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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (17-o)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é O Crime do Estudante Batista, aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 pela Companhia Editora Nacional (São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Bahia - Pará - Porto Alegre), em segunda edição. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 223 a 228):

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O crime do estudante Batista

Ribeiro Couto

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A Conquista

Agora é a vez do Barbosa!

Então o Barbosa, que era um homem de quem não se conhecia uma só aventura, sorriu levemente e principiou a contar:

"- À tarde, naquele ponto de bondes onde a multidão se aglomera, rumorosa, a rapariga apareceu. Tinha olhos luminosos. Era empolgante. A velha que a seguia, de capa humilde, parecia uma criada. Mas era simplesmente a mãe.

"- Mamãe, chegue-se para aqui.

"A rapariga olhou todas as pessoas uma por uma. Cada olhar transmitia o mistério de um fluído. Todos a desejaram. Eu senti uma paixão delirante, súbita. Dessas paixões...

"Justamente, aqueles olhos se demoraram mais em mim: na largura de meus ombros, no comprimento de meus braços e de minhas pernas, na minha boca, nas minhas pupilas. O exame pôs-me na trama nervosa uma trepidação de luxúria violenta. A velha pareceu perceber o meu desejo enorme, agudo, e encolheu-se olhando a filha com uma proteção infinita...

"De repente a rapariga abriu caminho aos encontrões e atravessou a rua, seguida pela velha. Não me fizera nenhum sinal, mas o fulgor daqueles olhos, tanto tempo fixos em mim, era inequívoco: ela me desejava. Portanto, eu fizera uma conquista, senhores. E segui-a.

"Estávamos na Rua da Assembleia. Ela foi para o lado do porto e, próximo à Rua do Carmo, entrou numa farmácia. Parei na calçada, sob uma árvore, discreto. Daí a instantes as duas saíram.

"A velha, insignificante na sua magreza decrépita, trazia no rosto uma expressão de dor costumeira e irremediável. Que sofrera ela ao pé da filha, há minutos, naquele escuro ar da farmácia, junto ao balcão de vidro? Eu não podia adivinhar o que acontecera lá dentro, mas calculei que houvera, decerto, alguma discussão rápida e terrível, dessas discussões entre mães dominadas e filhas nervosas, imperiosas, elétricas... Pareceu-me despudorado prosseguir na conquista, penetrar na intimidade turva daquelas duas pessoas que não se compreendiam, que se chocavam, que se torturavam. Num dado momento a rapariga me contaria, forçosamente, que não se dava com o gênio da mãe.

"Quando eu, com o delicado pensamento da renúncia, tratava já de esgueirar-me pela multidão e desaparecer, senti que aqueles dois olhos me atraíam, me agarravam. Obedeci, infantil, sem resistência. Demais, a rapariga era esplendida - vamos e venhamos. Oh! tê-la nem que fosse uma só vez! Ouvi-la junto à minha boca, toda ela quente, o corpo num frêmito!

"Acompanhei-a. Seguiu em direção ao Largo da Carioca, alta, elegante, fazendo os homens pararem para olhá-la. E o ritmo ondulante de suas formas era tão exageradamente sugestivo, que eu tinha a impressão, quase a certeza, de exalar-se dela um aroma afrodisíaco. Apressei o passo para senti-lo. Aproximei-me dela, aspirei-a bem de perto, quase a tocar-lhe o pescoço com o meu rosto. Surpreso, senti que ela não tinha cheiro nenhum. Absolutamente nenhum. Foi como se eu constatasse que ela era muda, ou surda, ou que trazia uma perna de borracha... E o desencanto momentâneo de sabê-la inodora, de verificar-lhe aquela monstruosidade sutil, que me surpreendia sobretudo nela, tão provocante, foi para mim um mal inexprimível.

"Ao chegar à esquina da Avenida, parou, tornou a olhar-me com um brilho excepcional nos olhos. A velha parou também, maquinalmente, habituada àquelas interrupções frequentes, sem razão. A rapariga tomou logo a calçada e caminhou para os lados do mar. A evocação do panorama que nós olharíamos de lá, daquele fim da Avenida, na hora encantadora da noite que chegava, deu ao meu desejo um latejo mais forte. Era como se a rapariga fosse ficar mais bela, fosse ficar nua na moldura da natureza.

