XXI - Casa desmoronada
Só por acaso fiquei sabendo que primo Boanerges, alarmado,
chamara meu pai. Viera trazer-me jornais. Entre eles, esquecido, encontrei o telegrama de respostas que li a furto:
Coronel Boanerges Pereira
Fazenda Córrego Fundo
Estação Pau d'Alho
Nosso chefe Joaquim Vieira Pires partiu ontem São Paulo ponto. Avisado
telefone ponto. Diga se necessário mandar médico do Rio
Vieira Pires & Cia.
Afinal, não era preciso incomodar o velho, pensava eu, ainda que não fosse possível continuar no Córrego Fundo, em promiscuidade com as crianças e
dando trabalho a prima Emerenciana. Bastara já aquele aborto, de que eu fora a causa.
Se primo Boanerges não se houvesse precipitado, eu resolveria tudo com muita calma: proporia que os primos voltassem para a cidade e me deixassem ali
sozinho com a cozinheira e um camarada para tratar de mim, o Tomé ou o Anastácio.
O mais aborrecido era que eu não poderia por enquanto pensar em comprar uma fazenda, conforme vinha arquitetando. As congestões, uma primeiro por
causa do sol em excesso, outra agora por causa da chuva, mostravam que meu pulmão se tornara uma víscera sensível ao tempo, incompatível com os ásperos misteres da criação e da lavoura.
Aquela surpresa que eu queria fazer a meu pai, de convidá-lo a vir passar uma temporada na "minha fazenda" e aparecer diante dele robusto e queimado
de sol, outro homem no físico e no moral, tinha que ser adiada por muito tempo ainda, talvez para sempre. Provava-o desgraçadamente a golfada vermelha.
Se meu pai quisesse me levar para o Rio?
Essa idéia me encheu de receios. Eu me sentia tão feliz no Córrego Fundo!
À Zuca das noites de idílio no quarto silencioso, boca com boca, num ardor de beijos longos, sucedera oura, tão enfermeira, tão terna, que compreendi
que gostava dela, gostava mesmo e não podia remediar.
Prima Emerenciana me animava muito; estava sempre no quarto comigo, tanto quanto lhe permitiam os trabalhos caseiros. Os novelos de lã e as roupinhas,
já prontas, do menino gorado, foram cuidadosamente para a cômoda. E como eu lhe observasse, rindo, que o enxoval não estava perdido, pois ficaria para o próximo parto, ela se lembrou de repente:
- Quem sabe se a Zuca não vai aproveitar tudo isso primeiro do que eu?
Senti uma dor confusa. Disfarcei, afetei naturalidade, pedindo notícias do casamento com Tobias Pinto. Zuca deu de ombros e olhou-me de soslaio,
reprovativa, mas a prima informou, sem saber que me magoava:
- O Boanerges vai decidir o negócio com o compadre José da Estação. Vão abrir um grande armazém no Pau d'Alho, para fornecer às fazendas. Se a Zuca
não acostumar em Vitória, o Tobias vem tomar conta da gerência.
Zuca se pôs a seguir com a ponta dos dedos, na vidraça da janela, as gotas de chuva que do lado de fora escorriam como lágrimas. A conversa prosseguiu
assim, íntima, à beira de minha cama, como se eu fosse uma pessoa de muito bom conselho, a quem se confiam os projetos (ajustes de casamento, adjutórios para os futuros genros) e se pedem opiniões.
Prima Emerenciana me fazia ver todo o recôndito mecanismo daquelas vidas que vegetavam ali, entre o berço e a morte, no meio de gados, colheitas,
festas de igreja, aniversários, abortos, doenças, tachadas de doce, chás de erva cidreira, cigarros de palha.
Pela primeira vez senti a distância entre os meus hábitos de homem da cidade e aquele ramo sertanejo da minha árvore materna, os Pereira, de Vila da
Mata, que arrastavam atrás de si uma fila de compadres, comadres e afilhadas, Zés da Estação, Siás Binas e Zucas.
Um azedume cresceu no meu coração, rebentando em sarcasmos calados. Nos meus olhos, decerto, passou um clarão hostil porque Zuca, voltada para mim com
um sorriso triste, mudou de expressão, como alguém que recua. Pobre mocinha do mato, de braços tão doces para abraçar... Aquela carnação macia e forte, aquele seio casto que eu tantas vezes apertara contra mim, tudo seria em breve para o Tobias,
gerente do Grande Bazar do Povo, de Antunes & Pereira, Estação do Pau d'Alho, Estado do Espírito Santo.
A inquietação de saber se ela era "moça boa" desaparecera. Eu me surpreendia a pensar sem tormento nesse passado inventado por mim, pelos meus ciúmes
de imaginativo. Aceitava-a, já agora, tal como ela aparecera na minha vida. O que me pungia era o pensamento de que Tobias Pinto ia ser dono legal e tranquilo daquela boca - daquela, que me revelara uma ternura inexplicável, diferente de tudo que
eu até então sentira numa boca de mulher.
Parecia-me que Zuca não tinha o direito, depois de mim, de beijar mais ninguém, embora eu devesse abandoná-la e esquecê-la. Mas, afinal de contas, eu
poderia mesmo esquecê-la?
O meu olhar devia ter ficado carinhoso: procurando ler nos meus olhos, ela tornou a sorrir. Como prima Emerenciana estivesse de costas, examinando
contra a luz um vidro de poção, Zuca aproveitou a trégua e espichou um beijo com os lábios em ponta. Eu senti que esse beijo, na intenção dela, pousava amoroso em todas as minhas carnes torturadas pelos sinapismos e pelas ventosas. |