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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-U)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 216 a 224:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Mistério de Sábado

Miguel sentiu que precisava de aventura. Nas calçadas, famílias comprimiam-se, cheias de curiosidade. Outras, iam rolando, a contragosto, confundidas na enxurrada de povo.

Ele aderira à multidão na Avenida Rio Branco. Os cortejos de automóveis, os ranchos com estandartes e bandeirolas, os coretos de cores berrantes, o cheiro insistente de éter, as batalhas de confete, o emaranhado das serpentinas a descer das sacadas, a subir pelas árvores, tudo aquilo o enchia de um impulso indefinível. Precisava de aventura.

Depois, os ranchos começaram a entrar pela Rua Sete. Viu uma morena, vestida de diabo vermelho, sem máscara, a debater-se entre homens que a bisnagavam, com apalpões disfarçados pelas nádegas. Quisera intervir, defendê-la; tomara um tranco, voltara-se para responder com um soco, achou-se diante de uma velha de ar emproado:

- Foi o senhor que apertou o meu seio?

Desculpou-se, tirou o chapéu, lançou-se pela multidão, à procura do diabo vermelho.

Cuícas roncavam, ansiosas, dispneicas. Tamborins faziam uma bulha humorística. Tambores davam notas baixas, como explosões metódicas de um riso grave.

- Perdão!

Um cavalheiro gordo, de fraque - era uma máscara, ou um pai de família excessivamente ridículo? - tentava abrir caminho, tendo na mão direita um guarda-chuva e na esquerda um lança-perfume.

- Que absurdo! - exclamou Miguel, indignado com o guarda-chuva, com o fraque, com a atitude impaciente do cavalheiro gordo e polido.

Absurdo por quê? Não havia absurdo nenhum. Tinha, porém, uma vontade de protestar - contra alguém, contra qualquer coisa. Onde estava a morena, o diabo vermelho que se debatia entre os rapazes grosseiros, abusando dela?

Os ranchos iam para o baile-concurso do Teatro João Caetano. Vozes puras, como de virgens celestiais, subiam para a noite quente, colorida de serpentinas nos fios elétricos. Dos sobrados debruçavam-se caras risonhas, braços se agitavam, atiravam confete, batiam palmas.

- Salgueiro! Salgueiro!

- Querosene! Querosene!

- Morro do Pinto!

Os ranchos passavam.

Cada espectador aclamava o morro da sua simpatia. As baterias executavam as marchas autóctones, letra e música dos artistas locais, numa rivalidade feroz de genialidades populares. Com potes à cabeça, ou baldes na mão, as negras e mulatas, todas de branco, bamboleando-se, ao ritmo das marchas, esganiçavam-se à porfia. Pretalhões ameaçadores rufavam os tamborins; mulatinhos macios, de terno de brim, chapéu panamá, flor no peito, marcavam o compasso, fazendo molinetes com bastões enfeitados de fitas.

- Escola! Vamos ver!

A "escola" - homens e mulheres - entoava uma nova marcha, a bateria rompia com entusiasmo. A multidão frenética, em pontas de pés, queria ver todas as caras, todos os corpos, naquele meneio infatigável de ancas e espáduas, com pés arrastados pelo asfalto da rua.

Miguel foi indo aos trambolhões, danado da vida. O desfile dos ranchos era bom, mas assim não estava certo: até aquela hora não fizera camaradagem com ninguém. Tinha graça? Não tinha. Precisava de aventura. Aquela do diabo vermelho estava no jeito.  A ideia de que a morena se perdera ali mesmo na rua, a fugir dos rapazes e dos apalpões, desgarrada talvez da família, do pai ou do marido, deu-lhe um ímpeto quixotesco. Era preciso encontrá-la, defendê-la. Foi indo, acompanhando o povo.

Desembocou na Praça Tiradentes. Os ranchos entravam no Teatro João Caetano. Comprou um bilhete, entrou também. A iluminação profusa tornava sinistras aquelas caras de pretos e mulatos, uns com vestimentas pretensiosas, ouros em farrapos, com umas camisas de malandro tiradas do trabalho e não compradas na loja de artigos carnavalescos.

Ia penetrar no recinto, cheio de mesas para a ceia, ao redor da plateia, preparada para o baile. Um dominó preto deu-lhe uma cotovelada. E com voz em falsete:

- Muito bem, seu Miguel, o senhor também por aqui, hein?

Ia responder; o dominó sumiu na turba. Sentiu-se confortado. Alguém o conhecia. Seria a dona da pensão? Era uma senhora viúva, que pelo carnaval se animava muito, deixava as filhas de um lado e escapava por outro. Diziam que frequentava os bailes às escondidas. Seria d. Esméria?

Na cena, o pano levantava-se. Começava o desfile dos ranchos.

- Salgueiro! Salgueiro!

O rancho do Salgueiro, com estandartes azul-e-rosa, sapateava em ritmo de marcha. As vozes celestiais entoavam:

O Príncipe da Floresta

- É bom..

