Páginas da vida política
Patrícia Galvão
Agora, numa noite de julho de 1940, soltavam-me. Fiquei
mais alguns meses além do que me condenara o Tribunal de Segurança. Eu não prestara homenagem ao interventor federal em visita à Casa de Detenção.
Um Adhemar de Barros.
Antes daquela noite, há mais de dez anos, portanto, eu me desligara para sempre
daquela gente. Expulsara finalmente de minha vida o Partido Comunista. Finalmente se acabara minha vida política.
Ao regressar àquela noite ao albergue paterno não podia me recusar a olhar para trás.
Outros dez anos se haviam passado desde a primeira prisão. Dos vinte aos trinta anos, eu tinha obedecido às ordens do Partido. Assinara as
declarações que me haviam entregue, para assinar sem ler. Isto aconteceu pela primeira vez quando recolhi do chão o corpo agonizante do estivador
negro Herculano de Souza, quando enfrentei a cavalaria na Praça da República, em Santos, quando fui presa como agitadora - levada para o cárcere 3,
a pior cadeia do Continente.
Então, quando recuperei a liberdade, o Partido me condenou: fizeram-me assinar um
documento no qual se eximia o Partido de toda a responsabilidade. Aquilo tudo, o conflito e o sangue derramado, fôra obra de uma "provocadora", de
uma "agitadora individual, sensacionalista e inexperiente". Assinei. Assinei, de olhos fechados, surda ao desabamento que se processava dentro de
mim.
Por que não?
O Partido "tinha razão".
De degrau em degrau desci a escada das degradações, porque o Partido precisava de quem
não tivesse personalidade, de quem não discutisse. De quem apenas aceitasse. Reduziram-me ao trapo que partiu um dia para longe, para o Pacífico,
para o Japão e para a China. Pois o Partido se cansara de fazer de mim gato e sapato. Não podia mais me empregar em nada: estava "pintada" demais.
Mas, não haviam conseguido destruir a personalidade que transitoriamente submeteram. E
o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um grande hotel de luxo
para os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista.
De tal modo, quando um cartaz enorme clamou nas ruas de Paris que "Stalin tinha razão"
eu sabia que não.
Ainda militei. Ainda esperei que a polícia me liquidasse. Ainda enfrentei as tropas de
choque nas ruas de Paris - três meses de hospital. Ainda lutei: nenhuma bala me alcançava. O embaixador Souza Dantas excluiu-me de um conselho de
Guerra: estrangeira militando na França. Salvou-me, depois, de ser jogada na Alemanha ou na Itália - da mesma sorte de Olga Benário, e tudo por
iniciativa própria. Conseguiu, ainda, comutar-me qualquer condenação por um repatriamento.
Em 1935, procurei uma revolução que o Partido preparava e não achei revolução nenhuma.
Nos pontos, nas esquinas, nenhuma voz, nenhum gesto. Apenas o fiasco. Mais uma vez, o fiasco. No Rio, a quartelada da Praia Vermelha dando razão ao
ditador travestido de presidente constitucional. E todos nós para a cadeia.
Harry Berger sofreu muito; sofreu talvez mais do que todos. Mas, felizmente,
enlouqueceu. Acabou o tormento. Anestesiou-se.
Outros se mataram. Outros foram mortos. Também passei por essa prova. |