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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[36])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 178 a 183):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XXXV - Mistério

Quando cheguei à Vila da Mata, no dia seguinte, não houve jeito de por os olhos em Zuca. Fechara-se no quarto; não queria me ver, nem que eu a visse, informou Emerenciana. Debaixo de muito segredo acabou por confiar-mo: o dr. Teles achava que a afilhada estava com um pulmão fraco... E os compadres não sabiam de nada... O Tobias também não sabia...

A notícia do meu regresso se espalhara, provocando estranheza. O Zéxéu foi o primeiro a me visitar logo depois do almoço. Antes mesmo de se sentar, perguntou solene:

- Mas o doutor não ia para a Europa?

- Ia, ia. Ia mas não vou, coronel.

- Aaah! - e abriu uma boca admirativa, cheia de subentendidos.

O tenente Raimundo e o capitão Macário vieram à tardinha. como que movidos por um mecanismo regulado pela mesma corda, indagaram logo:

- E essa Europa?

Fiz um gesto evasivo. Felizmente, o juiz de direito apareceu nesse instante à porta com o ar sempre altivo, encarnando o Código Civil na maneira de avançar o nariz para as pessoas:

- Seja bem-vindo pela nossa terra.

Um mal-estar pairava. Parecia que desta vez eu era um intruso.

- Então não segue mais para Europa - interrogou pausadamente o juiz com os olhos fixos em mim.

- Creio que não... Estou bom, não preciso mais da viagem...

- Muito bem, muito bem - e pôs-se a rolar o cabo do guarda-chuva nas palmas das mãos.

Senti nítida a situação. Eu não fora para a Europa. Era um amigo de Vila da Mata, o primeiro amigo de Vila da Mata que ia para a Europa... E não fora... Tudo que eu sabia do Rio, outrora objeto de indagações tenazes, passara para um plano inferior. Eu devia a Vila da Mata a narrativa circunstanciada de uma viagem à Europa.

E sobre a minha pessoa caiu, pesada como chumbo, a indiferença vexatória da província.

Prima Emerenciana dizia que estava envergonhada. Não sabia como se desculpar da atitude de Zuca. Eu pedira de novo para vê-la, mas em vão. Não queria arredar pé do quarto. Agora, acabado o jantar, a noite ia caindo sobre a Vila. E Zuca encerrada, hostil, incompreensível...

Incompreensível para prima Emerenciana. Para mim era claro: ela reprovava a minha volta súbita, que podia comprometê-la aos olhos da população. A malevolência do lugarejo era vigilante e não perdoava. Senti um desânimo infinito.

Fui me deitar com uma sensação de homem abandonado de tudo e de todos. Contei as horas da noite, uma por uma, na esperança de que ela viesse bater devagarinho à porta, como na fazenda, noutro tempo. Adormeci nessa expectativa inútil.

Pela manhã, mal apareceu o sol, já as crianças andavam pela casa a correr; prima Emerenciana ralhava com elas, recomendando-lhes que não me perturbassem o sono.

Fiquei recapitulando a minha evasão do Rio, os estados de alma da viagem e da chegada ao Pau d'Alho, as visitas, o ar misterioso de prima Emerenciana, o encerramento de Zuca... Estranho, aquilo. A lição de tudo não era entretanto simples? Zuca não passara de um episódio e eu insistia por dar àquele idílio de fazenda um caráter definitivo de iniciação na existência. Estava errado.

Levantei-me, de repelão, com uma ideia: o Córrego Fundo. Para lá é que eu devia ir, escapando à conspiração que parecia me envolver.

Escrevi um bilhete e pu-lo debaixo da porta de Zuca:

Vou ficar uns dias na fazenda. Não querendo me ver mais, volto para o Rio. Vim só por sua causa.

Fui lá dentro surpreender prima Emerenciana, que preparava um bolo para mim.

Primo Boanerges seguira a cavalo, no amanhecer, para o Córrego Fundo. Prima Emerenciana me fez tomar café e mandou o Anastácio buscar o fordinho na garagem, Aprovou com entusiasmo o meu projeto de ficar uma semana na fazenda.

Depois, chamando-me em particular, me confiou:

- Não repare na esquisitice da minha afilhada... Desde que adoeceu, é outra... Completamente outra, de mau gênio, enjoada... - E batendo com um dedo na testa: - Até tenho pensado nisto: não anda boa do miolo.

Suposições da prima. Se Zuca estava fraca, o mal devia ser do pulmão. Teria sido o meu contágio? Uma angústia maior me oprimia.

A casa da fazenda apareceu numa curva do morro, chata, rodeada de currais e de ranchos. As plantações de cana e de fumo se estendiam, verdes, pelas encostas. Os pingos brancos do gado se espalhavam, movediços, nos pastos distantes. No terreiro, a canzoada parecia uma banda de música enraivecida e desafinada. O Tomé, coçando-se, ria de contentamento, com os dentes podres em franca oferta à minha amizade.