Pedro Sem,

Tenho a idade de Adão e de Matusalém.

O Pai dos filhos de Zebedeu,

Sou Eu!

Sou feito de junco, de caucho, borracha.

Comigo ninguém se encaixa,

Porque se escacha,

Escarrapacha.

Enfim, enfim, enfim, enfim,

Fisicamente, Arlequim

É mais belo que Pierrot!

Simulando uma grande vaia, assobiando, atirando batatas

imaginárias, dirigindo-se à orquestra

Fora, fora! Tableau!

Empunha a batuta à destra,

Maestro! - e trêmulo na orquestra!

Em voz soturna, trágico

Mestre,

Mimologo, minestre,

Cheio de empáfia, basófia,

Farofia,

Sábio sutil na ciência

Da estupefaciência,

Se desejas melhor conhecer Arlequim,

Irmão, mira-te em mim!

E, sendo assim

Sempre, sim,

Manequim,

Cabotim,

Machatim,

Malandrim,

Beleguim,

Benjamim Cherubim.

Serafim-Valentim,

Burlantim,

Berbequim,

Soterim,

Galopim,

Lascarim,

Em Vladivostok ou Pequim,

Tungubutu ou Turim,

Socotorá ou Tonquim,

Madagascar ou Berlim,

No Vaticano ou no Kremlin,

De batina ou de escarpim,

Quem nunca perde o latim?

Quem não se mete em motim,

Por não ser espadachim?

Quem, mascarado a nanguim,

Judas-Pasquim,

Caim-Mirim,

É o herói do folhetim,

Da charada e do anexim?

Quem é, tim-tim-por-tim-tim,

Que, sem gastar um florim,

Um schelling,

Em meio do torvelim,

Que lhe faz o galarim,

Redobrando o parolim,

Com ares de mandarim,

Empáfias de paladim,

Sacudindo o pingalim,

Mas, com artice e quindim,

Saboreia o amendoim,

Come todo o talharim,

E, por fim,

Devora inteiro o pudim?

Arlequim!

Pois se assim

É,

Glória, ao Imperador, Dominador, Senhor,

Rufianaz, ladravaz, suspicaz, famanaz,

Embaixador

De Satanás!

E, remirando-se em mim,

Cada Pasquim,

Batendo o pé,

Fala um banzé,

Lolé,

Grite, olaré,

Viva Arlequim,

Bravo, Arlequim!

Hurrah! Evohé!

Cachinando, alternado a voz, sentando-se

Na comédia italiana,

Na farsa veneziana,

Como é sabido,

Sempre, sempre Pierrot

Acabou,

Por ser traído

Por mim,

Arlequim.

Isto de ser marido,

É preciso vocação,

Pode ser um rapaz muito bem parecido,

Não duvido,

E de excelente educação;

Mas poderá não ter

O gênio, a bossa, o sentido,

O jeito de ser marido,

Porque isto é como ser poeta,

Ou profeta:

É preciso nascer,

Ter

O prazer

Do dever

De o ser.

Pode não ser careca,

Não usar óculos pretos,

Mas, com a breca,

É indispensável não fazer sonetos.

Porém então, com quê, Colombina e Pierrot,

Pretendem, desta vez, subornar Astaroth?

Não, nenhures, jamais, todas as negativas,

Vivas,

Positivas.

E

Por que?

Ah! porque eu gosto dela, imensamente.

Parecerá diferente,

Muitíssimo diverso,

Logo à primeira vista,

Por ser Pierrot poeta, artista,

Este caso atual,

Mas é o mesmo, tal qual.

Se eu falo em prosa, se ele fala em verso,

Não quer isto provar que ele goste mais dela

Do que eu. Oculto, ali, por trás da bambinela

Que a bruma faz, por entre as árvores, ouvi

Desde o começo, a patacoada,

Ensalada,

Palhaçada,

Que ambos, a se iludir, titerearam aqui.

Mas o meu caso é o mesmo da farsada...

Só é preciso habilidade,

Originalidade.

Devo achar uma fórmula tão fina,

Que não possa haver fracasso.