Vamos ver, não quero história,

Vou fazer pra ele uma promessa,

Si estivé errado, entrego a mão à palmatória!

Miguel não compreendia. Também não teve tempo de tentar compreender, porque na sua frente, de costas, estava o diabo vermelho. Teve o desejo explosivo de bater-lhe no ombro, dizer-lhe que o procurava desde a Rua Sete. Não, seria ousadia excessiva.

Nesse instante, o diabo vermelho voltou-se - estava agora de máscara, um lou de veludo preto - e duas filas de dentes brancos abriram um sorriso para Miguel.

Procurou reconhecer a moça. Quem seria? Estivera com ela num baile em Botafogo? Não atinou. O queixo era redondo e macio (parecia macio), a pele era fina, queimada de sol.

Por que é que ela lhe sorria? Sorriu também, atirou-lhe um jato de lança-perfume no seio.

- Que é do Francisco?

Francisco? Ele não sabia de Francisco nenhum. Porém, teve receio de perder o contato com o demônio vermelho, era melhor fingir que conhecia o Francisco.

- Está por aí. Desapareceu.

- Bom. Também, pouco me importo.

- Está um calor, hein?

- Horrível.

- Vamos dançar?

Ela acenou que sim com a cabeça e tornou a virar-se para o palco, onde agora ouro rancho aparecia. O Morro do Querosene fazia furor... À frente, a madrinha, mulata esguia e requebrante, atraía todos os olhos. Com o cabo do estandarte de encontro à anca, arrastava pelo palco - as cuícas pareciam uivar de sensualidade, ruf, ruf, ruf - as sandálias pequenas, tão pequenas e tão meigas...

- É a boa! - gritou uma voz, no público.

Ruf, ruf, ruf... O demônio vermelho voltou-se para Miguel:

- O pessoal é louco por mulata.

Miguel sentiu qualquer coisa como o pudor ferido. O demônio vermelho não seria família? Bateram-lhe nas costas; uma voz quente sussurrou-lhe, bem junto da orelha:

- Já arranjou a sua cavaçãozinha, hein?

Era o dominó preto. Seria d. Esméria? Resolveria essa dúvida no dia seguinte. D. Esméria era muito caçoísta; à mesa do almoço (se houvesse almoço naquela casa de malucos, no domingo) mexeria com ele. "Eu sei, seu Miguel... O diabinho vermelho, hein? Eu sei..."

Não teve tempo de responder; o dominó preto abria caminho, pela mão de um velho careca, todo de branco, pançudo com o ar de um presidente de clube. O diabo vermelho percebera a confidência, piscou um olho por baixo da máscara:

- O dominó preto gostou de você...

Miguel protestou: não conhecia. Não sabia quem era. Absolutamente.

- Não se enxerga?

- Ora vá...

Sopapos. Estabeleceu-se tumulto. Como fora? Dois rapazes, em luta corporal.

Miguel pegou o diabo vermelho pela cintura, para protegê-lo. O diabo vermelho ficara de um nervosismo extraordinário:

- Me largue, que horror! Me largue!

O conflito ameaçava generalizar-se. Outros espectadores trocavam murros. Das mesas, grupos levantavam-se pedindo orem. Um apito trilou dentro do teatro, misturando-se à música da bateria do rancho, em desfile no palco.

Um golpe na cabeça. Não viu mais nada, zonzo, caindo nos braços não sabia de quem.

Ainda estendeu a mão, querendo, por instinto, agarrar o diabo vermelho, que a multidão podia pisar.

Deu acordo de si no bar do teatro. Não fora nada: apenas um galo na cabeça. Pessoas amáveis rodeavam-no, faziam comentários, perguntavam se estava sentindo alguma coisa... Ofereceram-lhe uísque. Agradeceu, bebeu o uísque, começou a rir.

- Não foi nada - tartamudeou, grato.

- É da escrita! - exclamou um mulato de cabelo escorrido.

- Fica firme, meu irmão! - disse outro sujeito.

O grupo se dissolveu. Lá dentro, no teatro, o baile começara. A orquestra tocava um maxixe contagioso. Puxou o relógio: meia hora depois da meia-noite. Estava ruim, aquele carnaval. Se fosse para a pensão? Falta de sorte, puxa! Precisava amar. Precisava de aventura.

O demônio vermelho devia estar dançando. Foi procurá-lo de novo. Impossível! Entre milhares de mascarados - começou a perceber que havia mais de um diabo vermelho - seria difícil encontrar a pequena. Tinha um queixo redondo e macio. Os dentes muito brancos. Traços vagos, muito vagos, para um sábado de carnaval...

- Psssssiu!

Uma mocinha vestida de marinheiro chamava pelo dominó preto. Pelo dominó preto? Por "um dominó preto". Também havia diversos. Intimamente, considerou que seria bom proibir fantasias iguais. Para evitar confusões. Besteira, que é que tinha? Nem haveria fantasias que chegassem. O carnaval era assim: tudo se confundia. Voltou ao bar, tomou outro uísque. O mundo começou a flutuar, deliciosamente. Suava. A camisa de seda estava colada ao peito, pegajosa. Dançaria ou não? Tipo da coisa irrealizável: não conhecia ninguém; e cada uma daquelas mulheres, com ou sem máscara, tinha os seus camaradas, os seus aderentes.

