GENTE E COISAS DA CIDADE Dia do Professor
Lydia Federici
Formou-se muito nova ainda. Pouco mais de dezesseis anos. Sentiu-se importante com seu título de professora.E cismou
que havia de utilizá-lo. Pois essa era sua vocação.
"Você não tem idade suficiente para se meter sozinha num fim de mundo". Essa foi a sentença da família. Irrevogável. Cortando-lhe, de vez, uma carreira que nem chegara a iniciar. Senão na imaginação.
"Professora? Com esse corpo e essa carinha? Você tem mais jeito de aluna que qualquer de seus possíveis alunos". Essa a opinião dos amigos.
Mas ela nascera para lecionar. E foi o que, teimosamente, começou a fazer. Descobriu uma sala de aula no litoral. Levava mais tempo indo e vindo que propriamente trabalhando. Foi professora pública de crianças. E particular, por amor, de alguns
pais de crianças. Alfabetizou e preparou alunos para o curso secundário. Lidou com cartilha e bacia de água e sabão. Foi professora, mãe e enfermeira. Conselheira e servente. Ensinou, educou, conduziu, para uma vida menos selvagem, pequeninos e
grandes.
Quando, três anos depois, conseguiu remoção para uma escola isolada, num dos morros daqui da cidade, só se dispôs a largar sua "família" do litoral quando descobriu, na substituta, o mesmo seguro ideal que a animava.
No morro, fez o que costumava fazer. A subida diária, pela quase picada, com sol e chuva, carregada de pacotes de mantimentos e roupas, estragou-lhe a saúde. A desaprovação da família preocupada, repetida, em longas conversas, todos os dias,
juntou-se ao cansaço. Levou-a ao esgotamento. Às horas de aula, de ensinamento, de conselhos, de socorro moral e material, teve que unir, por necessidade, de muito mau grado, horas de tratamento.
E assim continuou. Por anos. Quando, finalmente, chegou a um grupo da cidade, a família respirou. Agora sim. Ela teria mais folga. Engordaria um pouco. Encontraria tempo para descansar. Distrair-se um pouco. Perderia as olheiras. Não mais se
mataria de trabalho. Pois sim! Descobriu, no grupo, alunos-problemas. Dedicou-se a eles como nunca se dedicara a coisa alguma. Arrumou alunos particulares. Abriu-lhes, para a luz, a mente fechada. Escura. Lerda. Com paciência e amor, durante anos,
trabalhou crianças desajustadas. Guiou-as para uma vida um pouco menos fechada. Mais útil. Mais feliz.
Quando se aposentou, conservava o corpo miúdo. E a carinha de criança. De criança cansada. Gasta. Maltratada. Doente. Mas havia luz em seus olhos calmos e profundos. A luz que nunca abandonara. E à qual, estranhamente, parecia ter-se juntado toda a
luz, toda a grande luz que esparramara, por mais de trinta anos, com seu coração de mestra, ao seu derredor. Hoje descansa? Talvez. Mas não acredito muito. Sua mão há de estar guiando o lápis seguro por uma inexperiente mão infantil. Ou
desajeitadamente agarrado por mãos cheias de calos. Nasceu e vive professora. Vai morrer ensinando. Que Deus a abençoe. E a todos os seus colegas de profissão. De profissão? Não. De ideal! Que Deus os abençoe. A todos.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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