Tão capciosa e estranha,

E de tal artimanha,

Que Colombina

Caia no laço,

Como um inseto cai numa teia de aranha.

Sim, sim, pensemos,

Conjeturemos,

E pratiquemos:

Saber prever,

Para poder prover.

Não sou nenhum

Portento imenso;

Tenho bom senso,

Senso comum.

Gosto dela, é verdade, é-me agradável vê-la;

Mas, por isso, não vão, por acaso, supor,

Que me sinta capaz de a julgar uma estrela,

De imaginar talvez que ela seja uma flor.

Nem estrela nem flor; é mulher, e me excita.

Vale mais do que a estrela e a flor, porque é bonita.

Praz-me a fruta; Pierrot dá preferência à flor.

Questão de gosto, de paladar,

Controvérsia do olfato e do sabor.

Para mim, Colombina é um pêssego maduro,

Durasno que aprecio e que, há meses, procuro,

Sem nunca o achar,

No meu pomar.

É tudo, nada mais do que isto, sem poesia,

Caraminhola maluquice, fantasia.

Pierrot ama o perfume; eu prefiro o sabor.

 

Entra Colombina, de costas atirando beijos a Pierrot, que, muito

ao longe, entreaparece, na platina de luar, sentado,

a escrever-lhe no leque.

 

CENA V

ARLEQUIM

Oh! Que sorte! Sozinha!

 

COLOMBINA

Falando a Pierrot, alto, à distância

Escreve, meu amor.

 

ARLEQUIM

Boa noite, menina.

 

COLOMBINA

Voltando-se repentinamente, assustada, receosa.

Arlequim! Que deseja?

 

ARLEQUIM

Com pedanteria

Nada. Cumpre um dever, quem saúda e corteja.

Cumprimentei-a só, nada mais, nada mais.

Mas, se acaso a ofendi, não o farei jamais.

E suplico o perdão que merece um escravo.

 

COLOMBINA

Rindo, com cerimônia e polidez mas tuteando-o.

Oh, não, de modo algum, não há razão de agravo.

Foste apenas gentil. Se houve tal quiproquó,

Foi por não te esperar, e me assustar, isto só.

 

ARLEQUIM

Com voz lacrimosa, humildemente.

Fazes bem em perdoar, porque eu te amo, oh! eu te amo!

Amo sem pavonear, amo sem esparramo,

Porém amo também, como todos, e sou

Mais sincero em amor que o teu noivo Pierrot.

 

COLOMBINA

Sarcástica, endiabradamente.

Arlequim, Arlequim, gramático, sofista,

Paparrotão, parlapatão, capitalista,

Esgareiro, mordaz, contumaz, pervicaz,

Boneco de entremez, alma de Barrabás,

Caricatura da perfídia num só traço,

Títere jocosério, exótico palhaço,

Monumental, Sesquipedal, Transcendental!

Sabes que quer dizer:

Soletrando.

Ar-le-quim, afinal?

Quer dizer roupa velha, os restos da iguaria,

A comida estragada, a vitualha já fria,

Que se dá para os cães, que se atira a um mastim!

Arlequim, Arlequim, Arlequim, Arlequim!

 

ARLEQUIM

Serenissimamente.

Podes, podes dizer tudo quanto quiseres:

Para mim, serás sempre a melhor das mulheres.

Monologando.

O pêssego me agrada; o seu sabor é bom;

Pierrot ama o perfume, o frescor do bombom;

Eu, a fruta me apraz; e aspirando-lhe o cheiro,

Se me lembro da flor, bendigo o pessegueiro.

E se o pêssego é doce, e se me agrada assim,

Que importa que ele goste ou não goste de mim?

Amável, cordato, procurando, com levez, tocar,

tomar a mão de Colombina.

O teu mal é querer, alma ingênua, iludida,

Conseguir, realizar a poesia na vida.

Romântico, ninguém o é por seu bel-prazer;

Nem tanto quanto julga, ou desejara ser.

Sim, são coisas à parte, inteiramente à parte,

O ramerrão burguês e o tresvario da arte.

