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Patrícia Galvão, 10 anos depois
Evêncio da Quinta
Quando adquiriu a certeza de que ia morrer, Patrícia
teve um gesto romântico: decidiu que seria em Paris. Voou para lá sem dar maiores explicações e se trancou num quarto de hotel à espera do fim.
Geraldo foi buscá-la e os dois, juntos, ainda puderam admirar o fim do outono na cidade amada. Depois, a volta ao Brasil, mais algumas tentativas de
cura e, no dia 12 de dezembro, a morte.
Está fazendo 10 anos que isto aconteceu. Foi tudo condensado no período entre outubro
e dezembro de 1962, e depois da morte de Patrícia resta a lembrança daquela mulher que, antes do "women's lib", já compreendia que não é
suficiente a igualdade de sexos, é preciso lutar por todas as igualdades.
Seus primeiros anos foram dedicados à política e os últimos à arte, especialmente o
teatro. Dos primeiros, restaram muitos gestos de exemplo e do segundo várias novidades, vários nomes que ela havia conhecido em suas andanças pelo
mundo, e que lançava agora no Brasil. Reuniu em torno de si um grupo de entusiastas do teatro, e ensinou-lhes, ou melhor, informou quem era Bertolt
Brecht, o que fazia e qual sua importância; quem era Ionesco e o que significava o anti-teatro. Lançou Arrabal em Santos antes que Paris o
aplaudisse. Anos mais tarde, indo uma amadora de teatro daqui passear na França, foi convidada a assistir à peça de um novo autor: Arrabal. Então, a
amadora disse que já o conhecia, pois tinha visto montagens de peças suas em Santos. A anfitriã - uma professora da Sorbonne - ficou sem entender
direito a resposta.
Muita gente deve muita coisa a Patrícia. Sobretudo o orgulho de ter convivido com ela.
A juventude - De que material é forjada uma revolucionária? Vejamos rapidamente
a biografia de Patrícia Galvão. Nasceu em Vila Mariana, bairro classe média de São Paulo, e estudou, até o Normal, no Caetano de Campos, na Praça da
República, também em São Paulo. Só faltava mesmo nesta biografia o casamento com véu e grinalda, os aparelhos de chá ganhos de presente, a
lua-de-mel em Poços de Caldas para que o quadro ficasse completo.
Mas foi aí que alguma coisa misteriosa sucedeu, algum impulso vindo não se sabe de
onde deu andamento, força motriz, e Patrícia começou a contestar o mundo e a sociedade em que vivia. Em 1929, participa da ala dissidente do
Movimento Antropofágico, junto com Oswald de Andrade, Raul Bopp, Osvaldo Costa, Geraldo Ferraz, Fernando Mendes de Almeida. Era a ala esquerdista do
movimento, que se antepunha ao grupo de Mário de Andrade, Alcântara Machado e Yan de Almeida Prado.
Tinha nesta época vinte anos e era, no testemunho de quem a conheceu neste tempo, uma
garota muito bonita, pálida e usando os cabelos escuros sempre soltos sobre os ombros. Da dissidência literária partiu diretamente para o campo
político. Vai a Buenos Aires e conhece Luís Carlos Prestes que na época era ainda o Cavaleiro da Esperança e não tinha sido apontado como o chefe
das esquerdas brasileiras. Nesta mesma época conhece o escritor argentino Jorge Luís Borges, que hoje está alcançando a consagração, embora tardia,
no campo internacional. Volta de Buenos Aires e, renegando o programa de Prestes, ingressa no Partido Comunista.
Em 1932, depois de trabalhar em jornal (esta seria sua verdadeira profissão, a vida
inteira. Ela era essencialmente jornalista), edita o primeiro romance proletário escrito no Brasil: "Parque Industrial", no qual mostra o
lado cruel da vida dos operários paulistas. O romance saiu em 1933, assinado por Mara Lobo, pseudônimo que seria mantido através dos anos, inclusive
em crônicas publicadas no Suplemento Dominical de A Tribuna.
Na luta - Como entrou para a luta de classes esta moça burguesa, cujas idéias
socialistas até então eram mais pragmáticas que práticas? Dois anos antes, em 1931, assistindo a um comício do partido na
Praça da República, em Santos, vê a Cavalaria cair em cima dos operários e é ela quem ampara o estivador
Herculano de Souza, com a cabeça partida. Ele morre em seus braços. Em seguida vai presa. É a primeira mulher brasileira a ser presa por motivos
políticos. Este fato a marcou profundamente, e talvez tenha sido o "estalo" de que necessitava para aderir à luta "pesada".
Anos mais tarde, já afastada da política, ela viu um operário em greve ser advertido
aos gritos por um policial. Voltou-se para mim e disse: "Quando eu estava na luta, teria plantado a mão na cara do guarda".
Foi presa ao todo 23 vezes, e uma destas ficou notável porque, ao arrepio da lei, sua
prisão foi prolongada por mais três meses. O motivo: o então interventor federal em São Paulo, Adhemar de Barros, vai visitar a prisão. Os presos
são colocados em fila e cumprimentados pelo soba. Quando chegou a vez de Patrícia, ela cospe na cara dele.
