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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[04])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 23 a 30):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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III - Os Pereira, de Vila da Mata

Primo Boanerges foi me indicando, pelo caminho, os nomes dos fazendeiros e sitiantes. Às vezes parava junto de uma porteira para conversar com um caboclo. Nessas ocasiões aparecia sempre, na soleira de uma porta de pobre, ou à janela de um casarão de fazenda, uma pessoa que convidava:

- Apeie, compadre. Venha tomar um café.

Ele me pedia desculpas, descia um instante, ia apertar a mão aos conhecidos e compadres. O espírito democrático da vida rural estava todo naquelas paradas do forde, naqueles cafés bebericados à porta de amigos, naqueles oferecimentos constantes para entrar. Tudo me deliciava, revelação inefável de coisas simples.

O forde penetrou enfim em Vila da Mata levantando uma poeira triunfal. A cidade compunha-se de uma rua única, comprida e tortuosa - a velha estrada do tempo colonial, ao longo de cujo barro as casas se foram erguendo, até formar a cabeça da comarca, já no tempo do Império.

Paramos numa praça rodeada de sobrados. Ao fundo era a igreja, chata, sólida, pintada de cor-de-rosa. O vigário estava no adro, conversando com um negrinho respeitoso; e de longe saudou primo Boanerges, tirando o chapéu.

A casa de meu primo, de esquina, se impunha pelo aspecto patriarcal. Tinha apenas o andar térreo, com uma longa fila de janelas que os largos beirais de telha-vã protegiam.

- Vamos entrando, não faça cerimônia. Ó Anastácio, tome conta do carro!

Anastácio estava à porta, de olhos avermelhados, um jeito parvo de opilação e tracoma. Arrastou-se até o auto, perguntou se havia malas para levar. Primo Boanerges gritou com ele; que se despachasse!

- Pois você já não sabe que o doutor tem que ter malas!

Anastácio enfiou o nariz feridento dentro do auto e começou o trabalho, gemendo.

Saltamos. Primo Boanerges levou-me pelo casarão a dentro. Da cozinha, remoto, chegou o ruído áspero de uma faca passada na pedra de amolar. Um gato miava, pressentindo o desventramento de uma galinha.

- Emerenciana, ó Emerenciana! Está aqui o homem!

Os pequenos vieram a correr, sapateando pelo corredor. A cachorrada saltava atrás, aos guinchos.

- Toda essa gente é sua? - perguntei abraçando as crianças.

- Tudo! Tudo isso! Uma cambada. Não dê muita confiança, senão você está perdido.

- Primo Jerónimo! Primo Jerónimo! O senhor veio do Rio?

Era a mais velha, espevitadinha.

- Eu télo i no Rio com ocê - gaguejou o menor de todos, que tinha um dedo na boca, e a camisolinha lambuzada de açúcar.

- Ó Isaurinha, você não vê que seu irmão se emporcalhou todo tomando café? Vá mudar a camisola dele! (E virando-se para mim): É o Roberto, o meu caçula: tem quatro anos, fez em fevereiro.

Roberto abriu a boca num grande riso bem humorado e fiquei imediatamente seu amigo. Isaurinha tomou-o pela mão e sumiu com ele num quarto, toda em repreensões de mãezinha fraterna. Os outros dois, Mariazinha e Emiliano, estavam calados, examinando-me atentos, mas vi logo que aquele silêncio era de cumplicidade e não de bons modos. Quando procurei atraí-los a mim (Mariazinha e Emiliano eram gêmeos, explicou meu primo vendo que eu me interessava por eles) soltaram uma gargalhada súbita, saíram a correr, perseguidos de novo pela canzoada.

- Não se iluda, primo, isto é uma canalhinha. Peraltas como eles só! Vamos, vamos entrando... (Dizendo isso, empurrava-me para a sala de visitas, mas logo mudou de ideia): Espere, você é de casa, vamos lá para dentro. Mas que diabo, onde está a Emerenciana? Ó Emerenciana? Emerenciana! Vamos entrando, vamos entrando...

Prima Emerenciana tinha ido dar um arranjo no cabelo e apareceu risonha na sala de jantar com uma mancha absurda de pó de arroz de um lado da cara.

- Eis o nosso homem - e Boanerges apontava-me. Se isto tem jeito de doente, heim?

Ela me abraçou com bondade, prometendo desde logo que ali, em Vila da Mata, e principalmente na fazenda, para onde todos iríamos logo, eu havia de ganhar pelo menos dez quilos.

- Aqui não é como no Rio, primo - explicou com um sorriso de modéstia feliz. Na roça dorme-se cedo, come-se com sossego, não se tem onde estragar a saúde...

Tinha mudado muito. Não era só a gordura, era a pele do rosto coriácea, os dentes falhados, um ar de velhice prematura. Ainda há dez anos moça esbelta, ficara enorme, pesadona e cansada.

- Minha velha está conservada, heim, primo? - perguntou Boanerges, ingênuo, com uma voz meiga de marido bonacheirão.

- Não mudou nada! - acudi polidamente; apenas (acrescentei pela necessidade honesta de ser pelo menos um pouco sincero) engordou um bocado.

Ela riu-se bondosa, consciente de que engordara muito mais do que eu dizia, mas não dando importância a isso; sentia-se boa mãe de família, fazendeira de mão cheia, indiferente à efemeridade dos atrativos do corpo. Os filhos e o marido era todo o seu mundo.

A mesa estava posta. Apesar de eu ter tomado café em Pau d'Alho, a viagem me despertara o apetite. Olhei aquela rica sucessão de pratos: havia bolos de todas as formas. Diante do meu olhar espantado, primo Boanerges riu-se, compreendendo.

- Você está admirado disto, primo? Pois não é nada... Precisa assistir a uma festa em nossa casa para então ver o que é quitanda... Justiça seja feita, para quitanda não há como Emerenciana.

Ela agradeceu com um jeito modesto, feliz de que o marido lhe louvasse as prendas domésticas perante o primo do Rio.

Então me lembrei de Pequetita Novais, ignorante de todos os mistérios da cozinha, absorvida na leitura de poetas, declamando Albert Samain e Manuel Bandeira... Pequetita Novais, fina, intelectual...

Por associação de ideias pensei também na caboclinha do Pau d'Alho, de chinelos, de vestido de chita, tirando leite das vacas e dizendo que era muito simples, com um riso de ironia urbana perdido no ambiente pastoril do Pau d'Alho. Casada, ficaria logo como prima Emerenciana, gorda, desleixada, orgulhosa das quitandas e esquecida de que devia ao marido a conservação dos encantos. Só a grande cidade pode dar à mulher a ambição de ficar bonita até bem tarde - concluí. E, sentando-me para comer os excelentes bolos de prima Emerenciana, senti o horror de ser casado ali, na roça, com aquelas gracinhas adolescentes que já um ano depois, amamentando o primeiro filho, tomam ares lerdos de matronas bamboleantes. Agradeci a Deus ser um rapaz da cidade...

- Prove este pudim, primo.

- Obrigado, prima.

De pé na entrada do corredor, olhos fixos em nós que comíamos, as crianças arregalavam os olhos urgentes, pedindo repetição do café-com-leite que meia hora antes tinham bebido à farta.

- Roberto, quem é quem mandou você pôr a camisola azul?

Primo Boanerges interveio, explicando: o pequeno estava todo lambuzado, fora ele que mandara Isaurinha mudar-lhe a camisola.

- Bom, está direito. Tomem...

E prima Emerenciana estendeu para os quatro - que se precipitaram - um prato cheio de sequilhos.