Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006q14.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 02/13/14 14:09:01
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (17-N)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é O Crime do Estudante Batista, aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 pela Companhia Editora Nacional (São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Bahia - Pará - Porto Alegre), em segunda edição. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 205 a 221):

Leva para a página anterior

O crime do estudante Batista

Ribeiro Couto

Leva para a página seguinte da série

O Viajante do Mundo Ilustrado

Conversávamos, às vezes, um minuto ligeiro. Era um homem pequeno, grosso de espáduas, cabeçorra, testa saliente, cara rugosa, o bigode castanho com uns raros fios brancos, os lábios caídos nos cantos num sorriso benévolo, de perdão geral. Parecia conformado com tudo. Falava pouco e nunca de si próprio. Geralmente comentava a cor do dia, dizia que o tempo estava firme, ou que o tempo não estava firme, elogiava uma fita cinematográfica, queixava-se dos criados de restaurante no Rio de Janeiro, elogiava o presidente da República discretamente.

Nunca o vi senão com a mesma velha roupa de casimira cinzenta desbotada, o mesmo colarinho nem sujo nem limpo, a mesma gravata rustida, as mesmas botas poeirentas e esfoladas. Mas a sua fisionomia tinha uma distinção simpática e nobre a que o sorriso dava uma nuança imperceptível de bondade filosófica.

Na redação do Mundo Ilustrado, uma saleta abafada num terceiro andar da Rua 7 de Setembro, ele nunca tivera, nas palavras dos raros momentos de ócio, uma atitude saliente, uma afirmação. O sou tom habitual era a doçura, um receio exagerado de magoar, uma preocupação secreta de delicadeza. De modo que nunca produziu em mim, ou em qualquer outra pessoa, a impressão do contato positivo da sua personalidade. Aparecia duas ou três vezes por semana, sempre a carregar uma pasta de couro, lustrosa pelo uso. Quando não estava, eu não lhe dava pela falta.

Um dia perguntei ao sr. Vieira, o diretor-proprietário do Mundo Ilustrado:

- Como se chama esse senhor da pasta, baixote, simpático?

O sr. Vieira admirou-se:

- Pois você, há dois meses trabalhando aqui, ignora ainda que esse é o Blanco, o agente de anúncios?

- Então é espanhol?

- Da Galiza.

- Tem mesmo o tipo. Mas, não se lho nota, quando fala.

- Claro. Está desde menino no Brasil.

Fiquei então sabendo que aquele homem se chamava Blanco, era galego, vivia desde menino no Brasil e exercia as funções de agente de anúncios do Mundo Ilustrado.

O mensário ia no seu segundo número. O sr. Vieira, que me chamara para escrevê-lo da primeira à última página, dando-me 300$000 e o título de redator-secretário, confiou-me uma tarde os abalados negócios da administração:

- Meu caro, o Mundo Ilustrado pegou, não há dúvida. Não pegou?

- Pegou, sim, senhor.

- Mas nós não podemos viver exclusivamente do Rio de Janeiro. Precisamos conquistar o interior. O interior é que é a mina. E nessas condições temos que arranjar um viajante experimentado. Que acha você?

Eu não conhecia nenhum viajante de jornais, ou mesmo alguém que quisesse adotar essa profissão. Em todo caso, assim com a displicência de quem dá um palpite sem fé, citei o nome do Blanco.

O sr. Vieira deu com a canhota um violento soco na palma da mão direita, exclamando ao mesmo tempo que se erguia:

- Vamos tomar um café!

Sempre que alguém lhe apresentava um alvitre vantajoso, ou lhe pagava uma conta, ou lhe propunha um negócio apetecível, o sr. Vieira tinha aquele modo simples e evidente de manifestar o seu prazer: dava um soco na palma da mão direita e convidava imperiosamente para um café.

Saímos. Durante todo o tempo ele falou das imensas possibilidades econômicas que esperavam o Blanco aí por esses Estados do Brasil. Via-se rico. Chegou a insinuar-me que aumentaria o meu ordenado para 400$000.

