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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 400)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 28 de abril de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mar dos outros

Lydia Federici

O mal é o hábito. Só olhos estranhos nos tornam a revelar as belezas que, descuidados, olhamos sem ver. Sim, amigo. Não sabemos o que temos. Porque é nosso. Sempre. Da manhã à noite. Da noite ao amanhecer. É claro que, num dia mais sentido, com mais calma, chegamos a redescobrir a tranquilidade com que o mar acorda. Repousado e ainda meio dorminhoco no seu despertar sossegado. Às vezes, chegamos a sentir a vida irrequieta que passa a dominá-lo quando a brisa principia a soprar. São bonitas as marolas que se formam lá ao longe. Muito branco, junto à praia, o esfranjar-se das ondas. Talvez um pôr de sol, cor de incêndio, nos volte, uma bela tarde, a emocionar. E a escuridão tarnquila do mar, numa noite mais triste, nos volte a embalar, com mão carinhosa, a tristeza. Acalmando-a. Dulcificando-a.

Mas é tão raro acontecer isso. Quem liga para as belezas das coisas que lhe pertencem? Principalmetne quando elas, generosamente, lhe são sempre oferecidas?

Veja, portanto, amigo, como estranhos vêem o nosso mar. Sinta, amiga, como é o mar dos outros. O mar santista dos outros.

Um equatoriano, acostumado às praias rochosas, ao mar bravio de Guaiaquil, plantou-se, mudo, na avenida da praia. Um broto, só e independente, caminhava para o mar. Experimentou, com a ponta do pé, a temperatura da água. Muito lentamente, sem pressa alguma, foi avançando. Dez. Vinte metros. A água mal lhe chegava ao tornozelo. Continuou a andar. A cinqüenta metros da praia, a água lhe alcançava os joelhos. A cem metros, sua cintura fina ainda continuava seca. O equatoriano tinha boa e olhos bem abertos. Por fim, sonorizou sua estupefação.

“Mas ninguém, neste mar, pode afogar-se. Que suave se aprofunda”.

Você se lembrava, amigo, dessa suavidadeprotetora e amiga deste mar?

Uma mexicana arrancou os sapatos. Queria experimentar, com os pés nus, o calor da areia da praia. Um sorriso feliz apareceu-lhenos lábios muito pintados. E, de repente, como criança, ela se abaixou. Pegou um punhado de areia. E, como criança maravilhada, deixou os grãos fugirem-lhe por entre os dedos.

“Que minúsculos são. Parcem pó de arroz”.

Você se lembrava, amiga, desse contato tão macio? Dessa quase impalpabilidade dos grãos da areia de todas estas praias?

Uma norte-americana, ao descer do ônibus, na praia, olhos presos no azul e ouro que se lhe ofereciam brilhantes, pisou em falso. Torceu o pé. Ela não teve nenhum grito de dor. Com a perna levantada, juntou as mãos. E ficou repetindo, a olhar de uma a outra ponta de praia.

“Maravilhoso! Maravilhoso! Maravilhoso!”

Não. Não sabemos o que temos. Habituamo-nos demais a todas estas belezas. Só olhos estranhos, maravilhados, são capazes de voltar a no-las revelar.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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