IV - Descobrimento da província
Papai querido,
Cheguei há vinte dias e se não lhe escrevi antes foi porque estava à espera de recolher um grande punhado de impressões. Do contrário, apenas
poderia confirmar o telegrama: que fiz boa viagem e que os nossos primos são estupendos.
Boa ideia o senhor teve de mandar-me para cá. Que burro que eu sou, que ainda lhe falei em Suíça!
Papai, em menos de três semanas sou outro homem, tanto no moral como no físico. O senhor vai rir-se, eu sei, mas não se ria, é sério. Começo por
dizer-lhe que deixei o Rio, naquela nossa triste despedida do trem noturno, na estação sujíssima de Niterói, com um peso na alma. Cheguei no dia seguinte, já noite, a Pau d'Alho, com o corpo moído e uma vontade imensa de dormir. O hotelzinho era o
que se pode dizer: mambembe.
No outro dia de manhã fui despertado pelo primo Boanerges, que veio me buscar com o fordinho da fazenda. Que deslumbramento foi para mim aquela
primeira manhã de roça, no Pau d'Alho! Imagine que fiquei tão seduzido que cheguei, ali mesmo, a formar o projeto (desses projetos!) de ser fazendeiro e morar o resto da vida na roça.
A roça, papai, dá vontade de ser feliz e de viver uma vida parada. A impressão é de que ninguém faz coisa nenhuma e que a gente passa as horas
dando graças a Deus. Nas porteiras ou nos terreiros das fazendas, as pessoas que a gente vê parece que brincam de tomar conta da natureza. os passarinhos é que trabalham, sempre a esvoaçar em grande atividade, de uma árvore para outra, cruzando a
estrada na frente da gente. Mas tudo isso é só impressão. Bastaram uns dias aqui na fazenda do Córrego Fundo para eu compreender como é dura esta vida de lavoura.
A viagem no forde até Vila da Mata foi cheia de incômodo e de pitoresco: sacudidelas nos caldeirões de tijuco, escalas à porta dos negócios
(vendinhas com prateleiras vazias; afinal, ue é que se vende ali?), apertos de mão de primo Boanerges a um e outro que foi encontrando - que político terrível, papai! ele só pensa em política, apesar de ter um jeito quietarrão de não pensar em
nada! - e, quando chegamos a Vila da Mata (uma rua muito comprida com casas baixas, um largo no meio com sobrados e uma igreja), tive o gosto de fazer conhecimento com quatro demoninhos adoráveis, a Isaura, o Emiliano, a Mariazinha e o Roberto.
Esse é o sortimento de gente miúda do primo Boanerges e da prima Emerenciana - que lhe mandam muitas lembranças e já me disseram mais de dez vezes que não me esqueça disso nas cartas. Não sei se o primo Boanerges já lhe escreveu, mas se o fez foi
em segredo. Segundo o senhor me deu a entender, ele está encarregado de fiscalizar as minhas extravagâncias...
O senhor se visse a prima Emerenciana não a reconhecia. Como engordou! Nunca supus que uma mulher ainda moça, de trinta anos apenas, pudesse ficar
tão disforme! Quando ela se casou e passou uns dias conosco no Rio, eu era menino, mas me lembro, tinha uma carinha bonita, palavra. Agora, a gente nem repara no rosto dela, só repara na gordura excessiva. Entretanto, é a bondade em pessoa. (Entre
parêntesis, outro dia, conversando comigo, ficou muito curiosa de conhecer o "Jornal das Modas Femininas", que traz modelos de trabalhos de agulha. Peço-lhe o favor de tomar uma assinatura. Com urgência).
Os primos têm uma boa casa na cidade, na esquina do Largo da Matriz com a Rua Direita. Todos os quartos são enormes e na maior parte estão vazios.
Diz a prima Emerenciana que é para quando a meninada crescer e casar; as noras e os genros virão morar todos juntos debaixo do mesmo teto...
No próprio dia da minha chegada fui visitadíssimo. Naturalmente, por causa de ser primo do Boanerges, que é presidente da Câmara e chefe político.
Fiquei conhecendo o vigário, um padre italiano que faz o vinho para a missa, cultivando as uvas no quintal da casa paroquial; um tabelião chamado Xéxéu, que toca órgão e é solteirão; o prefeito municipal; o coletor estadual; todos eles velhotes de
boa conversa. O escrivão de paz, um tal tenente Raimundo, é surdo e faz versos humorísticos num jornalzinho, "A Abelha".
Os rapazes é que são poucos aqui: emigram para Vitória, para Campos ou para Rio, porque a terra é pobre e os empregos estão ocupados pelo pessoal
idoso da política. O juiz de direito veio fazer-me uma visita de cerimônia, de dez minutos, e fala grosso, zumbindo como um besouro. O promotor está ausente; é um alagoano muito namorador, dizem que em cada comarca para onde vai deixa uma noiva, e
não casa nunca. O que ele quer é receber presentes das futuras sogras, que naturalmente se desvelam em mandar-lhe pratos de doces e as melhores frutas.
