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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-V)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 225 a 234:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Amarelinho

Amarelinho, você já acabou de fazer a notícia do Saquarema? Olhe, a prova do clichê está aqui.

Amarelinho (tinham lhe posto o apelido por causa da palidez doentia) foi buscar na mesa do secretário a prova do clichê e pôs-se a escrever a legenda: "Aspecto do impressionante incêndio que irrompeu ontem a bordo do Saquerema, a formosa unidade da nossa frota mercante, ancorada no Cais do Porto..." Ancorada ou ancorado? A concordância devia ser com "o Saquarema" ou com "a unidade"? Deu de ombros e continuou a escrever, silencioso.

- Como é, Amarelinho, você hoje não paga o jantar,não?

A pergunta era do Pinga-Fogo, sempre à caça de um jantar. Amarelinho tinha jeito de moço rico: andava bem vestido, usava boas camisas. Não se sabia bem por que viera parar naquela redação de jornal pobre. Talvez para "exercitar-se na pena", dizia Pinga-Fogo, com um espichar de beiços em que transparecia o desdém do velho repórter, indiferente á inútil arte de escrever.

- Há de adiantar muito! Olhe, Amarelinho, eu, se fosse você, em vez de estar aqui a estas horas escrevendo coisas que não adiantam, estava em Botafogo namorando uma menina bem bonita, bem rica, e órfã, se possível.

Amarelinho sorriu com simpatia e continuou o trabalho. Pinto Neto, o secretário da Voz da Nação, interveio:

- Você ouviu, Amarelinho? Órfã, recomenda o Pinga-Fogo. Órfã!

Pinga-Fogo acendeu um cigarro, esteve uns instantes olhando a fumaça e falou lentamente:

- Dizer-se que isto é o meu jantar!

Nessa noite eu devia ir à casa do senador Pestana, entrevistá-lo a respeito do projeto, de que ele era o relator, sobre a reforma da esquadra.

Aquela entrevista inspirava-me repulsa: Pestana não entendia de Marinha. Era um advogado habilidoso que a política do Distrito Federal transformara em legislador. Pinto Neto, no entanto, explicara-me as razões do interesse que tinha a Voz da Nação em dar um grande destaque às atividades da Comissão de Marinha e Guerra do Senado: Pestana era íntimo do Pelágio Guimarães diretor do Banco do Brasil, e a Voz da Nação tinha uma letra de cinquenta contos, vencida, na carteira de cobrança do Banco.

- Como é, Pinga-Fogo, você ainda não jantou mesmo? Venha comigo. Eu só irei à casa do Pestana às nove horas. Temos tempo de jantar no "Heim".

Pinga-Fogo saltou da cadeira, abriu-me os braços e caminhou ao meu encontro, a passo marcial. Amarelinho, erguendo a cabeça um instante, sorriu discreto: deu a penada final na notícia e foi levar os originais à mesa do secretário.

Saímos os três para jantar.

- Sou eu quem convida hoje - declarou Amarelinho, assim que chegamos à rua.

- Menino de ouro, este! - urrou Pinga-Fogo.

- Não senhor - protestei -, o convite é meu.

- Por esta vez... - insistiu Amarelinho - dê-me o prazer. Olhe que é a primeira.

Com efeito, era a primeira vez que eu jantava com Amarelinho.

Pinga-Fogo sabia da vida de toda gente no Rio de Janeiro. Há vinte anos que "fazia polícia" para os jornais. Conhecia intimidades de políticos, de banqueiros, de atrizes, de literatos célebres, de criminosos que cumpriam pena na Casa de Correção. Também, nunca se vira um sujeito mais bisbilhoteiro. De tudo inquiria, tudo perguntava.

- Como é, Amarelinho, conte a verdade: você é menino rico, não é?

Amarelinho divertia-se com aquelas maneiras insólitas do outro. Havia pouco mais de um mês que estava no jornal, ainda sem salário fixo, a título de experiência. Era "foca".

Durante o alegre jantar, Pinga-Fogo mostrou mais uma vez que era gourmet: ninguém como ele para apreciar uns pombinhos assados, que sabia comer com precisão e minúcia, utilizando-se dos dedos como um cirurgião que maneja delicadas pinças.

Depois da sobremesa, Pinga-Fogo imergiu numa tranquilidade de digestão feliz e ficou a palitar os dentes de um modo espetacular, que o restaurante inteiro contemplava. Amarelinho sorria: moço de família perdido naquela companhia de tarimbeiros.

