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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[26])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 142 a 149):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XXV - Tormento

Primo Boanerges perguntou se eu queria ver Nhô Felício. O velho caboclo soubera pelo Tomé que eu estava de cama e vinha me visitar, trazer-me um cacho de bananas de presente. Para isso, fizera três léguas a pé.

- Mande-me já aqui o Nhô Felício, primo!

Meu pai nunca vira de perto um caboclo genuíno. Sentiu estranheza diante da minha alegria. Para meu pai, caboclo era uma espécie de gente malandra e palerma que passa a vida sem fazer nada, coçando-se. Franziu as sobrancelhas quando viu entrar Nhô Felício, o chapéu debaixo do braço, o cacho de banana-ouro na mão, encolhido, tímido, marcando o soalho com a sola dos pés lamacenta.

- 'S" tardes pra todos!

Os olhinhos turvos procuraram o leito em que eu estava. Aproximou-se de mim, estendeu-me o cacho de bananas...

- Uma lembrancinha pra mecê (E sem transição, voltando-se para primo Boanerges): Gostei muito deste moço. Moço bão, sem soberbia.

Sentou-se na cadeira mais próxima. A barbicha branca estava toda orvalhada de chuva.

Prima Emerenciana entrou logo depois, com uma xícara de café:

- Pra mecê quentá o corpo, Nhô Felício!

Ele riu-se: as gengivas murchas não tinham um único dente. Tomou a xícara com ambas as mãos, delicadamente, receoso de quebrá-la. De súbito, voltando-se para a prima, indicando meu pai com um movimento do queixo:

- Quem é esse moço?

- É o pai do dr. Jerónimo...

- Ahn!

Meu pai quis dizer uma amabilidade, mas não achou nada: sustentou em silêncio o olhar minucioso de Nhô Felício.

- O que é que o doutô tem que ficou assim caído? - perguntou o caboclo virando-se para o primo Boanerges.

- Apanhou chuva, atacou a caixa do peito...

- Ahn!

Bebeu o café de um sorvo.

- E esta aí quem é? (Voltara-se para Zuca, que assistia à cena sem despregar de mim os olhos meigos): Não é a Zuca, do compadre José da Estação?

- É isso mesmo, Nhô Felício!

E o velho, franzindo a cara num riso cômico:

- Orgulhosa! Fala co'a gente!

Zuca veio até Nhô Felício, fez uma reverência curta, pegou-lhe a mão e suspendeu-a maquinalmente:

- Bênção!

- Deus te abençoe.

Então prima Emerenciana pediu explicação. Ué, por que a bênção? Eles, Boanerges e Emerenciana, é que tinham batizado a Zuca; a madrinha de crisma era a falecida Siá Dona; parentesco não havia. Por que a bênção agora?

Zuca explicou:

- É o padrinho da mamãe.

- Pois mecê não sabe (interveio Nhô Felício, como se todo mundo devesse conhecer um fato tão notório), fui eu que batizei a comadre Siá Bina.

O costume ali era que a filha também tomasse a bênção ao padrinho da mãe. Por outro lado, Siá Bina era ainda comadre de Nhô Felício, pois batizara um filho dele, há poucos anos, filho esse do segundo casamento. Nhô Felício fora casado três vezes: uma com a falecida Marica, outra com a falecida Tudinha, finalmente com a falecida Dos Anjos. A cada um desses nomes Nhô Felício ficava pensativo, suspirando.

A visita fora para o doente, mas o curso da conversa tirara a minha pessoa do foco de atenção. Eu tinha a impressão de ser um contrarregra teatral observando, escondido nos bastidores, um espetáculo especialmente representado para uma personagem real. A personagem real era meu pai.

Nhô Felício, antes de partir, deu-me várias receitas: para bronquite, para dor de costas, para fraqueza de peito, para falta de apetite... Meu pai, de bom humor, perguntou:

- E para o amor, Nhô Felício?

Os olhinhos dele brilharam, velhacos. Coçou a barbinha:

- Ué, casamento.

Todos saíram. Zuca e eu ficamos sós na penumbra da tardinha chuvosa que dava vontade de morrer em silêncio.

Sentou-se na beira da cama. Tomou-me das mãos, acariciou-me os dedos, pensativa. Eu nada dizia. Sentia-me feliz em tê-la perto de mim, modelada no vestido de chita que lhe apertava as formas; a cada movimento dos ombros, a blusa se lhe abria no seio, deixando entrever a camisinha de morim barato, enfeitada de renda ordinária. Como seria delicioso dar-lhe presentes de coisas bonitas, que a fizessem bater palmas de contente, no seu deslumbramento de menina pobre! Depois, meu pensamento foi para Tobias Pinto...

Zuca pusera a mão no meu rosto, acariciando-me a barba ao arrepio. Chegou a cabeça bem perto da minha até me tocar de leve. Envolveu-me naquele sutil aroma tão conhecido do meu olfato, aroma de pele quente e sadia. O hálito dela era puro como o de um cachorrinho de mama. Parecia que no seu corpo não havia possibilidade de nenhuma podridão, como se a natureza a tivesse feito de uma substância inocente, lavada de todas as corrupções e de todas as mortes.

Fora já há tantos dias a nossa última entrevista! Há tanto que eu não a sentia contra o meu rosto! Aspirei com delícia aquela carnação e aquela boca, dons inefáveis da vida. E como já agora seria ela, com certeza, que não casaria comigo (pois eu tivera na sua presença uma hemoptise iniludível), estava-me proibida a doce frase que eu nunca pronunciara, por pudor primeiro, depois por desconfiança da sua castidade. Já agora eu não poderia mais dizer: eu quero bem a você é para casar.

Se ela pertencera a um homem se "não era boa", fora por certo por alguma desgraça, algum drama de violência, não por precocidade e impudor. A prova estava em que durante os nossos encontros nunca deixara entrever tendência ao mal. Era apenas por ternura, por ternura por mim, que se entregava àqueles beijos, de braços apertados, a boca aberta numa expectativa misteriosa.

Aliás, que indícios tivera eu para supor que ela fora de outro?

A ideia arbitrária desse imaginário outro é que pusera um selo nos meus lábios, impedindo-me de dizer a palavra definitiva e tomá-la para mim, sob o meu braço. Era absurdo, eu notava agora, a força com que a convicção ultrajante se instalara no meu espírito. Por que caminhos? Eu não sabia ao certo. Fora talvez a facilidade com que ela me atirara o beijo, na manhã do Pau d'Alho, no laranjal... Era já noiva e me atirara um beijo... Depois um molho de cravos, na sombra da noite... da mesma noite em que acompanhara o noivo à estação...

Em tudo isso eu não queria ver a prova de que lhe despertara uma simpatia natural; via somente o manejo dúplice, a traição a Tobias Pinto, a aceitação simultânea de um afeto furtivo. Teria sido preciso que eu fosse o seu primeiro namorado, que fosse eu o primeiro rapaz de quem ela houvesse aceito um aperto de mão mais terno, um olhar de carinho, um sorriso correspondido. Orgulho do meu egoísmo, eu sabia. Que fazer? Tormento de ser absolutamente o primeiro nos mais secretos pensamentos de uma mulher... daquela mulher...

... Ela apertava docemente minha cabeça entre as mãos. Por muito tempo, sem falar, ficou ninando o meu teimoso sofrimento.