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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[39])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 188 a 196):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XXXVIII - Presente da terra

Meu pai não me perdoou. Ao convite para vir ser meu padrinho e casamento respondeu por telegrama: "Impossível devido negócios urgentes. Sejam felizes."

Paciência! Como explicar a Vieira Pires & Cia. o meu delicioso mistério? Naquele amor pulsavam estranhas intuições natais. As delicadezas da alma discreta de Zuca me faziam querer à alma de todo um povo; por ela falavam todas as gentes da serra, com as mesmas inflexões meigas na voz, o mesmo jeito de pronuncias os ll como rr, os mesmos saborosos erros de linguagem. Como meter essas sutilezas, esses caprichos da sensibilidade, na cabeça prática de meu pai, sempre ocupada com as cotações da Bolsa e as oscilações do mercado do açúcar?

Para ele eu continuaria sendo um rapaz sem juízo. Deixar Pequetita Novais, moça brilhante da capital, para afundar no sertão, casado com uma menina do mato! Siá Bina também não estava muito contente com a troca. No fundo, ela teria preferido o Tobias Pinto, que não levaria a filha para longe; ficaria no Pau d'Alho ajudando a tomar conta do negócio; e quando os netos tivessem sarampo ou tosse comprida, ela estaria perto, prepararia os xaropes.

Tobias escreveu a Zuca uma carta enfática, ameaçando-a de morte e assinando com ingenuidade "seu amº crº obrº Tobias de Oliveira Pinto". Pequetita, entretanto, não me honrou com as linhas sarcásticas que eu esperava. Seu silêncio me pareceu de mau augúrio. Sofreria? A suposição punha uma sombra no meu contentamento.

Eu decidira passar a lua de mel na Serra do Caparaó,na divisa de Minas, que me atraía, nem eu sabia por quê. Caparaó era um nome que me chamava. Do lugarejo, Santa Rita do Alto, eu só tinha notícias pelo mapa. O clima devia ser bom. Ia ver como era aquilo. Quem sabe, se gostasse ficava por lá; pois o senso do sertão voltara a se instalar em mim com uma lucidez imperiosa. De novo sentia inefáveis cumplicidades com os mundos desabitados que por aí se estendem, à espera da mão do homem.

Meu futuro sogro achava a ideia estapafúrdia. Se eu queria comprar fazenda, por que não ficar pelas imediações do Pau d'Alho, perto da família? Por que Santa Rita do Alto, tão longe, naquele sertão do diabo, lugar de gente braba?

- Porque o nome é bonito, seu José.

Mas a filha compreendia, por instinto, os motivos da aventura. Estavam na lógica de nosso idílio. Parecíamos obedecer a impulsos ancestrais. Lá é que era o verdadeiro, o grande sertão, mestre de resistências, professor de heroísmo. Lá não chegavam nem vagos rumores das capitais buliçosas. Lá, a imensidade do deserto verde era um apelo à raça, um convite à energia, à fundação do trabalho e da ternura. Lá é que era "amanhã".

O casamento religioso foi cedo, antes do almoço. O padre Annunziato nos abençoou na capela arruinada do Pau d'Alho com andorinhas esvoaçando por cima das nossas cabeças, perseguindo-se entre os buracos da telha-vã. A cerimônia foi na intimidade, somente com os primos, a Siá Bina e o José da estação. Este, mal reprimia as lágrimas, talvez por excesso de vinho do Porto, de que já tomara meia garrafa "para sustentar o coração".

O tenente Raimundo chegou pelo meio dia com o major Antão da Cachoeira, primeiro juiz de paz, para o ato civil.

- Então, doutor, não quis dar festa?

Primo Boanerges explicou por mim que eu estava de luto recente e por essa razão quisera a cerimônia bem em família.

À tardinha tomamos o trem para Vitória, donde teríamos que continuar no dia seguinte para o Caparaó longínquo. Nossos olhos despediram-se com pesar do casario melancólico do Pau d'Alho. Sentíamos que ali ficava qualquer coisa de indefinível, qualquer coisa de nós que não estava morto, que não morreria nunca, mas que pertencia agora mais à paisagem do que a nós mesmos. A pureza dos nossos pensamentos se incorporara ao desenho primitivo daquele recanto serrano.

