GENTE E COISAS DA CIDADE
Um pé de arruda
Lydia Federici
Estavam os sete empilhados no quarto. As crianças já dormindo. Os pais tentando fazê-lo, dentro do abafamento malcheiroso.
Um vozerio excitado, gente que corria, puseram-nos, a princípio, mais encolhidosna cama estreita. Seria briga? O homem, espicaçado pela mulher, foi ver o que era. Voltou alvoroçado.
“Corre, muié. Tem terra sem dono ali no fim. Vamu pegá nosso pedaço”.
Voaram os dois. Sem lembrar-se de pegar um agasalho. Os pés nus. De passagem por uma cerca, ele agarrou uma ripa solta. E foram em frente. Correndo para onde corriam os outros.
Não escolheram. Pararam no primeiro pedaço livre. E ali ficaram os dois. Pela noite afora. Tremendo sob o luar frio. Ele, de pé, olhos duros espetados na estaca que fincara lá adiante, no chão seco. Ela, acocorada nos fundos do pequeno pedaço de terra. Até ali, aquele chão seria seu. Dava para fazer um quarto. Outro quarto. A cozinha. Olhou ao redor. Se chegasse mais para trás, teria mais um pouco de chão. Onde deixaria crescer o mato raso. Para corar a roupa. Arrastou-se mais para os fundos. Até ali, chegava. Os outros que ficassem com o resto.
O cheiro da terra lembrou-lhe o seu velho chão seco. Arrancou, com as mãos, uns tufos de mato. Agarrou um punhado de poeira. Parecia pó mesmo. Mas, com uma rega, a terra melhoraria. Tinha cheiro de terra nova. Sorriu. Seria ali, onde estava acocorada, a saia cobrindo os pés frios, que plantaria a arruda da lata. Com tanta terra, ela cresceria bonita. Cheirosa de dar gosto.
Ficou o resto da noite a correr os olhos, distraída, pelo terreno estranhamente habitado. Mal percebendo uma ou outra discussão. Não vendo a beleza do luar. Esfregava os braços enregelados. Apalpava a terra fria. Sua muda de arruda ia crescer bonita no meio de tanta terra. Coitada. Na lata, ela não desenvolvia.
De manhã, sol nascendo, o marido veio sacudi-la. Ia trabalhar. “Não, muié. Fica pr’ai. Defende o que é nosso. Vou mandar as criança com um pouco de café. Fica aí até eu vorta”. Ela pediu o lenço para a cabeça. E o casaquinho.
Depois de tomar uma caneca de café, sentiu-se melhor. O sol esquentava-a por fora. O café aquecera-lhe o estômago. Recomeçou a sorrir para a sua terra. Calcando-a com a sola dos pés. Acarinhando-a com os olhos. Sentia-se tão alegre que não se incomodou em brigar com as crianças. Que corriam de um lado para outro. Trazendo novidades. Na verdade, não a via. Nem ouvia. Passou a manhã a levantar, na imaginação, o seu chalé. A transplantar o seu pequenino pé de arruda.
Quando desenterraram a estaca, explicando-lhe o engano, mandando-a embora, ela tampouco falou. Juntou as crianças. Voltou para o quarto. Antes de pegar um pedaço de pão, foi largar na lata da arruda um punhado de terra. Terra do chão que, por umas horas, acreditara ser seu.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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