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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[17])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 107 a 114):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XVI - Noturno do Córrego Fundo

Agora, todas as noites, quando a fazenda estava em silêncio, eu escapava do quarto e ia bater na porta de Zuca, devagarinho, com medo de acordar as crianças que dormiam ao lado.

Os relinchos de uma égua no pasto, o canto insone de um galo em distantes quintais de colonos, interrompiam as nossas conversas sussurrantes, assustavam-nos. Às vezes, um cincerro vinha vadiar pelo terreiro a sua melodia mansa e monótona: era o Pigarço, a cujo pescoço o Tomé prendera, a meu pedido, a campânula sonora, para que eu sentisse perto de mim, à noite, a amizade vigilante do cavalo.

Eu queria um bem profundo ao Pigarço porque era o cavalo que Zuca preferia. Ela adorava as montarias em pelo, as corridas doidas pelo pasto afora, com um simples cabresto passado no focinho do animal. Da janela da sala de jantar, prima Emerenciana gritava:

- Essa menina se mata! Zuca! Ó Zuca!

- Sua afilhada ainda quebra uma perna aqui no Córrego Fundo. Você precisa proibi-la, obtemperava o primo, inquieto. Que é que nós iríamos dizer depois ao compadre José?

Prima Emerenciana já tinha proibido, mas que se havia de fazer? Quando se pilhava no terreiro, a afilhada não lhe obedecia; a atração do cavalo era mais forte. Menina do mato, acostumada a lidar com os animais - que se havia de fazer?

- Aliás, é também mau exemplo para a Mariazinha, que já outro dia saiu a galope feito uma louca, na Bragada.

Zuca montava à inglesa, de pernas abertas, subitamente transformada pela sensação de domínio, liberta daquele pudor que eu lhe conhecia para os menores gestos, imagem viva de uma adolescência audaciosa. Dizia adeus com um galho de mato á guisa de chicotinho, esporeava o Pigarço com o salto da botina, disparava súbito aos nossos olhos alarmados, enquanto as crianças aplaudiam. A prima Emerenciana insistia, aos gritos:

- Zuca! Zuca! Você cai do Pigarço!

Zuca não escutava mais, cabelos ao vento, o raminho agitado na mão em triunfo.

Uma tarde eu fora esperá-la atrás do Pinhalzinho; e quando o cavalo chegou junto a mim, tomei-a nos braços, beijei-a na boca pela primeira vez.

O assoalho do corredor, às vezes, estalava. Ficávamos de ouvido alerta. Os primos teriam vindo espiar? O sangue subia-me à cabeça, experimentava uma agitação confusa. A desconfiança dos primos seria o desmoronar da nossa felicidade oculta, aquele idílio ansioso fora de horas.

Aprendêramos a distinguir os menores ruídos noturnos dentro de casa, estalidos de madeira seca, furtivo perpassar de camundongos, insônias do sabiá na gaiola da varanda, rolar manso de uma brasa no fogão da cozinha em que o fogo se extinguia. Sabíamos, pela direção do rumor, qual das crianças se movera na cama, no quarto ao lado. Robertinho tinha mau dormir e dava surdos pontapés na parede. Mariazinha sonhava em voz alta.

Meu conhecimento do chão era minucioso. Evitava todas as tábuas em falso, todas as asperezas que podiam me magoar os joelhos, todos os trechos do corredor em que o madeiramento rangia. Adivinhava no escuro os pontos da parede em que me podia apoiar sem enfiar a mão em buracos do adobe, que sugeriam sempre a vida obscura de desconhecidos insetos.

O secreto idílio era quase inocente. Se prima Emerenciana me visse arrastar-me, como um lagarto, até o quarto de Zuca, diria que eu a perdera. Entretanto, o mal não passava de ficarmos abraçados, as bocas unidas num beijo sem fim. A ternura com que ela se abandonava à minha boca não lhe quebrava a castidade. Parecia-me natural que assim sucedesse: seus seios contra o meu peito, as bocas presas, nosso calor confundido, sem que um instinto mais violento rompesse a perfeição do contato. Tão poderoso quanto o meu desejo contido era o respeito que me impunha a sua pureza inviolada.

Desde o primeiro encontro noturno que me dissera baixinho, no ouvido:

- Não pense que eu sou boba. Você me beija, mas não é para casar comigo. Não me importo.

Mais de uma vez me preveniu depois: eu não pensasse que a enganava, ela bem sabia que eu não queria casar com ela...

Por meu lado, nunca pensei em lhe mentir: nunca lhe falei em casar.

- Você é noivo no Rio, eu sei.

Pensava em Pequetita. Devia sabê-lo por prima Emerenciana.

- Não sou noivo no Rio - informei secamente.

Como explicar-lhe que gostava dela sem cálculos nem projetos? Eu mesmo não compreendia. Obedecia a um apelo indefinido, sem amanhã. Só o que eu queria era chegar perto do seu corpo e respirá-lo, nada mais; parecia-me que no dom da sua meiguice o mato do sertão anônimo estava presente e virginal.

Um dia cogitei: terá tido em Vitória uma aventura? Uma leviandade? Seria ainda "moça boa", como dizia prima Emerenciana?

Depois que essa dúvida me mordeu, forcei a resistência de Zuca, mas inutilmente. Com um simples olhar de surpresa ela desarmava o meu gesto. Era por ciúme, um ciúme absurdo, o desejo de ter a prova crua da verdade, que eu insistia contra o seu pudor. Com certeza outro a possuíra. O noivado mole, sem interesse, explicava tudo: queria encobrir a falta.

Por isso aceitara aquele insignificante Tobias Pinto, fiscal da Câmara em Vitória, que viera ao Pau d'Alho tocando clarineta numa festa religiosa. Aceitara-o como aceitaria outro qualquer que gostasse dela para casar, o primeiro telegrafista da estação que fosse solteiro,um sitiante arranjado, o Tico oficial de justiça...

Eu era imbecil: a fazer tanto romance em torno de uma mocinha de roça que se perdera sem dúvida com um namorado, na Vitória.

A necessidade de saber se Zuca era "moça boa" começou a me exasperar até à angústia. Passei a ter mau humor, a evitá-la a não ir mais à noite ao quarto, a conversar pouco na sala de jantar. De que valia tudo aquilo?

Sem dúvida eu gostava dela. Mas para quê?

O enxoval da criança esperada avançava. Zuca multiplicava as faixas, os cueiros, os agasalhos de tricô, os sapatinhos de lã gavetas e gavetas de misteriosas roupinhas enfeitadas de fitas coloridas, enquanto prima Emerenciana, na sua gordura pejada, movia-se teimosa pelos quatro cantos da casa nos cuidados incessantes pela vida da fazenda.

Tobias Pinto escreveu um cartão postal avisando que vinha a Pau d'Alho no domingo seguinte para marcar o dia do casamento. Fora promovido a fiscal de primeira classe.

Zuca partiu a fim de esperar o noivo.

Na sala de jantar da fazenda, a cesta de costura era uma coisa morta que evocava tristemente os dedos ligeiros.

Lá fora, as chuvas fortes tinham caído. Pigarço errava molhado no pasto deserto, e o cincerro, tintinabulando na noite cortada de relâmpagos, tornava pungente a solidão.