XII - De Jerónimo Vieira Pires, na fazenda do Córrego Fundo, a Pequetita Novais, na Capital Federal
Minha boa Pequetita,
Estou sozinho na fazenda do Córrego Fundo, onde aliás não foi assinalada ainda a presença perigosa dos Aimorés. Passa de dez horas da noite e tomo
conta de quatro crianças que dormem a sono solto. Os pais foram para a cidade, isto é, para a Vila, onde hoje, depois de várias cerimônias religiosas e de um leilão de prendas de arromba, há um baile.
Tome nota: um baile na casa da Câmara. Sabe você o que há nisso de poesia, de genuína vida brasileira do interior? Um baile na casa da Câmara! Eu
não vou, infelizmente não posso ir, mas estou a ver como tudo se passa.
Na entrada principal do sobradão vermelho, com mastro, bandeira nacional e escudo republicano, há um ajuntamento de povinho miúdo que esfervilha em
admiração e comentários. É a gente pobre da Vila, são sitiantes das redondezas, são camaradas de fazendas distantes - toda a caboclada de roupa de chita e pé no chão.
A rua tem arcos de banbu e galhardetes, bandeirolas de papel de cor, lanternas venezianas. O presidente da Câmara, exatamente o meu primo
Boanerges, em cuja fazenda estou hospedado, recebe as famílias importantes da localidade no topo da escada rangente, a escada carcomida que há cinquenta anos, ou talvez cem, suporta o passar dos vereadores nas segundas-feiras de reunião do
conselho. A luz elétrica pertence ao poder público municipal; por isso, há uma abundância exagerada de lâmpadas de cem velas. O primo Boanerges e a mulher, minha gorda prima Emerenciana, fazendo as honras da casa aos convidados, distribuem apertos
de mão, abraços, risos de contentamento...
Que ideia é esta minha de não ir ao baile e ficar aqui a escrever-lhe?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas... Não adivinhou. Es-car-rei sangue.
Quando há quatro meses cheguei a estas alturas, percebi logo o inédito encanto do mato sertanejo e tomei a decisão de romper com o passado; mas, é
curioso, só agora é que me sinto desprendido desse mundo, completamente desprendido, depois que es-car-rei san-gue. Esta carta, portanto, lhe chega às mãos de um outro mundo, não ainda o de além, mas qualquer coisa de imenso que fica para aquém do
Rio Itabapoana.
Minha boa Pequetita: o sertão me renovou. O Jerónimo que aqui lhe fala não é o mesmo Jerónimo daí. O Jerónimo que de tão longe lhe escreve estas
linhas ouviu e compreendeu as meigas vozes da vida rural. Não só a vida da cidadezinha, mas também a vida da fazenda, do campo rude, em que é um prazer sair de manhã pelos canaviais úmidos de orvalho, ou sentar-me, como agora à noite, numa sala
morta de casarão silencioso, enquanto lá no pasto uma rês perdida muge à lua...
Estou fazendo um curso de Brasil. Peço perdão se a matéria não interessa ao seu espírito de moça em vésperas de viajar para o estrangeiro e que
brevemente, de Buffalo ou Cincinnati, se lembrará com tédio deste vasto litoral sul-americano a cuja orla se agitam algumas cidades habitadas por mestiços de todas as composições morenas. Peço humildemente perdão.
Ah! se não fosse uma certa gripe e uma certa tosse que alarmaram meu pai - ou antes, a firma -, eu não teria feito tantas descobertas úteis.
Descoberta, em primeiro lugar, do Pau d'Alho. Depois, da minha alma. Depois... São tantas, Pequetita, que eu ficaria a noite inteira a lhe escrever, e não acabaria! Resumindo, descoberta do Brasil.
No fundo, não foi a advertência de há dias, o escarro de sangue, que me tornou prudente e me chumbou hoje, noite de festa em Vila da Mata, à
solidão da fazenda. Foi talvez o próprio gosto pela solidão da fazenda.
Os primos passaram o dia e passarão a noite na cidade, distante daqui apenas uma légua. É domingo e toda a camaradagem, todos os colonos foram
também ver as rezas, os fogos e o sereno da casa da Câmara; virão alta madrugada, pela estrada branca de luar, as mulheres a pé e descalças com as botinas às costas na ponta de um pau, os homens bamboleando no lombo dos cavalinhos trotões...
Amanhã dirão, de foice em punho, sonolentos, nas roças: "Eta segunda-feira braba!" Quanto aos meus primos, dormirão na vila e só voltarão por volta
da hora do almoço, no fordinho barulhento, fatigados da festança, acompanhando a Zuca, que com certeza se terá divertido muito...
Zuca. Apresento-lhe a filha do José da Estação, hoteleiro no Pau d'Alho. Ela vem ficar uns tempos aqui no Córrego Fundo, para ajudar minha prima no
enxoval do quinto herdeiro, prestes a chegar. Dizem que tem mãos de fada para fazer um enxovalzinho de criança...
E eu terei passado uma noite sozinho na casa do Córrego Fundo, com os meninos que dormem no quarto ao lado e cujo branco ressonar me acaricia o
ouvido como uma música evocativa, de infância, sem outro sentido senão o de uma tocante reminiscência pessoal.
Estou portanto só, frente a frente com você, Pequetita: desejoso de bem apreender os pensamentos desta noite e transmiti-los fielmente.
Toda a minha ambição agora é morar numa casa construída por mim, numa fazenda aberta por mim... Está claro que nesse quadro sertanejo é preciso pôr
a mulher. Talvez uma bugra pegada no laço? Uma aimorezinha arisca, de dentes afiados... Se ela um dia me morder na orelha, telegrafarei com urgência a você, da estação mais próxima, felicitando-a pela realização do vaticínio idílico.
... Fui até à janela respirar a noite. Que lua formidável anda por aí, branquejando por esse céu! A cachorrada late espantada, o gado muge nos
pastos, os bezerrinhos, presos no curral, choram... A noite parece minha, toda minha, especialmente composta, na sua harmonia de formas e ruídos, para a consolação do meu espírito.
Nunca supus que a noite fosse tão cheia de eflúvios secretos. Basta pôr a cabeça fora da janela e a impressão de que mãos meigas me tocam é nítida,
material. Pequetita, se eu ainda amasse você, diria que o seu pensamento anda espalhado nesta noite do Córrego Fundo, à minha procura, ansiosamente... mas deve ser o pensamento de outra moça, filha rústica destes matos esquecidos...
Eu também quero viver esquecido. Com as minhas próprias mãos vou levantar uma vida nova, de acordo com as vozes que sobem desta solidão e falam á
parte mais profunda do meu ser, à verdade secreta da minha essência.
Morri para o Rio de Janeiro e para todos os que aí me conheceram. Não me leve a mal se lhe digo também adeus...
Seu falecido
Jerónimo. |