Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006q13.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 02/13/14 14:08:56
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (17-M)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é O Crime do Estudante Batista, aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 pela Companhia Editora Nacional (São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Bahia - Pará - Porto Alegre), em segunda edição. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 199 a 204):

Leva para a página anterior

O crime do estudante Batista

Ribeiro Couto

Leva para a página seguinte da série

Passarito Feio

Vagarosa, a sineta bateu. Daí a instantes, uma dupla fila de meninotas, em silêncio, saiu para o pátio. Eram mais ou menos quarenta, vestiam de azul, tinham o ar murcho de flores de altar. Debandaram, aos grupos, a comer a merenda em algazarra. Algumas principiaram a brincar de pega-pega.

Então Maria das Dores, vendo-as em ordem, divertindo-se com moderação, foi sentar-se no seu banco de todos os dias, donde podia vigiar o recreio por inteiro.

O pátio era largo, de terra fofa e arenosa, boa para correr sem machucar na queda. Tinha uns enormes, frescos pés de jambolão. Em baixo, espalhados à sombra da ramagem, bancos de pedra convidavam. No centro havia um tanque raso com a gruta de pedras donde se espichava, irisado ao sol, um pincho permanente d'água fina que abria em corola translúcida. As crianças falavam entre si, com mistério, que nesse tanque houvera outrora uns peixinhos de cor. Mas em vão as mais ingênuas se debruçavam, cautas, à beira d'água: à tona boiavam, indiferentes, folhas secas ou verdes... Ao fundo as pedrinhas claras pareciam tesouros abandonados.

Vigiando o recreio, Maria das Dores abria o seu romance místico sobre os joelhos e esquecia-se, a ler. Ou então punha-se a olhar, num enlevo, o desabrocho da água multicolor e esguia do repuxo. Intimamente a comparava à sua esperança, que também subia assim, irisada de ilusões, para cair depois no tanque morto da sua tristeza.

- 'Fessora... Mariea... Marieta, 'fessora... pegô... pegô meu lanche... pegô...

- Como você está arquejante, Laura! Hoje não corre mais que eu não deixo.

- Mas... Marieta pegô meu lanche e não qué me dá.

- Mentira, 'fessora, não foi o lanche, foi só um bocadinho de pão.

- Vão-se embora. Não corram mais. Se me desobedecerem, eu dou tarefa dobrada.

Iam-se as meninas, abraçadas, aos saltos, rindo... A sineta batia de novo. Em todo o pátio os vestidinhos azuis convergiam, de súbito, correndo para o mesmo ponto. Formavam a longa fila dupla. E desapareciam lentamente na larga porta do convento.

Maria das Dores era também professora de bordado das crianças. Há meses que viera para esse convento quase por favor, desejosa de não ser pesada aos tios.

Criara-se na fazenda, em casa desses parentes. Não conhecera os pais. Mas, da boa educação que recebera a prima Deolinda, ela participara como uma segunda filha. As duas eram bem diferentes. Deolinda, bonita e frívola; Maria das Dores, feia, mas de uma sensibilidade aguda, perceptiva. E ao passo que a prima pensava em casar com um rapagão qualquer, tinha ela, apenas, o sonho de viver uma vida roceira, numa casa sua, entre árvores suas, flores suas, lendo... E que bom se vivesse com ela, eternamente, a prima Deolinda, como num noivado de duas rosas no mesmo vaso!

Aos dezoito anos Deolinda casou e foi morar com o marido numa fazenda muito distante, quase impossível de se chegar até lá. Maria das Dores ficou com os tios. Passou-se o tempo. Certa manhã a fazenda apareceu coberta de geada. Era a ruína. Então Maria das Dores, a quem a presença dos velhos não consolava da saudade da prima e da mágoa humilde do seu destino, resolveu ir para um colégio conventual, numa cidadezinha próxima. Se a quisessem aceitar para tomar conta das crianças! Depois, mais tarde, quem sabe se não poria sobre os seus magros ombros virgens o hábito das eternamente puras?

Quando lhe descobriram, no convento, a habilidade para os bordados, encarregaram-na de ensinar essa arte às meninas. Foi um prazer para ela. E a sua vida ficou sendo aquilo, e mais: tomar conta do recreio, vigiar as classes durante as aulas, auxiliar as irmãs no que lhe pedissem. As suas horas melhores eram as do recreio, quando, um romance místico entre as mãos, ouvindo vagamente a algazarra das crianças, ficava no meio do pátio, ao sol, como um feio passarito molhado; ou, se esquentava demasiado, quando ia acolher-se debaixo de um jambolão e o seu pobre vestido escuro listrava-se, feérico, dos raios que a folhagem peneirava.

Ora, uma noite estava a escrever uma carta para a tia e a sua tristeza tornou-se tão doída que começou a chorar. Sentada à beira da cama de ferro, o queixo apoiado na mão, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. A luz amarelada da vela punha clarões dançantes nas paredes e no teto. Sobre a pequena mesa os livros e os papéis se amontoavam, ao acaso. Num pedaço de fita preta pendida dentre as folhas do romance começado marcava o ponto da leitura. Tinham batido nove horas no sino do convento.

Naquela cidadezinha de província, pacata e costumeira, como era triste o silêncio! Parecia mais triste que o silêncio da fazenda, onde ao menos um mugido vinha às vezes evocar, na escuridão, a úmida doçura dos campos adormecidos.

Pela janela de grades Maria das Dores via lá longe palpitar, perdida, a luzinha vermelha de uma casa no morro.

Maria das Dores cismava, agora... Não era aquele o destino que sonhara. Nunca fora ambiciosa, é verdade. Mas deviam existir, pela vida, certas felicidades acessíveis e modestas. Não alcançaria ela um pouco dessas felicidades? Acabaria os seus dias naquele convento, tomando conta das crianças, ou carregando o leve túmulo do hábito? E Deolinda como devia estar longe e venturosa! A última carta que recebera falava de um filhinho que estava a esperar da França numa cesta de flores... Ao passo que ela, a tímida e solitária Maria das Dores, vivia ali entre aqueles grossos muros, abandonada.

As irmãs era muito reservadas. As crianças eram amorosas, algumas. Mas essas que o eram, às quais tomara uma amizade de mãe casta, ir-se-iam embora, em chegando as férias, como as outras, as que eram indiferentes ou hostis. E Maria das Dores sentia queimar-se inutilmente no seu coração um forte desejo de dedicar-se, de querer com permanência, dando toda a alma, até que um dia lhe viesse um filho numa cestinha de flores...

Então, para consolar-se, sentou-se à mesa a fim de continuar a carta à tia. Mas sentiu que uma coisa qualquer, muito leve, caíra perto dela: olhou e viu um papelzinho que ficara no chão como a penugem que se desprende da asa de um pássaro voando. Arrepiou-se. O coração bateu-lhe precipitado. Teve pudor de erguer o papel e pôs-se a tremer, tremer numa alegria turvada de receio. Baixou a mão e pegou-o, com sutilezas de contato. Abriu... Era um papel em branco, amarrotado, que ela, de manhã, arremessara pela janela e ficara no peitoril. O vento soprara-o para o chão.

Suspirou fundo...

Então Maria das Dores, com uma fadiga enorme por todo o corpo, apagou a vela. No escuro do quarto, o quadro da janela mostrava, nítido, o azul estrelado da noite. A luzinha vermelha continuava lá longe, perdida, numa casa do morro. Alguém doente?

O sino do convento bateu dez horas, vagaroso, no silêncio. E Maria das Dores adormeceu chorando baixinho.