"Mas, ao chegar ao Teatro Municipal, dobrou à direita e foi por Evaristo da Veiga. Seguiu até os Arcos. Depois, Mem de Sá até a Praça dos Governadores e tomou por Gomes Freire. Entrando por Visconde do Rio Branco, chegou ao portão do Campo de Santana e transpôs o jardim mal iluminado, com passeantes raros pelas alamedas e vadios adormecidos pelos bancos.

"Por que a seguira eu assim, estupidamente, sem nada dizer, nem tentar? Não fora, talvez, tão estupidamente assim... Pois ela, durante aquele trajeto enorme, parara vezes sem conta e me olhara exprimindo um desejo tão forte, que eu não tinha dúvida: carregava-me para algum amável retiro.

"Mas ao entrar no Campo de Santana resolvi acabar com aquilo. Bastava! Também, eu não era nenhum parvo que fosse a pé até o Andaraí, por exemplo, por causa de uma mulher desconhecida que parecia sofrer de automatismo ambulante. E tomei a resolução cínica de dirigir-me à velha, que caminhava sempre um pouco mais atrás...

"- Diga-me uma coisa...

"Ela parou, voltou-me o rosto amarelo, rugoso, com pelancas a sobrar das maxilas.

"- Escute aqui: eu estou andando desde a Avenida. Então como é?

"Olhou-me muito, como se não tivesse ouvido, como se pensasse numa pessoa longínqua. Com os dedos magros e encardidos tirou-me um fiapo de linha do paletó e ficou a olhar em torno idiotamente. Então insisti:

"- Preciso saber em que isto vai dar. Estou andando há muito mais de uma hora!

"A rapariga ia já um pouco à distância, alta, direita, elegante, ondulante, sem perceber o que se passava atrás, ou possivelmente a fingi-lo.

"- Parece-me que mais do que isso é impossível fazer. A paciência também se esgota. O que é que aquela rapariga é sua? Que quer ela de mim? Aonde me leva?

"A velha estremeceu, os olhinhos fundos animaram-se por um instante, mas voltaram logo ao amortecimento. Chegou-se mais a mim, toda encolhida, agarrou-se ao meu casaco e diz com voz de choro, o rosto numa caricatura de dor:

"- Desculpe... O senhor desculpe...

"Era estranho! Estranhíssimo!

"- Não compreendo, senhora...

"- O senhor desculpe...

"E como se arrancasse uma coisa dolorosa de dentro, pôs a mão escarnada no peito, apertou-o, e falou:

"- A minha filha é louca... A sua loucura dá para andar assim pela cidade a olhar os homens daquela maneira... Não tem remédio. Tenho feito de tudo para que ela sare. Já vi que é mesmo impossível. Só por um milagre, dizem os médicos. Então tenho que me submeter à vontade dela: obriga-me a comprar vestidos caros e sai pela rua como uma pessoa que pode. No entanto, nós não podemos. Não imagina os meus sacrifícios! E como se eu não a acompanhar é capaz de sofrer um desastre, ou encontrar quem abuse dela, tenho que me sujeitar a este papel que o senhor vê... Está ouvindo?

"Ao redor de mim, as árvores rodavam, todo o jardim rodava. Que sofrimento longo, delicioso! E a velha concluiu, sem saber que tornava brutalmente maior a minha dor:

"- Muitos ouros homens já têm feito o mesmo que o senhor, já têm se enganado. Alguns não querem aceitar a explicação que eu dou, e insistem. Mas o senhor não se zanga, não é? Desculpe, sim? Até outro dia.

"E foi-se, encolhida, insignificante, torta, apressando o passo para alcançar a rapariga que ia lá longe, quase a perder-se de vista, de certo olhando já outros homens, fascinando outros homens na sua estéril obsessão inconsciente..."

Barbosa acabou de contar e acendeu um cigarro. E no grupo dos alegres rapazes houve silêncio por um longo quarto de hora, porque a todos já sucedera acompanhar aquela rapariga, sem que nenhum deles suspeitasse nunca da verdade.