Batendo enérgicas palmadas na barriga, Pinga-Fogo agradeceu o jantar e despediu-se. Foi minha vez de estender a mão para o "foca".

- Adeus, meu caro. Vou tomar um bonde para ir à casa do Pestana fazer a entrevista. Uma cacetada sem nome!

Amarelinho, amável, ofereceu-se:

- Se quiser, eu vou no seu lugar.

Seria possível? Uma sorte daquelas? Puxei do relógio: 8,45. Dava tempo ainda de ir ao Teatro Recreio com Paquita Méndez, aliás Milonguita.

- Você está falando sério, Amarelinho? Seria um arranjo extraordinário!

- Naturalmente que falo sério - insistiu ele, grave. - Eu me interesso por Marinha. De resto, será a minha primeira entrevista.

Abracei-o com efusão. O "foca" tomou um táxi e eu fui para o telefone:

- Milonguita?

Não era Milonguita, era a criada. Com certeza já tinha ido para o Recreio. Toquei para lá.

Nada! Nem sinal de Paquita Méndez no Teatro Recreio.

Roído de inquietação e de ciúmes, assisti ao primeiro ato de uma opereta insuportável. No intervalo, procurei por Paquita Méndez em todos os recantos: nada!

Soturno, voltei a pé para a redação.

***

- Então, a entrevista? - perguntou Pinga-Fogo muito curioso, enquanto escrevia esparramado na cadeira. - O homem disse muita besteira?

- Não estive lá. Mandei o Amarelinho. Eu tinha que ir ao teatro com uma pequena... Mas que é?

Pinga-Fogo se levantara e olhava-me fixo. E voltando-se para Pinto Neto, que lia umas provas na mesa atravancada de papéis:

- Pinto Neto! Olhe a encrenca formada!

- Que encrenca? - perguntou o secretário sem levantar a cabeça.

- Imagine que o Amarelinho é que foi à casa do Pestana fazer a entrevista! À casa do próprio assassino do pai!

Se eu já soubesse que o "foca" se chamava Soares Pena - Edmundo Soares Pena -, teria desconfiado do interesse que ele tomara por aquela entrevista. Qualquer pessoa, no Rio de Janeiro, ouvindo esse nome, se lembraria logo do crime praticado à porta do Clube Naval: o capitão-de-corveta Soares Pena caindo, varado de balas, às mãos do José Bamba, famoso desordeiro da Saúde. O assassino, no inquérito, acusara Pestana como mandante. Pestana respondeu a júri e fo absolvido. A viúva de Soares Pena, envolvida no escândalo, mudara-se para a Europa.

- Então o Soares Pena deixou um filho? - indaguei um pouco trêmulo, depois de um silêncio de perplexidade.

- Está claro.

Outros repórteres, em torno de nós, comentavam o caso. Tínhamos crime, na certa! Era a hora do encontro e da vingança, explicava Pinga-Fogo, ainda a palitar os dentes.

Desci as escadas a correr, desesperado.

***

O palacete dormia.

À força de sacudir a sineta do portão, consegui despertar um criado.

- O senador está? Tenho uma notícia urgente!

- O senador não está. Foi a Petrópolis.

- Sozinho?

O criado pareceu hesitar, depois fez um esforço de memória:

- Não... Parece que foi com um moço que esteve aqui, ali pelas nove horas... Tomaram o último trem.

- Ahn!

Corri de novo à redação. Pinto Neto, ansioso, estava à minha espera. Contei-lhe tudo que sabia: o "foca" tinha levado o senador para Petrópolis. Era desanimador!

Pinga-Fogo, que saíra para colher notícias de um crime, telefonou da delegacia: o caso não tinha importância: uma facada num turco, no Mangue.

Ficamos apreensivos o resto da noite. A quem telefonar em Petrópolis?

Às duas da manhã fui dormir, nervoso. Não havia dúvida: Amarelinho atraíra o velho a uma cilada.

***

Aquele segredo não datava de muito. No internato de Friburgo, em que Edmundo se preparava par o curso de Medicina, ele recebera, havia seis meses apenas, a carta que a mãe lhe escrevera da Europa, já em vésperas de morrer, e fora confiada ao diretor "para quando meu filho completar dezoito anos".

