XXIV - De Pequetita Novais, na Capital Federal, a Joaquim Vieira Pires, na fazenda do Córrego Fundo
Meu amigo,
Tomo a liberdade de lhe escrever estas linhas e espero da sua bondade uma resposta urgente. Não para dirigi-las ao seu filho, porque ele poderia se
alarmar.
Em conversa com o dr. Edmundo Esteves, amigo de minha família, vim a saber que o senhor tinha partido para a fazenda onde se acha o Jerónimo, de
quem eu estava sem notícias recentes. Como sei também que o senhor é um homem ocupadíssimo com os seus negócios, compreendi imediatamente que o caso deve ser muito grave; do contrário o senhor não faria essa viagem incômoda até lugar tão distante.
O dr. Edmundo Esteves a princípio nada quis me dizer de preciso, alegando segredo profissional; porém, como me viu muito nervosa, decidiu-se a
contar-me, debaixo de uma extrema reserva, que o Jerónimo provavelmente vai partir para a Suíça.
Meu noivo (o senhor conhece o Walter Brown) me autorizou a ir ao Córrego Fundo a fim de prestar ao Jerónimo a assistência da minha amizade enquanto
ele estiver doente. Desejaria, ao menos, poder lhe fazer aí uma visita, pois há seis meses que ele partiu do Rio sem ao menos vir pessoalmente me dizer adeus!
É escusado descrever, prezado senhor, o estado de espírito em que me acho. Não terei tranquilidade enquanto não receber notícias suas, se possível
por telegrama, notícias que, espero, virão dissipar todos os maus presságios.
O senhor não sabe quanto aprecio Jerónimo, quanto me penalizou o motivo que o levou a se ausentar do Rio, quanto me desesperou vê-lo tomar a
resolução de viver na roça, no sertão, quando o lugar dele é aqui no Rio, para fazer uma brilhante carreira entre gente civilizada.
Já agora, uma vez que cheguei até este ponto - e, ao começar a escrever, minha intenção era de não passar da primeira página e das perguntas
ansiosas -, deixe-me acrescentar, como se o senhor fosse um velho amigo, que entre Jerónimo e eu existe o que se pode chamar a "afinidade antipática".
É muito difícil de explicar, mas muito fácil de constatar. Neste mar de pessoas e acontecimentos que é a vida social de uma cidade como o Rio, nós
dois verificamos que gostávamos de nos ver, de nos falar pelo telefone, de nos escrever - mais do que a outra qualquer pessoa - mas nunca pronunciamos a palavra: amor.
Contrariamente, toda vez que nos víamos, que nos falávamos, que nos escrevíamos, tínhamos uma necessidade contraditória de nos magoar, com ironias,
com esquivanças, com indiferenças fingidas. É absurdo, mas é assim. Não se tratava portanto de amor, não é verdade? mas tão só de afeição, camaradagem, uma afeição feita de afinidades que, por ignoradas razões, se repeliam. Afinidade antipática,
não será o termo?
O fato é que, enquanto o soube com disposições de viver a vida de fazenda, eu estava sossegada, parecia-me que a saúde de Jerónimo estava a salvo
de perigo, ainda que ele me tivesse escrito que escarrara sangue. Que importância tem isso, escarrar sangue? Agora, porém, o caso deve ser grave, a resolução de partir para a Suíça é bastante expressiva. Meu Deus, tanta coisa queria dizer aqui,
mas...
Como vai ser na Suíça? Sozinho num sanatório, no meio de pessoas estranhas, numa atmosfera estranha - ele, que agora só pensa no Brasil?
Meu Deus, como me arrependo de tantas coisas más que tenho dito ao Jerónimo, somente pelo gosto de o taquiner!
Não lhe mostre esta carta, meu prezado amigo. Fica como um segredo entre nós. O que quero, aqui, é apenas exprimir o meu sentimento de amizade em
sobressalto, amizade que o próprio Jerónimo não sabe quanto é sincera. Diga-me, porém, como posso ser útil a seu filho, se há algum meio de lhe proporcionar prazer ou conforto, e sobretudo não me deixe sem uma resposta!
Sua criada obrigada
Pequetita Novais.
S. Clemente, 632. |