XIII - Boca madura
Do meu quarto escutei prima Emerenciana abraçando e beijando as
crianças no terreiro. O primo foi guardar o forde na garagem. A voz do Anastácio, abobalhada, perguntou se subia com os embrulhos. Embrulhos de Zuca, provavelmente... (Seus vestidinhos de andar em casa, suas camisinhas, os chinelos cara-de-gato que
eu conhecia, os modestos objetos de toalete, um estojo de costura talvez...)
- Como está bonito o Córrego Fundo com a casa nova do engenho!
Era a voz juvenil, com entonações ondulantes. Não quis espiar à janela. Reservava-me para a surpresa de dar com Zuca face a face, na sala de estar; de
tomar da sua presença uma posse direta e leal.
Os cachorros faziam festa, latindo, aos pulos de encontro à prima.
- Ó Anastácio, que faz esta lata de leite na porta da garagem? - gritou meu primo.
- Creio que foi o Tomé, coronel!
- O Tomé, o Tomé! Ora o Tomé! Leve isso para dentro!
Os passos da prima e de Zuca subiram a escada. Corri ao espelho, passei a escova no cabelo, ajeitei o nó da gravata. E saí com ar distraído de quem
não espera granes novidades.
- Então, prima, como foi de baile?
- Ah, não sabe o que perdeu!
As crianças subiram atrás, rodeando Zuca. Disfarcei a emoção com que a esperava, perguntando:
- A sua afilhada veio?
- Esta aí... atrás de mim... Olhe ela.
E apontou para Zuca, que entrava.
Veio para mim de mão estendida, sem embaraço algum. Seria a mesma do hotel da Estação, de chinelos, à porta da cozinha, com o ar esquivo? Seria a
mesma do curral, ofertando-me o copo de leite, vestida de chita vermelha?
Não, era a Zuca do beijo do laranjal, dos cravos atirados ao carro com a cumplicidade da noite... Era a Zuca do sorriso malicioso, disfarçado aos
cantos da boca miúda, toda ela modéstia e graça num vestido branco de moça da cidade, sob um largo chapéu de palha que lhe protegia do sol a pela morena e fina... Era uma Zuca que continuava do campo mas deixava transparecer uma alma rica de
impulsos escondidos, ignorados da família, do noivo, da madrinha...
- Foi o senhor que assinou para mim o "Jornal das Modas Femininas"?
- Fui. Gostou?
- Gostei. Obrigada.
Sentou-se na cadeira de balanço, pôs o Robertinho no colo, passou o braço pela cintura de Isaurinha...
- Essas crianças não o aborreceram muito, primo? - perguntou Emerenciana.
- Nem um pouco. Você sabe que elas não me aborrecem nunca.
Primo Boanerges, com um jeito de homem estrompado, entrou vagaroso, apalpando os rins com as mãos vigorosas.
- Derreado, primo? Dançou muito?
- Trabalhei, isso sim. Você sabe, o presidente da Câmara, numa noite como a de ontem, não tem descanso.
Zuca estava de costas para mim na cadeira de balanço. Aproximei-me dela com a sensação de contemplá-la pela primeira vez. O cabelo negro era repartido
no meio por uma risca fina e branca. Os braços queimados de sol envolviam Robertinho, amorosamente. Naquele instante era a mãe de amanhã, ensaiando o gesto de embalar. Parecia feita para a fecundidade, com os seios fortes que lhe empolavam a blusa.
Voltou para mim a cabeça e riu com infantilidade. Os dentes pequenos descerravam-se mostrando a ponta da língua úmida, como certas goiabas verdolengas que a gente abre descobrindo com delícia a polpa vermelha e madura. |