XXXV - Mistério
Quando cheguei à Vila da Mata, no dia seguinte, não houve jeito
de por os olhos em Zuca. Fechara-se no quarto; não queria me ver, nem que eu a visse, informou Emerenciana. Debaixo de muito segredo acabou por confiar-mo: o dr. Teles achava que a afilhada estava com um pulmão fraco... E os compadres não sabiam de
nada... O Tobias também não sabia...
A notícia do meu regresso se espalhara, provocando estranheza. O Zéxéu foi o primeiro a me visitar logo depois do almoço. Antes mesmo de se sentar,
perguntou solene:
- Mas o doutor não ia para a Europa?
- Ia, ia. Ia mas não vou, coronel.
- Aaah! - e abriu uma boca admirativa, cheia de subentendidos.
O tenente Raimundo e o capitão Macário vieram à tardinha. como que movidos por um mecanismo regulado pela mesma corda, indagaram logo:
- E essa Europa?
Fiz um gesto evasivo. Felizmente, o juiz de direito apareceu nesse instante à porta com o ar sempre altivo, encarnando o Código Civil na maneira de
avançar o nariz para as pessoas:
- Seja bem-vindo pela nossa terra.
Um mal-estar pairava. Parecia que desta vez eu era um intruso.
- Então não segue mais para Europa - interrogou pausadamente o juiz com os olhos fixos em mim.
- Creio que não... Estou bom, não preciso mais da viagem...
- Muito bem, muito bem - e pôs-se a rolar o cabo do guarda-chuva nas palmas das mãos.
Senti nítida a situação. Eu não fora para a Europa. Era um amigo de Vila da Mata, o primeiro amigo de Vila da Mata que ia para a Europa... E não
fora... Tudo que eu sabia do Rio, outrora objeto de indagações tenazes, passara para um plano inferior. Eu devia a Vila da Mata a narrativa circunstanciada de uma viagem à Europa.
E sobre a minha pessoa caiu, pesada como chumbo, a indiferença vexatória da província.
Prima Emerenciana dizia que estava envergonhada. Não sabia como se desculpar da atitude de Zuca. Eu pedira de novo para vê-la, mas em vão. Não queria
arredar pé do quarto. Agora, acabado o jantar, a noite ia caindo sobre a Vila. E Zuca encerrada, hostil, incompreensível...
Incompreensível para prima Emerenciana. Para mim era claro: ela reprovava a minha volta súbita, que podia comprometê-la aos olhos da população. A
malevolência do lugarejo era vigilante e não perdoava. Senti um desânimo infinito.
Fui me deitar com uma sensação de homem abandonado de tudo e de todos. Contei as horas da noite, uma por uma, na esperança de que ela viesse bater
devagarinho à porta, como na fazenda, noutro tempo. Adormeci nessa expectativa inútil.
Pela manhã, mal apareceu o sol, já as crianças andavam pela casa a correr; prima Emerenciana ralhava com elas, recomendando-lhes que não me
perturbassem o sono.
Fiquei recapitulando a minha evasão do Rio, os estados de alma da viagem e da chegada ao Pau d'Alho, as visitas, o ar misterioso de prima Emerenciana,
o encerramento de Zuca... Estranho, aquilo. A lição de tudo não era entretanto simples? Zuca não passara de um episódio e eu insistia por dar àquele idílio de fazenda um caráter definitivo de iniciação na existência. Estava errado.
Levantei-me, de repelão, com uma ideia: o Córrego Fundo. Para lá é que eu devia ir, escapando à conspiração que parecia me envolver.
Escrevi um bilhete e pu-lo debaixo da porta de Zuca:
Vou ficar uns dias na fazenda. Não querendo me ver mais, volto para o Rio. Vim só por sua causa.
Fui lá dentro surpreender prima Emerenciana, que preparava um bolo para mim.
Primo Boanerges seguira a cavalo, no amanhecer, para o Córrego Fundo. Prima Emerenciana me fez tomar café e mandou o Anastácio buscar o fordinho na
garagem, Aprovou com entusiasmo o meu projeto de ficar uma semana na fazenda.
Depois, chamando-me em particular, me confiou:
- Não repare na esquisitice da minha afilhada... Desde que adoeceu, é outra... Completamente outra, de mau gênio, enjoada... - E batendo com um dedo
na testa: - Até tenho pensado nisto: não anda boa do miolo.
Suposições da prima. Se Zuca estava fraca, o mal devia ser do pulmão. Teria sido o meu contágio? Uma angústia maior me oprimia.
A casa da fazenda apareceu numa curva do morro, chata, rodeada de currais e de ranchos. As plantações de cana e de fumo se estendiam, verdes, pelas
encostas. Os pingos brancos do gado se espalhavam, movediços, nos pastos distantes. No terreiro, a canzoada parecia uma banda de música enraivecida e desafinada. O Tomé, coçando-se, ria de contentamento, com os dentes podres em franca oferta à
minha amizade. |