Na estação, lenços comovidos disseram adeus. O sobradinho do hotel foi ficando pequeno; o laranjal, ao fundo, era apenas uma grande mancha verde-escura, que a lâmina estreita do córrego recortava. O telhado da capela, minúsculo, escondeu-se atrás de um barranco.

O trem varou uma garganta: de repente, o povoado sumiu. No céu, a fumaça da locomotiva se perdia; dos lados, era a muralha bruta coberta de arbustos silvestres que por vezes, debruçados sobre os trilhos, invadiam as janelas do carro. Em nossas mãos ficavam raminhos agarrados à pressa, desprendendo um cheiro acre de natureza; insetos coloridos, fragmentos de aranhol subsistiam nas folhas esmagadas. A cada solavanco da máquina o vagão balançava, rangia, como um berço.

O emagrecimento dera aos traços de Zuca uma expressão de força silenciosa. A boca de lábios finos e retos parecia selar pensamentos de fé, que a fronte alta guardava. Dava gosto sentir junto à minha aquela cabeça de moça confiante, que soubera sofrer calada, sem desesperar do meu coração. Tive orgulho da sua beleza sem luxo, da sua graça simples, espiritualizada pela doença. Breve lhe voltaria a saúde; ficaria vigorosa como eu a conhecera, ligeira, a disparar no cavalo a galope. A vida nos esperava, longe, onde o nosso afeto ia erguer a morada.

A noite foi pousando sobre as várzeas, insinuando pensamentos, confidências. Zuca pegara das minhas mãos, o peito sempre contra o meu ombro, a cabeça encostada na minha. Tínhamos falado tão pouco até então! Para quê falar? Era suave aquela evasão para o desconhecido, com uma mulher que era minha e que ninguém escolhera por mim: a mulher que a terra me dera, presente do mato, resumo de todas as virtudes de paciência e amor do povo rústico do interior.

Foi quando ela murmurou qualquer coisa no meu ouvido, tímida, envergonhada. A intimidade começava ali, ao crepúsculo, no limiar da nova existência. Para trás tinham ficado as paisagens do outro idílio. Senti na minha pele o seu hálito, aquele hálito que agora era meu para sempre. Que me falava ela tão baixo! Pedi-lhe que repetisse. Então chegando mais a boca, roçando o meu rosto como se procurasse com os lábios o ponto para um beijo, sussurrou:

- Eu nunca duvidei de que você voltasse.

Levando a palma da minha mão à curva do ventre pundonoroso, murmurou o resto do segredo:

- Se você não voltasse, nós morríamos.

Senti um deslumbramento. Nós? Fez que sim com a cabeça. Não dissera nada a ninguém: confiara. Só o que fizera fora uma promessa a Nossa Senhora. Tivera confiança no meu bem-querer. Eu havia de voltar por ato espontâneo, por saudade, por ver que não podia esquecê-la. Não fora melhor assim? Para que me escrever que ia ter um filho? Se eu não voltasse, então morreria: morreria de pena, definhando, calada. De que adiantava contar?

A revelação me abalara tanto que eu tinha uma vontade absurda de chorar e de rir ao mesmo tempo. A alegria violenta de ser pai misturava-se à dor daquele risco que ela correra, que a nossa vida, que o nosso filho também correra: o filho que me esperava sem que eu soubesse de nada.

- Por que não me escreveu nunca: Por que me escondeu um segredo tão grande?

Fez um gesto compassivo; fixou em mim os olhos negros com meiguice de mulher amorosa que perdoa.

- Não, eu queria que você voltasse por si mesmo, como voltou. Que voltasse para me ver. Por mim. Não foi melhor?

Cerrou os olhos, chegou-se mais ao meu peito, toda ela entregue à sua confiança, ao meu amor. Apertei-a chorando, recebendo aquela vida maravilhosa que no seu corpo agora me sorria.