Rasgara a carta, humilhado e infeliz.

Agora, morando no Rio, já vira o senador muitas vezes, mas na rua, de passagem. Fizera-lhe a impressão de um estranho. Por isso, o que Edmundo desejava era encontrar-se com ele na intimidade, demorar-se horas a examinar-lhe os traços, vê-lo se mover, gesticular, talvez rir. Com certeza: rir! Como seria o riso daquele homem que tudo destruíra em seu coração de adolescente, mesmo a imagem materna? Quando ele sacudisse o corpanzil satisfeito e abrisse a boca de dentes amarelos, coberta de uma bigodeira suja de sarro, pareceria um monstro de paravento chinês, em travesti de senador brasileiro.

Edmundo odiava o senador Pestana. No mais íntimo do seu ser, o verdadeiro pai continuava a ser outro, o assassinado, de quem ele trazia o nome: e que o tivera nos braços em pequenino.

Se matasse o senador, não cometeria um parricídio.

***

Sentado no gabinete de trabalho de Pestana, Edmundo pensava com insistência na mãe. Era crível que ela tivesse amado aquele homem? Vinte e tantos anos, trinta anos atrás... Talvez Pestana fosse então esbelto, sedutor, meigo. Tivera qualquer coisa que escapava, agora, à análise implacável. Sim, talvez fosse outro homem. Sim, talvez...

Outro homem... Aquele, bastaria uma pancada na nuca, e a massa desamparada desmoronaria, rolaria no chão.

Teve nojo de si, da vida, do amor. Seu pai...

No instante em que Pestana começava a explicar o plano de construção das novas bases navais, o telefone retiniu. Era o Palácio Rio Negro. Pestana debruçou-se sobre o receptor; falava sorrindo; com a mão livre fazia gestos untuosos, como se estivesse em pessoa diante do interlocutor invisível:

- Mas naturalmente! Se Vossa Excelência deseja, irei agora mesmo. Agora mesmo, senhor presidente!

Pestana esqueceu-se do repórter. Aquela viagem noturna dava-lhe a oportunidade de ser recebido pelo presidente em condições especialíssimas; seu prestígio pessoal reafirmava-se; já não poderiam os jornais da oposição dizer que o presidente o detestava e que se opunha à sua reeleição para o Senado. Ah! ah!

Desgostoso de si mesmo e do seu futuro, Edmundo contemplava o pai: na velhice, ficaria ele como aquele velho flácido, calvo, de bigodeira, com um olhar falso por trás dos óculos?

- Meu jovem jornalista, há um contratempo. Tenho que adiar a nossa entrevista para outro dia. Como viu, o presidente acaba de chamar-me a Petrópolis, precisamente por causa da reforma naval. Só mesmo um motivo tão imperioso me obrigaria a interromper a sua agradável visita... Como é mesmo a sua graça?

Edmundo não se lembrou do nome que dera ao criado, ao se anunciar. Também, não era preciso inventar outro, porque o senador prosseguia, arrumando papéis na pasta de couro:

- ... Uma maçada, meu amigo! Eu preferiria continuar em sua companhia. Gosto dos moços.

Chamou o criado e mandou preparar a valise de viagem.

- Dá-me licença um instante? Espere, não se retire. Sairemos juntos.

Desapareceu. Voltou daí a minutos, de chapéu à cabeça. Agarrou a pasta, pô-la debaixo do braço:

- ... Faço muita questão de dar ao Pinto Neto a entrevista que ele me pede. Olhe, venha aqui depois de amanhã. Talvez possa até fornecer-lhe uns esclarecimentos novos, devido à conversa que vou ter agora com o presidente. Por que não vem almoçar comigo? Venha almoçar depois de amanhã. Nada de cerimônias!

Ao transpor o portão do jardim, Pestana gritou para o criado:

- Se telefonarem, diga apenas que fui a Petrópolis pelo último trem. Volto amanhã.

Lépido, rejuvenescido pela expectativa da visita noturna ao palácio do presidente (ah! a eleição estava garantida!), Pestana insistia:

- Pois espero-o para o almoço. Sabe, a casa de um velho solteirão é sempre um pouco triste. Em todo caso, tenho um bom cozinheiro: para pratos à baiana, não há como ele! O senhor é muito moço, com certeza não aprecia ainda os prazeres da mesa. São prazeres da velhice, concordo! Consolam muito! Adeus.

