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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[35])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 174 a 177):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XXXIV - Coisa feita

José da Estação insistiu comigo para dormir aquela noite no Pau d'Alho. Zuca estava se tratando em casa dos primos, na Vila da Mata, onde era mais fácil ao dr. Teles cuidar dela. Andava bem doente, coitadinha, mas o doutor não sabia por quê, lamentava-se Siá Bina.

- Parece coisa feita, crende os padre! - suspirou com desânimo.

Serviram-me o jantar: um pedaço de lombo de porco, batatas fritas, couve mal passada... Comovia-me tanto aquela atmosfera do Pau d'Alho, que até mesmo a comida me parecia um dom prodigioso do chão inocente.

Expliquei a José da Estação que estava com saudades da comida sertaneja. Ele deu de ombros, sentido comigo:

- Qual! O doutor da oura vez me prometeu vir jantar uma leitoa e afinal nunca veio!

- Está em tempo.

- E está mesmo, doutor. Tenho outra que daqui a uns dias fica no ponto.

Eu olhava Siá Bina procurando naquele rosto chupado, de velha cabocla roída de trabalhos e canseiras, recompor os traços de Zuca. Os olhos tinham a mesma vivacidade, o mesmo brilho negro.

- E quando é o casamento com o Tobias Pinto? - perguntei com ar distraído, o coração a bater.

- O casamento? respondeu espantada. Ué, não sabe? Ela deu para querer desmanchar o trato...A comadre Emerenciana tem ralhado com ela, mas que adianta? Pois é.

Sia Bina cuspiu para um lado, aborrecida com a recordação daquele capricho que punha a perder o casamento.

- Sabe o que é moça, não é, doutor? - interveio o José da Estação, conciliatório. - Moça é assim, quando cisma, é que nem burro empacador.

- Até parece feitiçaria! - tornou Siá Bina com um muchocho confuso, dando uma sacudidela com o ombro magro. - Eu digo p'ro seu José: é coisa feita. Invejas desse povo da Vila... Todo mundo sempre invejaram a minha Zuca...

José da Estação deu uma gargalhada. Não acreditava em "coisa feita".

Siá Bina fez-me um sinal de cumplicidade, convicta de que eu lhe dava interiormente razão: não há nada tão certo como feitiçaria - dizia o olhar dela.

Do armazém vinha um vago retintim de viola. A voz aflautada do caixeirinho...

- Como vai o Chico?

- Vai indo, sempre meio lerdo.

... a voz aflautada do Chico repreendia um freguês que queria se servir com as próprias mãos, esvaziando a garrafa de cachaça num copo.

- Vai ver o que é aquilo no armazém, seu José.

José da Estação foi restabelecer a ordem lá dentro. Nós ficamos, a velha e eu, na avermelhada penumbra da sala, sob o lampião, pensando coisas inconsistentes. Um bem estar me invadia, inexprimível. Siá Bina, sentada num banco, o queixo apoiado num punho, olhava o chão: pensava nas feitiçarias que há por esse mundo...

- ... p'ro mode a inveja. Ninguém me tira isso da cabeça. A Zuca é muito invejada. O defeito aqui da nossa terra é que tem gente muito invejeira. O Tobias é um moço bom, trabalhador. É quanto basta, a inveja vem logo...

Esforçava-se por espremer uma lágrima, passando na pálpebra seca a ponta do avental.

A viola, baixinho, gemia umas notas esparsas. E eu sentia em volta de mim o poder da coisa feita, aquele sortilégio da terra e da cabocla, saudade do Córrego Fundo e do primeiro beijo no Pinhalzinho...

Não era mesmo feitiçaria?