XLI - Junto ao berço de Jeroniminho
De quem é essa carta, Jerónimo?
- De minha madrasta.
E recaí na cisma.
O fogo, como todas as noites, crepitava. Fazia frio no Caparaó. O berço do Jeroniminho rangia, no vaivém suave. Junto dele, Zuca tecia malha de lã.
A carta chegara naquele instante, trazida pelo fidelíssimo Tomé, que ia de noite, todas as quartas-feiras, buscar a corespondência na agência de Santa
Rita.
- Sua madrasta? Como isso?
- Meu pai acaba de casar.
- Seu pai? Homem, até errei um ponto da malha... Que surpresa! Com quem?
- Com uma moça que você não conhece.
- De menor idade que ele?
- Sim.
- Muitos anos?
- Hum... vinte... vinte e cinco...
- Tanto assim?
- Tanto assim.
- Enfim, seu pai ainda é mocetão. E é tão simpático!
Depois de uma reflexão, ela continuou:
- Quer dizer que ele não vem batizar o menino?
Fiz com a cabeça que não.
- Quer dizer também que não vale a pena aumentar um quarto na casa. Sendo assim, você pode desencomendar os tijolos que mandou comprar em Santa Rita.
- Não, o quarto podemos mandar fazer.
- É despesa inútil agora.
- Mas já fica feito.
Jeroniminho, que sonhava, agitando por vezes os punhos cor-de-rosa, soltou um suspiro profundo. Zuca pôs um dedo na boca, recomendando-me:
- Sssssiiiiu...
Fiquei calado... cismando... achando graça... mas ao mesmo tempo achando aquilo um pouco triste... Na verdade, o entusiasmo de meu pai por Pequetita
tivera um desfecho um tanto extraordinário.
Baixinho, continuando a tricotar a malha de lã, Zuca perguntou:
- Então quem é que vamos levar para compadres agora?
- Os primos.
- Era o que eu estava pensando.
Sobre a casa do sítio das Duas Estrelas recaiu o silêncio - o silêncio em que só se ouvia o ranger cadenciado do berço de Jerónimo Vieira Pires
Júnior, sertanejo que eu dava à pátria, eu, o terceiranista falho da Politécnica, outrora admirador de Pepa la Sevilhana, ao mórbido gemer dos tangos do Clube dos Arripiados.
- Deixa eu ler a carta?
Tive um sobressalto na minha cisma.
- Por quê? Tem curiosidade?
Fez que sim com a cabeça, o beiço num momo de ironia e suspeita...
- Não vale a pena, fala também de coisas tristes.
Lentamente, rasguei em pedacinhos a literatura de minha madrasta. Caminhei devagar até à cozinha em que o fogo estalava rubro e atirei às chamas
aquele eco intruso do passado.
Zuza parara de tricotar e seguira os meus movimentos. Não sei se desconfiou. Nos lábios dela um meio sorriso errou por um instante.
Voltei para junto do berço. Fiquei absorvido na contemplação do nosso filho.
Tecendo a malha com as mãos ligeiras, naquele silêncio cheio de reflexões imprecisas, ela parecia tecer o meu amorável destino.
Na longa noite da fazenda, tudo era estático e feliz.
Ficamos sorrindo um para o outro, sem dizer nada, satisfeitos de sermos nós mesmos, de estarmos ali...
Marselha, outubro de 1930. |