No dia seguinte o sr. Vieira veio queixar-se do sócio solidário do Mundo Ilustrado:

- É uma besta aquele Teitel. Não quer dar o dinheiro para o Blanco empreender a viagem. Diz que a revista já está no segundo número e ele até agora só tem feito é tirar dinheiro do cofre. Cretino! Como se isso de jornal fosse uma maquinazinha de botar dinheiro por um lado e sair o dobro no mesmo momento pelo outro.

O Mundo Ilustrado representava uma tentativa audaciosa do sr. Vieira, antigo gerente de vários jornais desaparecidos. Ele se orgulhava das relações de outrora e tinha o hábito de se gabar dos elogios que, no tempo da Folha do Rio, fazia José do Patrocínio à sua habilidade em conseguir anúncios no comércio português.

Agora estava muito decaído. Mas conservava um entusiasmo lírico de rapaz. Sua imaginação, ao contato de projetos de negócios, incendiava-se. Conseguira que um judeu seu conhecido, um Teitel, dono de uma fábrica de guarda-chuvas, lhe fornecesse quinze contos para fundarem "um vasto magazine mensal que seria o primeiro da América do Sul". Mas o sr. Teitel, que pela primeira vez se metia em coisas de imprensa, achou que a progressão de despesas dos primeiros números do Mundo Ilustrado poderia levá-lo, não à ruína, mas a perder mais do que os quinze contos. E disse apenas:

- Agora vamos fazer o resto com os lucros.

Via-se, portanto, o sr. Vieira num apuro: se não mandasse o Blanco viajar pelo interior, arranjando anúncios e assinaturas, a revista estava perdida; ao mesmo tempo, não podia mandá-lo por falta de dinheiro. Nessa situação, o melhor era desfazer o contrato com o judeu. E assim fez, lamentando-se depois para mim:

- Uma revista que tinha pegado e pegado bonito! O melhor magazine que até agora se fez no Brasil!

Nunca mais vi o sr. Vieira senão de passagem, às carreiras. É um homem que anda continuamente apressado. Parece levar mil negócios na cabeça.

Blanco, esse é que desaparecera completamente. Aliás eu não percebi o seu desaparecimento senão meses depois, quando, num bar, uma tarde o sr. Vieira caiu de súbito na cadeira a meu lado. Pediu um chope ao criado e exclamou, passado o lenço pela testa suada:

- Uma trabalheira dos diabos, essa história do crime! Você nãopode imaginar!

Naturalmente, não sabendo de qual crime se tratava, fiquei olhando à toa para ele, como quem espera uma explicação. Ele percebeu e acrescentou:

- O Blanco, não sabe?

Como já me tivesse inteiramente esquecido do agente de anúncios do Mundo Ilustrado, continuei com o mesmo ar de ignorância, indiferente.

- O Blanco, do Mundo Ilustrado, o espanhol!

- Ah! - fiz eu satisfeito pela súbita recordação da sua figura simpática.

- Pois deu um tiro na mulher.

E explicou-me: o Blanco era casado, havia dez anos, com uma italiana. Como tinha três filhos e aquela profissão de arranjador de anúncios de revistas e jornais não lhe rendesse o suficiente para o sustento da família, a mulher se empregara no Hotel dos Estrangeiros como arrumadeira. Na casinha do Encantado, onde moravam, os meninos ficavam o dia inteiro entregues a uma criada preta, que pagavam com sacrifício. Acrescia que a mulher pelas circunstâncias do emprego, só ia vê-los uma vez por semana. Também não lhes tinha afeição excessiva.

- E afinal?

- Encontrou-a uma noite de braço dado com um garção do hotel, aos beijos pela Avenida Beira-Mar. Deu um tiro nela.

- Matou-a? - indaguei com uma ponta de emoção.

- Errou o alvo.

Tive um gesto de displicência. Ia mesmo, talvez, insinuar um pensamento cruel, mas o sr. Vieira não mo permitiu, todo preocupado em me contar os esforços feitos em benefício do Blanco.

- Infelizmente, não foi possível conseguir a impronúncia. Ah! se o Pinheiro Machado fosse vivo, tinha-se pistolão, meu amigo! Enfim, o homem vai a júri. Agora, para a absolvição está-se cavando. Vamos ver o que se consegue. Já lhe arrumei advogado. Ontem...

Contou-me várias coisas, que eu não ouvi, perdido em abstração preguiçosa. Houve um certo momento em que perguntei:

- E a mulher é bonita?

