GENTE E COISAS DA CIDADE Quem trocaria?
Lydia Federici
E saiu. Saiu finalmente. Saiu na quarta vez. Sabíamos que, num descuido passageiro dos céus, o desfile sairia. Era
pegar uma trégua. Começar. Começado, os santos, entretidos com sua beleza, não se lembraram de atrapalhá-lo com chuva. Foi o que aconteceu. Festa do Boqueirão, desfile de fanfarras. A beleza começou. E foi até o fim. Bonita de dar gosto. É verdade
que não foram milhares de pés que, macia ou duramente, pisaram o asfalto da avenida da praia. Foram somente centenas de braços e de bocas a bumbarem, a clarinetarem a zona do Boqueirão. Mas que beleza, minha gente. Quanta beleza nessa mocidade
colegial de Santos.
Um julgador severo, inflexível, duro, consciencioso ao extremo, de olhos milimetricamente perscrutadores, diria, torcendo o nariz:
"Muito bonito. Mas não perfeito". E, esnobemente, citaria o garbo, a paixão fanática, a riqueza de imaginação, a seriedade mística, a coorte infindável de desfiles presenciados na Alemanha, em Israel, nos Estados Unidos, na Espanha, na Rússia e na
China. Lá é que a mocidade sabe apresentar-se.
Bolas! Sabemos de tudo isso. Mas, apesar de sabê-lo, e de, sob certo aspecto, admirá-lo, gostamos muito mais, infinitamente mais, da forma por que se apresenta a nossa mocidade. Brasileiro, felizmente, é brasileiro. Não perdemos a mania de
macaquear. Mas, na nossa imitação, botamos logo, logo, um pouco da nossa alma. De nosso jeito de ser. Marchamos a bambolear-nos. Rufamos os tambores. Mas o tam-tam toma, no fundo, um ar de samba. Que nos anima a ir para a frente. Não em marcha. Mas
numa dança alegre. Dança de vida. Dança de alegria.
Foi bonito o desfile das fanfarras colegiais no Boqueirão. Porque foi nosso. Apresentado pela nossa mocidade. E apreciado, com o coração aberto, pela nossa gente. Feito bem à nossa moda. Com alegria e prazer. Rapazes e garotas atroando, juntos, os
ares. Eles, essencialmente rapazes. Vigorosos. Aprumados. Não se furtando, porém, dentro da formação disciplinada, a arriscar uma piscadela marota às meninas bonitas que os aplaudiam. Elas, a marchar, e a tocar, de forma visceralmente feminina.
Graças a Deus. Com graça. Movimentos redondos e macios. inconscientemente mais dengosas diante dos aplausos maiores.
Quem se apresentou de forma mais impressionante? E quem, honestamente, vai poder dizer que foi mais, ou menos, o Montserrat que o Luiza Macuco? Como saber o que mais nos enterneceu? Se foi a pequenina fanfarra do Carmo ou a doçura das gaitas do
Liceu São Paulo? A evocar-nos, de leve, com saudade, o "cai, cai, balão"? Ou se foi todo o impressionante ar de festa do Tarquínio? A comemorar, na festa do Boqueirão, a festa de seu 40º aniversário? Como escolher entre o Santista e o Canadá? Ambos
a arrepiar-nos até a medula dos ossos?
Não. Que importa saber qual o colégio que mais impressionou? Nessas festas, uma só coisa interessa. Ver a beleza da nossa mocidade. Como, também, uma só coisa fica. Sentir um orgulho cheio de carinho por tudo isso que é nosso. Feito à nossa moda.
Quem trocaria essa beleza? Só louco!

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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