III - Os Pereira, de Vila da Mata
Primo Boanerges foi me indicando, pelo caminho, os nomes dos fazendeiros e sitiantes. Às vezes parava junto de uma porteira para conversar com um caboclo. Nessas ocasiões aparecia sempre, na soleira de uma
porta de pobre, ou à janela de um casarão de fazenda, uma pessoa que convidava:
- Apeie, compadre. Venha tomar um café.
Ele me pedia desculpas, descia um instante, ia apertar a mão aos conhecidos e compadres. O espírito democrático da vida rural estava todo naquelas
paradas do forde, naqueles cafés bebericados à porta de amigos, naqueles oferecimentos constantes para entrar. Tudo me deliciava, revelação inefável de coisas simples.
O forde penetrou enfim em Vila da Mata levantando uma poeira triunfal. A cidade compunha-se de uma rua única, comprida e tortuosa - a velha estrada do
tempo colonial, ao longo de cujo barro as casas se foram erguendo, até formar a cabeça da comarca, já no tempo do Império.
Paramos numa praça rodeada de sobrados. Ao fundo era a igreja, chata, sólida, pintada de cor-de-rosa. O vigário estava no adro, conversando com um
negrinho respeitoso; e de longe saudou primo Boanerges, tirando o chapéu.
A casa de meu primo, de esquina, se impunha pelo aspecto patriarcal. Tinha apenas o andar térreo, com uma longa fila de janelas que os largos beirais
de telha-vã protegiam.
- Vamos entrando, não faça cerimônia. Ó Anastácio, tome conta do carro!
Anastácio estava à porta, de olhos avermelhados, um jeito parvo de opilação e tracoma. Arrastou-se até o auto, perguntou se havia malas para levar.
Primo Boanerges gritou com ele; que se despachasse!
- Pois você já não sabe que o doutor tem que ter malas!
Anastácio enfiou o nariz feridento dentro do auto e começou o trabalho, gemendo.
Saltamos. Primo Boanerges levou-me pelo casarão a dentro. Da cozinha, remoto, chegou o ruído áspero de uma faca passada na pedra de amolar. Um gato
miava, pressentindo o desventramento de uma galinha.
- Emerenciana, ó Emerenciana! Está aqui o homem!
Os pequenos vieram a correr, sapateando pelo corredor. A cachorrada saltava atrás, aos guinchos.
- Toda essa gente é sua? - perguntei abraçando as crianças.
- Tudo! Tudo isso! Uma cambada. Não dê muita confiança, senão você está perdido.
- Primo Jerónimo! Primo Jerónimo! O senhor veio do Rio?
Era a mais velha, espevitadinha.
- Eu télo i no Rio com ocê - gaguejou o menor de todos, que tinha um dedo na boca, e a camisolinha lambuzada de açúcar.
- Ó Isaurinha, você não vê que seu irmão se emporcalhou todo tomando café? Vá mudar a camisola dele! (E virando-se para mim): É o Roberto, o meu
caçula: tem quatro anos, fez em fevereiro.
Roberto abriu a boca num grande riso bem humorado e fiquei imediatamente seu amigo. Isaurinha tomou-o pela mão e sumiu com ele num quarto, toda em
repreensões de mãezinha fraterna. Os outros dois, Mariazinha e Emiliano, estavam calados, examinando-me atentos, mas vi logo que aquele silêncio era de cumplicidade e não de bons modos. Quando procurei atraí-los a mim (Mariazinha e Emiliano eram
gêmeos, explicou meu primo vendo que eu me interessava por eles) soltaram uma gargalhada súbita, saíram a correr, perseguidos de novo pela canzoada.
- Não se iluda, primo, isto é uma canalhinha. Peraltas como eles só! Vamos, vamos entrando... (Dizendo isso, empurrava-me para a sala de visitas, mas
logo mudou de ideia): Espere, você é de casa, vamos lá para dentro. Mas que diabo, onde está a Emerenciana? Ó Emerenciana? Emerenciana! Vamos entrando, vamos entrando...
Prima Emerenciana tinha ido dar um arranjo no cabelo e apareceu risonha na sala de jantar com uma mancha absurda de pó de arroz de um lado da cara.
- Eis o nosso homem - e Boanerges apontava-me. Se isto tem jeito de doente, heim?
Ela me abraçou com bondade, prometendo desde logo que ali, em Vila da Mata, e principalmente na fazenda, para onde todos iríamos logo, eu havia de
ganhar pelo menos dez quilos.
- Aqui não é como no Rio, primo - explicou com um sorriso de modéstia feliz. Na roça dorme-se cedo, come-se com sossego, não se tem onde estragar a
saúde...
Tinha mudado muito. Não era só a gordura, era a pele do rosto coriácea, os dentes falhados, um ar de velhice prematura. Ainda há dez anos moça
esbelta, ficara enorme, pesadona e cansada.
- Minha velha está conservada, heim, primo? - perguntou Boanerges, ingênuo, com uma voz meiga de marido bonacheirão.
- Não mudou nada! - acudi polidamente; apenas (acrescentei pela necessidade honesta de ser pelo menos um pouco sincero) engordou um bocado.
Ela riu-se bondosa, consciente de que engordara muito mais do que eu dizia, mas não dando importância a isso; sentia-se boa mãe de família, fazendeira
de mão cheia, indiferente à efemeridade dos atrativos do corpo. Os filhos e o marido era todo o seu mundo.
A mesa estava posta. Apesar de eu ter tomado café em Pau d'Alho, a viagem me despertara o apetite. Olhei aquela rica sucessão de pratos: havia bolos
de todas as formas. Diante do meu olhar espantado, primo Boanerges riu-se, compreendendo.
- Você está admirado disto, primo? Pois não é nada... Precisa assistir a uma festa em nossa casa para então ver o que é quitanda... Justiça seja
feita, para quitanda não há como Emerenciana.
Ela agradeceu com um jeito modesto, feliz de que o marido lhe louvasse as prendas domésticas perante o primo do Rio.
Então me lembrei de Pequetita Novais, ignorante de todos os mistérios da cozinha, absorvida na leitura de poetas, declamando Albert Samain e Manuel
Bandeira... Pequetita Novais, fina, intelectual...
Por associação de ideias pensei também na caboclinha do Pau d'Alho, de chinelos, de vestido de chita, tirando leite das vacas e dizendo que era muito
simples, com um riso de ironia urbana perdido no ambiente pastoril do Pau d'Alho. Casada, ficaria logo como prima Emerenciana, gorda, desleixada, orgulhosa das quitandas e esquecida de que devia ao marido a conservação dos encantos. Só a grande
cidade pode dar à mulher a ambição de ficar bonita até bem tarde - concluí. E, sentando-me para comer os excelentes bolos de prima Emerenciana, senti o horror de ser casado ali, na roça, com aquelas gracinhas adolescentes que já um ano depois,
amamentando o primeiro filho, tomam ares lerdos de matronas bamboleantes. Agradeci a Deus ser um rapaz da cidade...
- Prove este pudim, primo.
- Obrigado, prima.
De pé na entrada do corredor, olhos fixos em nós que comíamos, as crianças arregalavam os olhos urgentes, pedindo repetição do café-com-leite que meia
hora antes tinham bebido à farta.
- Roberto, quem é quem mandou você pôr a camisola azul?
Primo Boanerges interveio, explicando: o pequeno estava todo lambuzado, fora ele que mandara Isaurinha mudar-lhe a camisola.
- Bom, está direito. Tomem...
E prima Emerenciana estendeu para os quatro - que se precipitaram - um prato cheio de sequilhos. |