XXXIX - De Jerónimo Vieira Pires, na Serra do Caparaó, ao pai, na Capital Federal
Meu querido pai,
Esta carta tem por fim comunicar-lhe a existência do segundo Jerónimo da família, Jerónimo Júnior, seu neto. Surgiu ontem, em Santa Rita do Alto,
com todas as honras de um parto feliz. Fica à espera da sua presença por aqui, para batizá-lo.
A fazenda vai bem. Estou plantando frutas europeias. O clima é ótimo para maçãs, peras e ameixas do Japão. Em todo caso, não descuido da criação e
espero que o senhor tenha apreciado a última remessa de manteiga e queijo marca Duas Estrelas - a minha marca, devidamente registrada etc., etc. Estou com quase cinquenta vacas dando leite e tenho já umas vinte novilhas que prometem ser excelentes
leiteiras. Pouco a pouco, me afirmo no conhecimento da vida pastoril e agrícola. Apesar da altitude, as terras do sítio dão excelentes cereais. Tenho colhido muito feijão e milho.
Do pulmão doente não tive mais notícias. A Zuca também esteve magra e, quando casamos, o médico de Vila da Mata (que o senhor conhece, o dr. Teles)
tinha diagnosticado uma lesão do ápice. Tudo isso desapareceu. Tanto eu como ela gozamos de perfeita saúde em Santa Rita do Alto.
Este seu longo silêncio, que não conseguem quebrar as minhas cartas repetidas, deixa-me magoado.
Não sou porventura seu filho? Não tenho direito a ter notícias suas? O que fiz - casar com quem quis e com quem devia - será motivo para punição
tão dura?
Meu pai, minha vida na cidade era um equívoco - um equívoco que durava desde o meu nascimento. A minha verdadeira vocação é isto, o sertão. Tudo
que peço a Deus é que o Jerónimo nº 2 seja um brasileiro amigo do mato, da raça dos fortes, dos que desbravam, dos que caminham pela pátria a dentro, dos que não ficam hipnotizados pelo mar - o mar fácil das pescarias e da navegação costeira. Meu
filho há de gostar do lombo do cavalo e do desconforto das travessias serranas, sob os temporais que endurecem o corpo e desafiam doenças - as doenças da cidade.
Eu, que tive congestões e hemoptises, penso às vezes que sonhei. Minha cura parece que foi feita com um golpe de varinha mágica. No fundo, a
desconformidade entre o apelo do sertão e a vida que o senhor me desejava era até capaz de fazer de mim um eterno doente.
Se eu perdesse Zuca, perdia tudo. Logo que a ganhei para a minha vida, uma força nova rompeu em mim. Ia obedecer enfim àquele instinto - ia levar a
vida que me atraía. A sensação de me libertar de um longo erro restituiu-me a energia reparadora.
Aí tem, meu pai. Meu único remorso é a decepção que possa ter causado à Pequetita. No entanto - que quer? Eu tinha por ela muita amizade, mas não
era amor, nunca foi amor, não seria jamais amor. A gente só deve casar por amor. O resto não é tão bom nem tão inteligente.
Em todo caso, devo a Pequetita uma afeição a que, aparentemente, não pude mostrar-me reconhecido. Terá ela guardado mágoa de mim? Decerto... Em
suma, ela se casará; não lhe faltam partidos. O americano, mesmo, é capaz de voltar de Cincinnati ou Chicago por causa dela.
Diga-me, pois, meu pai, que me perdoa - e venha até aqui batizar o Jeroniminho.
Sua nora manda-lhe um abraço e estou certo de que o senhor lhe quererá bem quando a vir dando de mar ao pequeno, que parece um bezerrinho ávido.
Com perdão da imagem sacrílega, parecemos os três a Sagrada Família, nas noites frias e carinhosas da serra, junto ao fogo que estala.
Venha...
Seu, restituído para a saúde e para a vida,
Jerónimo. |