***

Depois de errar longo tempo pelas ruas da cidade, remoendo pensamentos (frustres desejos de evasão, súbitas conformações com a realidade), Edmundo entrou em casa arriado de fadiga.

Seu quartinho de estudante era na Rua da Glória, com frente para o mar.

Acendeu a lâmpada de cabeceira e se preparou para dormir. O mundo era amargo! Se desse para canalha, ladrão, assassino?

Curioso: a alma que sentia dentro dele era a do falso pai. Tinha só oito anos quando Soares Pena fora assassinado, mas lembrava-se de sorrisos, de carinhos, palavras, gestos seus. Sentia-se seu filho, com as mesmas inclinações, os mesmos gostos, o mesmo gênio, até mesmo uma certa melancolia, uma certa dignidade serena, a certeza de que a grande força é interior, vem de dentro, da luz invisível.

Esse era o retrato de Soares Pena que lhe ficara na memória e agora, naquele transe da desilusão, constituía todo o seu amparo secreto. A infidelidade da mãe seria conhecida de Soares Pena? Soares Pena teria planejado uma vingança? Seria para escapar à morte que Pestana mandara matá-lo? Impossível saber a verdade. Ele carregaria para o resto da existência essa dor, essa aflição: não saber da verdade.

Sentiu de novo a angústia do seu destino pesado. Foi até à janela: um grupo de rapazes dava gargalhadas à porta de uma pensão de mulheres. "Vem aqui, baiana!" Parecia a voz do Pinga-Fogo. Teve uma lembrança:

- Se eu transmitisse o convite ao Pinga-Fogo?

Riu-se com amargura. "Tenho um bom cozinheiro: para pratos à baiana, não há como ele!" Pinga-Fogo seria o conviva ideal - e comeria em dobro, forrando o estômago para dois dias de resistência à miséria. Foi ao telefone:

- O Pinga-Fogo está aí?

- A esta hora, meu filho? - respondeu uma voz arrastada.

Com efeito, era manhãzinha. Já o jornal se estava imprimindo. Só havia o porteiro de plantão.

No fundo cinzento da baía vinha nascendo a primeira claridade cor-de-rosa.

***

Quando Edmundo chegou à redação na tarde seguinte, houve um silêncio estranho nas mesas. Todos o olhavam disfarçadamente, por cima dos linguados de papel em que as penas corriam céleres.

Em mangas de camisa, Pinto Neto saltou da sua poltrona de secretário:

- E a entrevista que você devia trazer ontem?

- Falhou, ficou para amanhã. O senador foi chamado a Petrópolis. Como já era tarde e eu me sentia um pouco doente, fui para casa.

Pinga-Fogo chegava nesse momento:

- Ué, Amarelinho?

- Ué, quê?

- Você ontem levou um sumiço!

Foi minha vez de intervir:

- Que diabo, Amarelinho! Se você não conseguiu a entrevista, devia ao menos ter telefonado à gente aqui na redação.

O "foca " esteve uns momentos silencioso e continuou, sem replicar à censura:

- Pois é, não consegui a entrevista. O homem teve de ir a Petrópolis, conforme eu estava aqui explicando ao dr. Pinto Neto...

- Ahn!

- Pediu-me para voltar amanhã. Até me convidou para almoçar. Diz que tem um bom cozinheiro, que faz comidas à baiana.

- E você não vai? - perguntei.

- Não posso, tenho aulas.

As pessoas recomeçaram a raspar os linguados. Evidentemente, houvera um equívoco em tudo aquilo. Amarelinho parecia inocente: por força, não se tratava de parente nenhum do capitão-de-corveta Soares Pena. Tudo imaginação do Pinga-Fogo.

Edmundo sentou-se à mesa e abriu a gaveta, onde guardava cuidadosamente os objetos de trabalho. Pôs na caneta uma pena nova e molhou o bico na tinta:

- Dr. Pinto Neto, tem alguma coisa aí para me dar?

Pinto Neto estava intrigado:

- Afinal de contas, quem quer ir fazer a entrevista com o senador Pestana amanhã?

Sorrindo, Edmundo acudiu:

- Há um bom almoço à espera do enviado da imprensa. Você não quer, Pinga-Fogo?

Pinga-Fogo deu uma palmada na barriga com ambas as mãos e curvou-se para a mesa do "foca":

- Amarelinho: O. K.