O sr. Vieira, de repente, deu à fisionomia uma expressão de pena tão dolorosa que instintivamente o imitei:

- Horrorosa! É o que se pode dizer: uma mulher horrorosa! Antipática, magríssima, velha, impertinente... Detestável! No entanto, o criado é um rapaz interessante.

Tive pena do criado do Hotel dos Estrangeiros e achei o Blanco mais desgraçado ainda.

Decorreram semanas. É bem verdade que o tempo passa sem a gente sentir. Pois quando tornei a encontrar o sr. Vieira, foi como se o tivesse largado na véspera. Talvez essa impressão se explicasse pelo fato de serem estas as suas primeiras palavras, quando deu comigo:

- Unanimidade de votos. Privação de sentidos.

Era uma rua movimentada, com automóveis cruzando-se e gente aos encontrões. Desta vez percebi logo do que se tratava. E, lembrando-me da pintura que o sr. Vieira me fizera da mulher do Blanco, perguntei com um ar distraído, soprando a fumaça do cigarro:

- Privação de sentidos? Ah! sim? Realmente?

Até o dia em que eu soubera do crime, não me passara pela ideia a mínima opinião sobre o Blanco. Nunca o "achei" isto, nunca o "achei" aquilo. Ele não se fixara sequer na minha atenção. Nessa tarde, porém naquela rua movimentada, tive pela primeira vez uma sensação nítida desse homem: e foi uma repugnância irônica.

Tempos depois, no entanto, a impressão variou. Vim a estimar o Blanco, com essa estima leal e doce que nasce da compaixão desinteressada.

O caso tem uns breves antecedentes históricos. O sr. Vieira, muito ativo como sempre, conseguiu arranjar, com um comerciante alemão, alguns contos de réis para continuar a publicação do Mundo Ilustrado e impô-lo, ao Estado de Minas e outros, como "um vasto magazine mensal, o primeiro da América do Sul". Porque no Rio de Janeiro, como já está dito, a revista pegara.

O sr. Vieira mostrava assim a sua extraordinária força de vontade, que ele próprio elogiava, acrescentando que somente devido a essa grande qualidade sua não havia de estar longe o dia em que, muito rico, devesse abandonar, pelo automóvel, o seu modesto bonde Lins de Vasconcelos.

Comunicou-me o achado à porta de uma farmácia. Fez-me parar, agarrou-me pelos ombros e berrou nos meus ouvidos:

- Eu sempre disse que alemão é que é gente! Alemão é que sabe ver onde é que há ou não há negócio!

Largou-me, súbito, e deu um soco da canhota na palma da direita:

- Vamos tomar um café!

O que ele queria de mim era simples: que eu lhe fizesse a revista de novo. Dei-lhe uma resposta vaga. E logo, com certo espanto de mim mesmo, perguntei vivamente:

- E o Blanco?

- Ah! não lhe disse ainda? Vai afinal viajar para nós. Ora se vai! Desta vez não precisamos daquele judeu cretino, que nos impediu de estarmos a esta hora a caminho da fortuna, talvez!

E fazia vitoriosos gestos afirmativos, martelando o ar com o seu forte punho da canhota, como se martelasse, num esplendor de vingança, a cabeça irredutível do sócio de outrora.

A tarde de ontem foi para mim uma das mais agradáveis tardes deste inverno. Choveu pela manhã e o resto do dia esteve numa indecisão cinzenta e melancólica; o céu pesado, de escuras nuvens navegantes, as árvores úmidas, o vento soprando fino e frio, num desconforto. Dias assim eu adoro. Sinto uma tristeza aguda. Perco o instinto do trabalho. Vem-me uma vontade insinuante de ficar parado, desejando coisas perdidas ou que apenas imagino.

Eu estava justamente à porta daquele café da Avenida, junto ao cinema, olhando, por entre o fumo do cigarro, o desconsolado céu de plombagina, quando uma voz cariciosa pousou de manso no meu ouvido.

- Há quanto tempo, amigo!

O Blanco estendia-me a grossa mão com um sorriso tão tranquilo, tão simpático, tão "consciência do seu dever", que lhe sorri também, apertando-lha.

