X - Cigarro de palha
Meu coração bateu forte. Teria ouvido bem? Não era possível...
- Ela costura primorosamente. Pri-mo-ro-sa-men-te.
Prima Emerenciana estava grávida. Aliás, eu já devia ter compreendido que tanta gordura redonda revestia forçosamente uma segunda criatura em gestação
secreta.
Zuca viria passar algumas semanas com ela, para ajudá-la no enxoval do pequenino. Tive vontade de sair aos pulos por aquela cozinha imensa da fazenda
onde eu dava uma prosa, esperando o café. Dominei o contentamento. A prima, tirando a chaleira do fogo e derramando a água fervendo na cafeteira, explicava:
- Ela vem para a festa da Santa Teresinha na cidade e já fica conosco.
Ali, na casa da fazenda... Todos os dias perto de mim... Depois do episódio dos cravos, eu vivia numa impaciência atroz, à espera daquela festa em
Vila da Mata, à qual a caboclinha, por certo, viria assistir. Não tinha pretexto nenhum para ir ao Pau d'Alho, nem mesmo a caixa de brinquedos eu pudera ir buscar, porque o chefe da estação, desejoso de ser agradável, assim que ela chegara mandara
entregá-la por um próprio. De repente, a notícia daquele enxoval, daquela gravidez bendita, daquelas semanas de costura... Nunca senti tanta veneração pela fecundidade de minha prima.
- Parece que ela é noiva, essa mocinha - falei com ar distraído.
- De um rapaz muito distinto. Coça um pouco (e minha prima beliscou uma orelha para indicar que o noivo de Zuca era mulato), mas muito distinto.
- Tem o cabelo ruim? - perguntei a minha prima, que gostava de conversas bisbilhoteiras.
- Não muito, mas vê-se que coça, no beiço roxo... - e fez um momo de desdém inocente, manifestando uma certa repulsão. - O que tem é que é muito
inteligente. É fiscal da Câmara em Vitória, muito estimado pelos chefes.
- Eu sei.
- Sabia?
- Sabia que era fiscal da Câmara. (E mentindo, com descaro): Foi o José da Estação que me falou.
Fiz lentamente um cigarro de palha. Minha prima mandou a Josefa cozinheira buscar açúcar na despensa. Esperei tranquilo o café gostoso: tão gostoso
para fumar um cigarro feito na hora, com um bom pedaço de Rio Negro...
- Crende os Padres, como é que você, primo, um moço do Rio, se habituou logo com fumo de rolo?
- Prima, você não sabe o enternecimento com que eu fumo estes cigarros de palha. É ridículo, mas tenho a impressão de que só fiquei verdadeiramente
brasileiro depois que vim para o Córrego Fundo e adquiri estes hábitos. Este cigarro, prima Emerenciana, é o Brasil...
Ela não podia compreender também que eu, rapaz da cidade, que tinha boas roupas e mãos finas, gostasse de ficar acocorado, conversando com ela, junto
ao fogão. Nem eu podia lhe explicar o profundo encanto daquela cozinha de fazenda, com grandes tachos e panelas de pedra sobre a chapa, toucinho dependurado no fumeiro, o barril de água doce a um canto, facões brilhando muito limpos na mesa de
picar a carne e, pelos cantos, grandes abóboras vermelhas dormindo entre carás e inhames. E quando primo Boanerges andava pelo terreiro, sumia nas tulhas ou no engenho de cana, a prima aproveitava para fumar também um cigarro furtivo, comigo...
- Faça um para mim, primo.
Eu fazia um cigarro para prima Emerenciana, comovido com aquele traço de pudor provinciano. Como toda fazendeira, a prima fumava, mas não na frente do
marido.
- Quando é que eles casam, prima?
- Quem? Zuca? Não sei, talvez em junho do ano que vem. Não está marcado. O moço tem projeto de se estabelecer na roça.
- Ah, então não vão morar na Vitória?
- Qu'esperança! Ele gosta da roça. O Boanerges pretende ajudar o compadre José da Estação - você sabe, é um bom homem. Parece que vai emprestar
dinheiro para aumentar o negócio, melhorar o hotel, receber veranistas... Quem ficará tomando conta do armazém é o genro.
Lá de fora vinha o chiado dos carros de bois, misturado ao canto intermitente dos galos preguiçosos. Essas notas espalhavam uma lombeira insinuante na
tarde quieta da fazenda. Vozes longínquas de camaradas que trabalhavam nas roças e nos pastos entravam nítidas, aperfeiçoadas pela acústica dos morros. Ela não iria para a cidade. Ficaria naquele quadro rural de Pau d'Alho. Um dia, anos depois, eu
havia de voltar a Vila da Mata... E pousar naquele hotel... Ela estaria gorda, como prima Emerenciana. Teria filhos. Daria palmadas nos mais irrequietos. Não se lembraria do beijo que me jogara de longe, dos cravos que me atirara... Por que atirara
os cravos? Provocação? Peraltice apenas. Peraltice de menina, menina de roça que vivera na cidade, aprendera a calcular a oportunidade de um gesto faceiro.
- Você já tomou o café, primo, agora vá para o seu repouso e acabe de fumar na cama. ontem saiu a cavalo à tarde, e ficou com um pouco de febre. Eu já
lhe pedi que só saia no Pigarço de manhã. Olhe a recomendação do primo Joaquim! Nada de extravagâncias!
Fui para o meu quarto. Onde andaria a criançada? Nem um grito, nem um tropel. Na paz da fazenda, o rumor das crianças era tão indispensável como o
bater do monjolo, o ranger da roda do engenho, o chiado dos carros de bois. Paz toda feita de ruídos da natureza, de vozes de animais e de trabalhos da criatura humana.
Anastácio descobriu que as crianças estavam tomando banho na cachoeirinha, atrás do cafezal velho. Dentro em pouco, no terreiro, primo Boanerges
exemplava a filharada, malhando a palma vigorosa nas carninhas tenras que pediam socorro.
Desperto do torpor, fiquei de ouvido alerta sorrindo daquela surra coletiva, e murmurei com ironia divertida: a matança dos inocentes.
O sol invadia o quarto. Na faixa de luz dourada que se estendia entre a janela e o chão, movia-se vagarosa a fumaça do cigarro de palha, com a mesma
preguiça feliz dos meus pensamentos dispersos... "Ela costura primorosamente..." "Vem para a festa de Santa Teresinha..." "O casamento é em julho do ano que vem..." "O moço tem o projeto de se estabelecer na roça...". |