Depois disto veio a primeira volta ao mundo. Para manter-se, ela mandava
correspondência para diversos jornais do Rio e São Paulo, e neste giro vai aos Estados Unidos,
Japão e Mandchuria, onde é o único jornalista latino-americano a
presenciar a coroação do imperador Pu-Li. Na China, aproveita para entrevistar Sigmund Freud. Pega o trem trans-siberiano e viaja oito dias e oito
noites até chegar a Moscou. De lá parte para a França, e quando o
trem passa por Berlim pede para descer e tomar um chope (estava sendo vigiada de perto pela polícia alemã,
por ser procedente da Rússia). Os guardas a acompanham, e lá fica ela, solitária e cercada de policiais, a
saborear um chope que depois, conforme declarou, não era melhor nem pior que os outros. Em Paris, não só
liga-se aos comunistas como aos literatos, como André Breton, pai do surrealismo, Paul Eluard e outros. Freqüenta a Universidade Popular e trabalha
como tradutora.
Até então tinha-se feito passar por francesa, usando o cognome de Leonnie. Mas
um dia é descoberta e presa, e o embaixador brasileiro, Sousa Dantas, empenha-se numa verdadeira guerra de prestígio pessoal para evitar sua
deportação para as fronteiras da Itália ou Alemanha, onde certamente
seria posta a apodrecer num campo de concentração. Sousa Dantas consegue sua repatriação para o Brasil. Presa, fica na cadeia de 1935 a 1940.
Depois de libertada, desliga-se do Partido Comunista e vem morar em Santos. Muda-se
para São Paulo, mas seu passado de militante comunista a impede de conseguir emprego em jornais. Vem o fim da guerra, voltam as colaborações em
jornais e revistas e, em 1945, publica o romance "A Famosa Revista", escrito em colaboração com Geraldo Ferraz. Este livro é reeditado em
1959, juntamente com a segunda edição de Doramundo, de Geraldo Ferraz.
A outra fase - Muito bem: neste ponto já começou a outra fase de sua vida, em
que sua atenção é voltada para a Arte, especialmente o teatro. Em 1952 é uma das primeiras alunas, e a mais entusiasta divulgadora da recém-fundada
Escola de Arte Dramática de São Paulo. Não se fixa em curso nenhum, apesar de várias tentativas no sentido de inserir-se na Dramaturgia. Ao morrer,
sua coleção de livros de teatro foi doada à EAD, que com ela organizou a Biblioteca Patrícia Galvão.
É a responsável pela vinda a Santos de um dos primeiros espetáculos montados pela
Escola, "A Descoberta do Novo Mundo", de Morvan Lebesque. Foi no Coliseu e, pela primeira vez - em 1995 - o
público santista ficou sabendo o que era teatro de vanguarda.
Nesta mesma época, como exercício para o Curso de Dramaturgia, traduz: "A Cantora
Careca", do autor romeno radicado na França, Eugene Ionesco, então um ilustre desconhecido. É com base em sua tradução que, logo depois, Luiz de
Lima encena "A Cantora Careca" junto com outra peça de Ionesco, "A Lição".
Resolve dedicar-se efetivamente ao teatro e torna-se diretora e produtora. Em 1959,
lança "Fando e Lis", de outro desconhecido, um espanhol que vivia na França (a França é uma constante em sua vida), Fernando Arrabal. Somente
muitos anos depois é que o teatro brasileiro iria "descobrir Arrabal", encenando peças suas.
Depois de Arrabal é a vez de ser lançado o mexicano Alfonso Paz, com "A Filha de
Rapaccini". No elenco, dois estreantes que hoje estão no teatro profissional: Tereza de Almeida e Cláudio Mamberti. Do elenco de "Fando e Lis",
permanecem hoje no campo da luta Paulo Lara, co-diretor da peça, atualmente especializado em teatro infantil, e o cenógrafo Lúcio Menezes.
Na mesma época incentivava e procurava melhorar a cultura geral de um jovem que falava
gramaticalmente errado e escrevia como falava, mas desejava ser escritor: Plínio Marcos. Por ocasião de sua morte, Plínio já se encontrava em S.
Paulo tentando a sorte. Somente anos mais tarde haveria de conhecer a consagração como autor.
Membro da Comissão Municipal de Cultura, seu maior sonho era ver o Teatro Municipal de
pé, recebendo o povo para ver os espetáculos produzidos por seus artistas. Quando a doença atacou forte, pediu demissão da CMC, mas o pedido foi
recusado por unanimidade.
Veio então a viagem à França, o último outono em Paris, o regresso e a morte. E
depois, seu nome numa pracinha na entrada da cidade, "junto ao povo que ela tanto amou", como frisou Geraldo no dia em que a praça foi inaugurada.
Fizeram uma cachoeira na praça e implantaram no meio um marco com uma placa com seu nome. Estas coisas garantem sua perpetuidade. |