Falou-me do tempo, da altura do prédio do Jornal do Comércio, de um violinista chileno que estava para chegar, em seguida do tempo, mais uma vez. Depois, amável:

- Então o Mundo Ilustrado vai reaparecer, dirigido pela sua pena brilhante?

- Qual pena brilhante! Aliás, eu não sei se aceito o convite do sr. Vieira. Ando sobrecarregado de trabalho.

- É muito bom quando um homem anda sobrecarregado de trabalho. Para mim é o maior prazer, o trabalho.

- Conforme os dias. Num como o de hoje, assim, eu desejaria ser, por exemplo... ser... ser...

Hesitei em fazer ao Blanco uma confidência de sensibilidade. Ele quis saber, por cortesia:

- Ser quê?

E então menti:

- Ser um agente de negócios, um bolsista um corretor, um homem agitado... Não há dúvida, o trabalho é o maior prazer da vida! Ah! nestes dias cinzentos que vontade de mover-me, precipitar-me para a vida como um burguês cheio de embrulhos para o seu bonde transbordante da tardinha, na hora do jantar...

Pus-me a rir do que dissera, a rir nervosamente na cara impassível e simpática do viajante do Mundo Ilustrado.

- Pois eu sou exatamente como o senhor - comentou ele por fim, na satisfação de sentir-se interpretado.

E tive pena daquele homem, uma pena dolorosa e imensa.

Pena maior, porém, foi depois. Tendo-me participado, exuberantemente, que ia partir para Minas, "mover-se", "agitar-se", amorteceu-se-lhe o brilho dos olhos, baixou a voz, pôs-me delicadamente a mão no braço:

- É uma tristeza, a vida.

Compreendi e tive um choque de constrangimento: ia falar-me da mulher feia, do crime, de tudo.

- Aquela mulher... Oh! Não está ainda contente de fazer desgraçados os meus filhos e a mim. Quer mais... É um demônio.

Eu ia dar à fisionomia uma expressão de ignorância delicada, ia fingir, por bondade, que não sabia do seu drama. Refleti, porém, que seria mais delicado ainda não o obrigar à narração penosa, e deixei que ele fosse falando.

- Quanta gente ruim por esse mundo! O senhor decerto não sabe de um detalhe: quando ele foi depor na Delegacia, acusou-me de extorquir-lhe dinheiro, de forçá-la a pedir dinheiro ao outro.

Os seus olhos estavam límpidos, secos e sofredores. Continuou:

- E agora, para me atrapalharem a vida, deram queixa de mim, que eu ando a dizer aos meus amigos que hei de matar os dois etc.!

Ia partir no dia seguinte para Minas. Internara os três filhinhos no colégio. Estava a sua vida escangalhada. Não podia compreender. Às vezes era como se estivesse sonhando.

Eu então, sentindo sem remédio o caso daquele homem, apiedei-me ainda mais, muito mais... e pus-me a dar conselhos fáceis:

- Não se incomode... As mulheres enganam sempre... Todos enganam, tudo engana... Mas principalmente as mulheres... Vá indo pela vida que há de encontrar coisas piores...

Como ele sacudisse os ombros, não podendo, com toda a razão, dizer sim àquelas palavras frívolas, tomei por outro caminho, gravemente:

- Ao senhor... Desculpe a pergunta: que idade tem?

- Quarenta e oito anos.

- Ao senhor isso aconteceu aos quarenta e oito anos. Deu um tiro, foi preso, respondeu a júri e aqui está. E se lhe tivesse acontecido aos vinte: Daria um tiro em si mesmo, possivelmente no ouvido, e estava acabado. Não seria pior? Não seria muito pior? Enquanto que nesta idade o tiro foi nela ou nele. Além de tudo, falhou. Ah! dê-se por muito feliz! Sucedeu-lhe o caso na madureza - erga as mãos ao céu e agradeça a Deus!

Deu de ombros ainda, sorriu com profunda mágoa e disse devagar:

- Já não posso procurar oura mulher... O hábito, sabe? Era a mãe dos meus filhos, a companheira de quinze anos de vida... Não posso procurar outra. Tenho agora de continuar só, sozinho... E esta certeza é que me abate, esta certeza é que me arruína... Já não posso ter prazer na vida.

- E então educar os filhos já não é prazer?

Sorriu com uma tristeza maior, tão funda e lúgubre que um frêmito me passou pelo corpo.