Além dessa gente, há o delegado de polícia, mas não é formado, é um fazendeiro da política. Tudo aqui obedece a esta regra: a política. Parece que
há um partido de oposição, mas não conheço ainda ninguém desse lado, nem meu primo, com certeza, me apresentará aos adversários.
Papai, que mundo inédito de criaturas e de coisas! Eu pensava que o Brasil, em suma, fosse o Rio, e afinal não é. O Brasil é muito mais complicado
do que a gente pensa aí na Avenida Rio Branco. A cidadezinha quieta, a vilazinha de aparência morta, que mundo oculto de agitações, ciúmes, ambições, heroísmos, conformações! Nos poucos dias que passei em Vila da Mata, meus olhos se abriram a um
aspecto completamente novo da vida. Papai, eu descobri a província.
Eu queria que o senhor me visse, às cinco horas da tarde, depois do jantar, descer a Rua Direita ao lado do primo Boanerges, e dar uma prosa em
cada porta de venda, em cada janela baixa, em cada esquina!
Perguntam-me, invariavelmente, pelo Rio, como se eu tivesse fios telegráficos particulares e recebesse daí notícias especiais.
- Que é que há lá pelo Rio, doutor?
Entretanto, os jornais que eles leem - e eu absolutamente não leio, desinteressado de tudo - fornecem as informações mais amplas. É extraordinário.
Como sou do Rio e moro no Rio, devo sempre saber mais do que os próprios jornais recém-chegados.
É a ingenuidade da província, papai. Para eles, quem é do Rio tem um traço superior, civilizado, que distingue do resto da população do país.
Entretanto, o brasileiro da província é muito mais brasileiro que o da grande cidade. Por exemplo, nós aí não lemos os jornais senão por alto e
pouco nos incomodamos com o que se passa de sério ou de grave pelo país. Pois bem, na farmácia N. S. Auxiliadora, o capitão Macário, coletor estadual, e o tenente Raimundo, escrivão de paz e poeta humorístico já citado, que não têm um vintém de
fortuna, levam horas e horas com um ar desolado, cheio de silêncios reflexivos, em conversa suspirosa sobre a baixa do câmbio! Ao vê-los, dir-se-ia que se trata de dois capitalistas a quem a descida de uns pontos, na lousa da Bolsa de Londres,
golpeia de desastres iminentes.
Eles se interessam por tudo que toca ao Brasil, estes homens do interior que os elegantes da Avenida ridicularizam quando os veem pasmados na
Galeria Cruzeiro de roupa preta e botinas amarelas, com colarinhos de bico e gravata de laço feito. Esse instinto da unidade nacional, essa capacidade de estar presente nos episódios mais remotos da vida do país, manifesta-se até mesmo em
pequeninas coisas, o que seria ridículo se não fora comovente.
Por exemplo, se o prefeito do Distrito Federal fala a um jornalista que vai construir um novo teatro, Vila da Mata discute o caso à tardinha, como
se se tratasse de um teatro a levantar na própria Vila da Mata; se em Pernambuco há um desastre de bonde ou em Porto Alegre uma casa desabou, Vila d Mata, atenta, lê em voz alta o telegrama.
O Brasil inteiro repercute em Vila da Mata. Não, papai, quem conhece, quem vem ver de perto o espírito da província brasileira, compreende que é
nela que reside a força de coesão do país. Nesse quadro de vida simples e obscura, os "chefes políticos" da roça, personagens que se nos afiguram grotescos quando olhados de longe, da rua do catete, desempenham um papel prodigioso, de equilíbrio e
continuidade. Exagerarei dizendo que são eles as vigas-mestras de uma sociedade ainda primitiva?
Não confundamos os políticos da cidade grande, calorosos de palavreado eleitoral que mal esconde os apetites do poder, com os políticos do
interior, esses humildes coronéis de quem a gente sorri mas que são a melhor reserva de energias da nacionalidade.
Estou apenas há vinte dias ausente da nossa casa da Rua bento Lisboa. como pude observar e sentir tudo isso em tão pouco tempo?
Dou-lhe também a explicação: o interior não é misterioso. Ele se entrega ao homem de fora imediatamente, com franqueza, com simpatia. Desde o dia
da minha chegada, quando recebi as visitas do pessoal político de primo Boanerges, compreendi, embora confusamente, tudo que aí fica dito e é hoje claro dentro de mim.