- Onde é que você andou?

O diabo vermelho - o "seu" diabo vermelho. Um furor de felicidade invadiu-o, sacudindo-o de resoluções súbitas.

- Vamos embora daqui.

Agarrou o diabo vermelho pela mão.

- Não posso, estou procurando o Francisco.

- Vamos - tornou, com ímpeto.

- Não, prefiro beber uma cerveja gelada.

Ideia ótima. Levou a pequena para o bar; pediu cerveja e pediu ouro uísque.

- Não fale nada para ninguém, mas não estou aqui para me divertir, não. Ouviu? É um mistério.

- Ahn!

- Estou vendo se descubro meu marido. Nem queira saber, menino! Sou uma mulher triste. Tenho um grande, um grande mistério.

Miguel pediu explicações. E o Francisco? Por que é que ela falava em Francisco? Era o marido?

Lá dentro o teatro reboava, sob o sapateio dos pares em delírio.

- Essa marcha é do outro mundo, menino...

- Não quero saber de marcha. Responda primeiro: quem é esse Francisco?

Um ciúme repentino encheu-o todo, misturado a pensamentos imprecisos, ameaças fluídas, vinganças abortivas.

- Você não estava com ele, meu filho?

- Com o Francisco? Não, não estava. Sei lá quem é Francisco!

O diabo vermelho recuou um passo, deu uma gargalhada em que os dentes brancos aparecerem perfeitos.

- Então você não é o Nequinho, que devia vir com o Francisco?

- Não. Não sou o Nequinho.

Acabara-se. Agora, só lhe restava partir. Não era o Nequinho. Com toda a certeza, ela ia se despedir, secamente. Miguel ergueu a mão, ao ver que era forçoso dizer adeus. O demônio vermelho soltou outra risada (não sabia por quê, teve vontade de comer aquelas gengivas cor-de-rosa, como uma lasca de presunto) e segurou-lhe a mão, arrastando-o para o tumulto:

- É a mesma coisa! Vamos dançar.

A marcha infiltrava o êxtase. Estava no apogeu da felicidade física. O corpo do demônio vermelho era ágil, era leve, era flexuoso... Ia subindo para o céu, com o demônio vermelho encostado ao seu peito. Nem sentia os empurrões, os atritos, as pisadelas que lhe davam os outros pares.

De repente, ela parou.

- Espere!

Miguel não compreendeu nada. O demônio vermelho gritou:

- Francisco!

A voz foi abafada pelas flautas, pelos pistões, pelo trombone.

Não compreendeu. Esperava que o demônio vermelho explicasse o que era aquilo.

- Você me acompanha até em casa?

- Por quê?

- Estou me sentindo mal.

Melhor, tanto melhor. Saiu com a pequena. Na Praça Tiradentes, cheia de povo e de ruídos carnavalescos, tomaram um táxi. O táxi chispou por ali abaixo, atravessou a Praça da República, saiu no Mangue, cortou a Praça da Bandeira, enveredou pela Rua Mariz e Barros... Era povo que não acabava mais... Ranchos. Coretos. Batalhas...

O demônio vermelho fez parar o carro numa esquina.

- Adeus. Você é bonzinho.

Desapareceu atrás de um portão.

Seria família? Não era bobo, ele, de perder aquela oportunidade. Mas, se fosse família?

Desceu do carro também. Mandou embora o chofer. Sacudiu o portão: fechado a cadeado. Uma sineta abalou o silêncio. Esteve ali um tempo infinito. Na casa não havia luz, nem bulício. Tomou nota do número. Foi descobrir um botequim, aberto àquela hora da noite; procurou o telefone, pediu informações... A casa do demônio vermelho não tinha telefone.

Bebeu outro uísque, no balcão. Saiu tonto, com desejo de morrer.

Esperou um bonde, tomou-o, saltou na Lapa. Tomou outro bonde, foi para o Catete.

Tinha esquecido a chave da porta. D. Esméria veio abrir, estremunhada.

- Ué! A senhora aqui?

- Onde é que queria que eu estivesse? Meu carnaval é só na noite de terça-feira. Com estes trabalhos, meu filho! As meninas é que foram se divertir. Mas que é isto? Está com dor de cabeça?

- Um pouco.

- Quer um sal de frutas?

- Se a senhora tiver aí...

Foi para o quarto. O demônio vermelho seria família:? Quando d. Esméria lhe trouxe o copo de água com sal de frutas, estava quase dormindo, mas com uma tristeza horrível, um desejo insistente de morrer...

- Vou morrer, d. Esméria.

- Por quê, meu benzinho?

O quarto ficou às escuras. os dedos de d. Esméria eram suaves. Na rua passavam automóveis, buzinando; mulheres davam gargalhadas; sarcásticos, os reco-recos vertiginosos enchiam a madrugada absurda, vaiando as casas adormecidas.