- E depois, quando os pequenos me perguntarem: "Papai, onde está a mamãe? Por que é que ela não nos vem ver mais? Ela já não gosta da gente?" - terei de mentir, como já menti... Terei de inventar desculpas que me humilharão, mais do que a própria verdade talvez... Creia, doutor: é um sofrimento para mim. Que mulher louca!

Nuvens pesadas continuavam a arrastar-se pelo céu baixo, vindas do mar. Fazia um pouco de frio. A multidão enchia a calçada, num vaivém incessante. No cinema, ao lado, entravam bandos de moças e rapazes. Os autos, em filas compactas, circulavam com dificuldade, buzinando desesperados. Cinco e meia da tarde, seriam. Uma luzinha se acendera, longe, num sobrado. Anoitecia cedo e depressa.

Blanco olhava com uma expressão tranquila, quase feliz, a vida tumultuante da rua. Eu procurava nos seus olhos um vestígio de lágrimas. Inutilmente. Ele contara aquilo sem uma violência de dor. O seu sofrimento era manso. A evocação de certos pormenores pungentes é que o perturbava, às vezes, e ele então passava a mão ao longo do rosto, de um lado e de outro, esmagando a pele.

Estivemos certo tempo em silêncio. Afinal, para romper o embaraço que nos entorpecia, soltei:

- Pois é isso, sr. Blanco, a vida é triste!

Ele sacudiu a cabeçorra para a frente, fazendo oscilar os ombros largos. Que homem simpático, estimável!

Daí a um instantinho meteu a mão no bolso, puxou de uns papéis, perguntou-me:

- O senhor já foi a Juiz de Fora?

Respondi que não tinha o prazer de conhecer Juiz de Fora pessoalmente.

- Não conhece ninguém de lá?

- Não, senhor. Noutro tempo, tive relações com uma família que passou lá quinze dias.

- Ah! não serve!

E explicou-me:

- Juiz de Fora é a única cidade importante de Minas para onde não levo cartas de recomendação. No entanto, é das principais. Não lhe parece uma temeridade minha?

Achei que não. O Mundo Ilustrado era um "vasto magazine" e para impô-lo a Juiz de Fora não seria preciso mais do que mostrá-lo. Fosse confiado no próprio esforço, na excelência da revista e no bom gosto de Juiz de Fora.

- De fato, eu sigo muito cheio de confiança. Espero mandar, dentro de uns quinze dias, três ou quatro contos ao Vieira.

- Possivelmente. Eu o desejo bem.

- Não acredita?

- Como não, sr. Blanco?

- Conheço uma parte de Minas. Gente boa. Gente muito boa.

- É isso mesmo. Vá, vá com confiança.

- Vou com muita.

Estendeu-me a direita, sorrindo aquele sorriso calmo e satisfeito. Que ia jantar, preparar as malas e deitar-se cedo para partir pela manhã. Eu não queria jantar com ele?

Apertei-lhe a mão sólida e leal.

- Pois arranje bastante dinheiro. O dinheiro é a base da vida. Desejo-lhe todo o êxito.

- Obrigado...

- E que faça sempre viagens felizes.

- Obrigado, obrigadinho...

Partiu sorrindo. Sua figura pequena e grossa perdeu-se na multidão.

Era noite quase fechada, mas as lâmpadas da Avenida ainda não se haviam acendido. O céu chuvoso, acima da linha em recorte dos telhados, estava quase negro. O asfalto molhado brilhava. Os autos passavam lentos, com os focos enormes varando a penumbra. As vitrinas iluminadas punham projeções fixas nas calçadas onde o povo fervia.

Fui andando também. Ao chegar à Rua 7 de Setembro ia atravessar mas parei para deixar passar um bonde Silva Manuel. Do último banco, alguém agitou o chapéu e disse alto, na passagem rápida:

- Até a volta!

Reconhecendo o Blanco, fiz um gesto instantâneo e segui, no meio da massa. De súbito, a Avenida se iluminou. A multidão pareceu mover-se com mais pressa, mais desejo... E eu tive repentinamente uma alegria frenética, feliz de me sentir, na torrente atordoante da vida, isolado no meio de todos, sem destino como todos, na voluptuosa noite das ruas.