GENTE E COISAS DA CIDADE Dois teimosos
Lydia Federici
Um grupo grande esperava condução. Ali, naquela rua da cidade. Rua de centro, morna, cansada, suada, acendendo as primeiras
luzes.
Bonde não vinha. Ônibus não aparecia. Gente acalorada, moída, esperando, aumentando, esperando. Impaciência resignada. Rapazes magros, de camisas soltas, vindo para o meio da rua. Naquela ânsia boba e inútil de atrair bondes e ônibus que não tinham
pressa de chegar.
Foi, quando o grupo já estava bem compacto, ocupando o pedaço livre da rua, que o carro lustroso cismou de parar naquela esquina. As moças e mulheres, assustadas, foram as primeiras a correr para o passeio. Os outros, andando com moleza e
aborrecimento, sem pressa alguma, também recuaram. Mas um tipo forte, atarracado, não arredou pé. Ficou ali, fincado, na frente do carro. Um embrulho grande e alto a equilibrar-se no chão, apoiado contra sua perna esquerda.
A turma da esquina sorriu. Não percebera ele que o automóvel queria estacionar naquela vaga, naqueles únicos três metros de rua livre? Percebera, sim. Mas e daí? Que direito tinha o outro mais do que ele? Nenhum. Todo homem é igual. Tem direitos
iguais. Na esquina, o bolo humano continuava a sorrir. Gozador. Quem seria mais teimoso?
O homem atrás do volante buzinou, avançou devagar. Parou contra o embrulho do homem de camisa listada. Este não se mexeu. Nem sequer piscou. A esquina pressentiu que ia dar coisa. Tinha que dar. Os dois eram teimosos. Tinham cismado, um em
estacionar, outro em não dar o lugar.
O dono do carro pensou um instante. Olhou para trás, perscrutando a rua. Com decisão, abriu a porta do carro, saltou lépido, atravessou os trilhos, entregou um envelope num balcão. Voltou. Ia abrir a porta do automóvel quando percebeu o olhar do
homem do embrulho a desafiá-lo. Provocador. Desaforado. Foi em sua direção, respirando fundo. A esquina percebeu que o espetáculo não fora suspenso. Ficou ávida a olhar.
Enfrentaram-se os dois. O senhor falou qualquer coisa. O outro endureceu mais ainda. Calado. Feroz. Teimoso. De súbito, a mão manicurada se ergueu. A esquina parou de respirar. Com calma, a mão pousou no ombro do homem atarracado. O homem do
embrulho continuou duro. Mas foi amolecendo às palavras persuasivas e ao gesto amigo e cordial do outro. Acabou por sorrir. Ambos sorriram. E saíram os três no carro reluzente: o senhor, o homem e o embrulho pesado.
O susto passou. A vaia não saiu. Afinal, o homem do carro não dera marcha-a-ré. Nem o outro saíra do lugar enquanto não pegou condução.
Mas toda a esquina se sentiu lograda. Roubada. O espetáculo esperado não se consumara.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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