Nunca um pai de família, uma coluna da ordem,

Por mais que digam não, e protestem, discordem,

Poderá versejar, ou metaforizar,

Desde que falte o pão na calma do seu lar.

Pensa, pondera, vê.

 

COLOMBINA

Ah! como a vida é triste!

 

ARLEQUIM

Não existiu jamais, não houve, não existe,

Relação entre a vida e a beleza ideal.

O que Byron tentou, ser artista integral,

Homem e Poeta, ao mesmo tempo, confundindo

A existência serena e o seu desejo infindo,

É impossível na terra, é um sonho insano, só

De um cérebro demente, e que me inspira dó.

E Pierrot, como aos seus próprios olhos se pinta,

É uma figura à Mil Oitocentos e Trinta!

Ser incrível, livresco, irreal, à Musset.

 

COLOMBINA

Pois é pena, Arlequim. Amo-o porque ele o é,

Quimérico, bizarro, impecável, divino,

Mais brilhante, talvez, do que eu própria imagino.

 

ARLEQUIM

No mesmo tom.

Eu, sim, vulgar, burguês, como o público diz,

Poderei adorar-te e fazer-te feliz.

Vem pois comigo. Pensa. Olha, escuta-me ainda:

És moça, e a mocidade, embora sejas linda,

Não dura eternamente. Um dia chegará,

Em que, volúvel sempre, ele te olvidará.

Como o poeta jamais envelhece, a poesia

É a aurorreal, juvenil, primavera do dia.

Teu poeta há de encontrar outra paixão qualquer,

Ou te abandonará, como a tanta mulher.

E, então, velha, sozinha, a chorar, ao braseiro,

De mim te lembrarás, do fiel companheiro,

Que nunca te esqueceu e que sempre te amou.

Vamos, vem, Colombina, abandona Pierrot.

 

COLOMBINA

Jamais o esquecerei: amo-o profundamente.

Quero morrer de amor, mas por ele somente.

Eu não poderei ser, jamais poderei ser,

Como tanta mulher, a escrava do dever.

Nunca suportarei, humilhada e passiva,

A comédia comum, a farsa pungitiva

Dos forçados do amor. Isto não me convém.

Se eu não for de Pierrot, não serei de ninguém.

 

ARLEQUIM

Monologando.

Em verdade, falhou todo o plano traçado.

Novo bote, Arlequim. Senhor Deus do Pecado,

Satanás, meu Irmão, inspirai-me, valei

Ao vosso embaixador...

Dando um salto e cascalhando mefistofeticamente.

Achei, achei, achei!

Virando-se par Colombina, com afetada cortesia.

Amas a um semideus, a uma alma tão completa

Que, num homem, condena a inspiração do poeta.

Bravo! Pierrot merece esta predileção,

Este afeto fervente, esta religião.

Mas analisa bem que, pelo teu egoísmo,

Todas as almas, que têm ânsia de lirismo,

Vão curtir o dolor, vão ficar sem poder

Contemplar a beleza, encarnada num ser.

A adoração do ideal, intangível, risonho,

Quando Pierrot for teu, realizando o teu sonho,

Vai desaparecer, e os poetas, pelo teu

Orgulho, chorarão o ideal, que morreu!

Porque, segundo crê a paixão idealista,

A beleza perfeita é a que nunca foi vista.

Tu, cruel, matarás a beleza, tu só,

Pela tua loucura, hás de torná-la pó.

E a justa imprecação de milhares de seres,

Sobre ti rolará, quanto tempo viveres!

Quem mais há de sofrer, maldiçoar-te, porém,

É o teu próprio Pierrot, o teu único bem!

Pensa pois; vamos; vê; considera; reflete;

Repudia de vez teu Pierrot de Willette.

 

COLOMBINA

Desvairada, crispando os dedos, entre soluços

Tens razão, tens razão, Arlequim, tens razão:

Para que continue a existir a paixão,

O ideal que refloresce, o sonho imarcescível,

A perpétua ambição da beleza intangível;

Para que haja na terra a perfeição ideal,

Urge sacrificar meu amor imortal.