Não é de Vila da Mata que lhe escrevo e sim já do Córrego Fundo. Primo Boanerges costuma passar temporadas na fazenda. para aqui viemos todos, há
uma semana e pico, ele, a prima e a criançada. Estou traçando estas linhas numa grande sala de cujas paredes pendem espingardas de caça e peles de gato-do-mato. O assoalho é cheio de fendas; dos porões, com as atulhas de cereais, vem um ventinho
fresco que me sobe pelas pernas. É quase meio dia e já almocei. As crianças estão lá em baixo no terreiro num pega-pega furioso. Primo Boanerges foi dar uma volta no cafezal. A prima está preparando umas tachadas de doce de goiaba.
Enquanto que eu, papai, olhando pela janela a morraria azul que limita a fazenda, por esses pastos e plantações afora, escrevo esta carta para lhe
mostrar que estou muito diferente daquele Jerónimo que o senhor conhece e censura, fútil, metido em todos os bares e dancings do Rio, sem convicção, oprimido pelo peso de um terceiro ano da Politécnica do qual há muito tempo não acho saída. Estou
cheio de ternura pelas coisas simples. Já tomei posse de um cavalo chamado Pingarço (baio, de tamanho regular, que eles aqui dizem - cavalo do meio)_ e ainda esta manhã andei galopando por aí, à toa, por esses matos, escutando os passarinhos
fazerem barulho na galharada.
Já sei o que o senhor está dizendo com os seus botões: que vassoura nova varre bem e que logo eu tomo um enjoo definitivo da vida da roça. Pode
ser, papai, não nego que isso possa acontecer. Porém, a verdade é que me sinto outro, me sinto forte e disposto, parece que ninguém tem melhor pulmão que eu (a tossezinha quase não me incomoda) e chego a pensar que vim para aqui somente a passeio;
quanto ao moral, um otimismo que eu desconhecia, um otimismo sem ambições. Note bem: apesar desta vontade de viver, não tenho nenhum projeto definido, mas é possível que este estado de alma, esta aliança do meu ser com a natureza e a tranquilidade
da roça, acabe fazendo de mim um fazendeiro. O senhor não se espante de receber aí um dia destes um pedido de dinheiro grosso para comprar uma sitioca e me estabelecer...
Outra coisa, rogo-lhe que tome também uma assinatura do "Jornal das Modas Femininas" para a srta. Zulmira Antunes, ao cuidado do sr. José Antunes,
Estação do Pau d'Alho. É a filha do hoteleiro do Pau d'Alho, moça muito boazinha, afilhada dos nossos primos. Estava começando a receber educação em Vitória, num colégio, quando ficou fraca do peito, como eu. Então o pai mandou buscá-la. Está agora
ajudando a mãe nos cuidados do hotel e dá pena vê-la, bonita como é, de chinelos sem meias servindo café e tirando leite das vacas!
Foi ela que me deu a beber o primeiro copo de leite tirado na hora. Em paga dessa gentileza faço questão de oferecer-lhe um presente. Creio que uma
assinatura do "Jornal das Modas Femininas" fica bem. O copo de leite em questão foi um verdadeiro poema. Comunico-lhe, a propósito, que o último leite do úbere, o mais gordo, chama-se: apojo. Que maravilha aprender certas palavras no saboroso
contato de uma realidade nova!
Outro assunto: já se foram aqueles trezentos mil réis que o senhor me deu para a viagem. Ainda que eu não tenha onde gastar, preciso de que me
mande outros. Aqui no interior há sempre listas de donativos para festas, benefícios, novas imagens nas igrejas, um ror de coisas que fazem as moças andar de porta em porta, sorrindo e pedindo. As pessoas de fora, já se sabe, são logo solicitadas.
Eu não podia fazer feio e queimei o resto dos cobres numas listas para Santa Terezinha do Menino Jesus. Um desses dias devo voltar a Vila da Mata e não quero entrar na cidade desprevenido.
Papai, prometo cuidar seriamente da minha saúde e não lhe dar um único aborrecimento. Todo o meu desejo é ficar definitivamente forte e persistir
nestes propósitos sérios, em que me encontro, de encarar a vida com juízo. Afinal de contas, um rapaz tem deveres para com a sociedade e o país em que nasceu. Eu desejo ser útil aos meus e ao Brasil.
Envie-me os trezentos mil réis, não se esqueça.
Peço-lhe a bênção e mando-lhe um abraço muito afetuoso do seu
Jerónimo.
P. S.: Esqueci-me de dizer-lhe. Todas as moças de Vila da Mata são pálidas e têm o ar de esperar um marido. Todas procuram pintar-se como as moças
do Rio, mas ficam horriveis. Só a pequena de Pau d'Alho - a do copo de leite - é natural e bonita mais bonita ainda na sua modéstia.
O elemento feminino, portanto, não oferece nenhum perigo a este seu filho amantíssimo.
J.
Outro P. S.
Esqueci-me também de lhe dizer que preciso do terno preto. Parece que vai haver baile no dia da festa para Santa Terezinha do Menino Jesus.
Mande-me esse terno, assim como algumas gravatas, principalmente a de listas azuis.
J. |