A beleza, ó Pierrot, que jamais se conquista,

É mais bela, talvez, sonhada do que vista.

Entrevejo-a, e por isto é que choro, ao morrer.

Não hesitemos, pois, entre o sonho e o dever.

Arlequim, és comum, trivial, meu amigo.

E é só porque és vulgar que fugirei contigo.

Entretanto, ao partir, quero dizer-te enfim,

Que eu não te amo, Arlequim, que eu não te amo, Arlequim!

Fogem

 

CENA VI

PIERROT

Abstrato, tendo, no leque, de marfim e seda, a

 

BALADA À COLOMBINA DE WATTEAU

 

O artista, o mágico da cor,

Que as gemas fúlgidas estima,

Pierrot-Théo faz de uma flor,

De ouro e de esmalte, uma obra-prima.

E, incomparavelmente, prima

Pela sutil perícia do

Modo por que desenha e anima

A Colombina de Watteau.

 

Don Juan do belo, sonhador,

Que em lavorar não desanima,

Com tal destreza e tal amor

Usa o buril, maneja a lima,

Que a forma, límpida e opima,

Fulge, deslumbra e canta no

Verso, de sorte que ele exprima

A Colombina de Watteau.

 

Ourives-Poeta, rimador,

Mestre impecável desta esgrima,

Faz maravilhas no trasflor.

Por mais que o metro se comprima.

Pinta na estrofe, em pantomima,

Todas as Musas e, com o

Perfil de Venus, põe acima

A Colombina de Watteau.

 

                OFERTA

 

Princesa! Flor! Fada! Myrima!

Glória à finura! E que Pierrot

Oferte um beijo, em cada rima,

À Colombina de Watteau.

 

Pierrot, ao terminar a leitura da balada, dando pela

ausência de Colombina, desespera, chama-a, chora.

 

Colombina! Ninguém! Perdê-la me alucina!

Onde estás, onde estás, meu amor, Colombina?

Colombina, onde estás, em que mundo, em que céu,

Estrela, há de a ilusão cobrir-te como um véu?

Foi um sonho, mas nunca eu te vi como agora!

Perfume eterno que me embriaga e se evapora!

Até quando, até quando hei de buscar-te em vão,

E sentir-te viver só no meu coração?

Não, tu me amas, eu sei, há pouco eu te beijava!

Eras a Musa que é rainha, sendo escrava!

E, súbito, fugiste, e, como sempre, estou

Sem saber se és mulher ou sonho de Pierrot.

Sorrindo, com infinita tristeza

Enfim, bendita seja a minha dor de artista,

Se a beleza sonhada é mais bela que vista.

E que esta fantasia, esta canção ao luar,

De tão fino sentir e tão lindo rimar,

Termine alegremente, à maneira galante

Das comédias de França...

 

COLOMBINA

Entrando com Arlequim

Ao sabor elegante

De Charles d'Orléans e Joffroy de Rudel.

 

ARLEQUIM

Terminemos então...

 

COLOMBINA

Recitando um rondel.

 

Os três, de mãos dadas, vêm até a boca de cena,

e dizem, galanteadoramente, o rondel de despedida.

Luz em todo o teatro.

PIERROT

Batei as palmas.

 

COLOMBINA

Aplaudi.

 

ARLEQUIM

Minhas Senhoras, meus Senhores.

 

COLOMBINA

Um ato. Um sonho. Três atores,

Num parque, ao luar, em travesti.

 

PIERROT

Teatro dos tempos de Lulli,

De Couperin, dos Philidores...

 

ARLEQUIM

Batei as palmas. Aplaudi,

Minhas Senhoras, meus Senhores.

 

COLOMBINA

Wateau,

 

PIERROT

Willette,

 

ARLEQUIM

Gavarni,

 

PIERROT

Sábios sutis e sedutores,

Foram os rês inspiradores

Desta bluette à Glatigny.

 

COLOMBINA

Batei as palmas. Aplaudi.

 

- PANO -

 


Imagem: reprodução parcial da página 79

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