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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
XV - A aldeia ramalhense         (de Afonso Schmidt) 
Depois da volta de Martim Afonso de Sousa e seu séquito para São Vicente, pelo Esteiro do Ramalho que ia ter a Piaçagüera, o velho de serra-acima, já agora guarda-mor dos campos de Piratininga, tratou de escolher local adequado para o início da povoação. Depois de alguns dias de pesquisas, em companhia de seu neto Sebastião, o fronteiro foi encontrá-lo nas vizinhanças de certo riacho de águas cristalinas, que surdia de um bosque de pinheiros e barafustava pela macega, a desaguar nos desfiladeiros da serra.

O fato é que o guarda-mor, escolhido esse local, para lá se mudou com a família. E logo se entregou de corpo e alma à tarefa de reunir os silvícolas, espalhados pela região, ao redor de seu novo sítio. Mas não previu que fosse tão difícil. Os índios aí estabelecidos não tinham razões particulares, para, de "motu-próprio", se submeterem à autoridade dos brancos.

O guarda-mor chegava e encontrava o chefe da maloca deitado na rede, a pitar. As mulheres preparavam peixes perto do fogão, os filhos andavam por fora, ocupados na caça e na pesca.

- Cunhado, vim fazer-lhe uma visita.

- Entre, cunhado. Foi Tupã quem o mandou.

- A conversa é curta. Quero convidá-lo e aos seus a se mudarem para o povoado que se está formando ali embaixo.

- Para que isso? Estamos tão bem aqui...

- Para agradar ao Rei de Portugal.

O índio ria, divertido, cuspindo fininho para o lado:

- E que temos nós com o morubixaba dos portugueses?

- Ele é o nosso Pai Grande.

- Não acredito. Por que motivo está ocupando estas terras, sacrificando ou escravizando nossos filhos?

- No povoado, a vida será melhor.

- Só pedimos aos brancos uma coisa: que não se incomodem conosco, que não nos molestem.

Diante de tais razões, Ramalho recorria a Potira - que começava a ser Isabel para lusos e mamelucos - e ela, com seus netos pequenos, ia convencer o velho recalcitrante, mas este se mostrava irredutível, batia o pé.

- No povoado - dizia ela - nós todos teremos roça, criação, ferramenta, armas para a defesa.

- E aqui, por acaso, não temos a nossa vida tradicional?

- Ganharemos tudo com a mudança!

- Não! Vocês, a serviço dos emboabas, é que ganharão muita coisa.

Apesar dessa resistência, o núcleo foi vagarosamente engrossando. O próprio Martim Afonso, ao partir de regresso, deixara vários homens na borda do campo, para as catas do ouro. Em suas visitas freqüentes ao litoral, os barcos, que demandavam o Sul, foram deixando marinheiros fugidos, criminosos degredados e cavaleiros da aventura, que ouviam falar de ouro fácil no planalto, ao alcance de suas mãos. É verdade que havia a proibição de os do mar resgatarem ou negociarem, com os do planalto, visivelmente para se por a salvo a produção de ouro do Jaraguá e do sertão. Mas essa medida, naturalmente frustrada, só servia de chamariz. Atingia a homens que, só por estarem ali, demonstravam audácia a toda prova.

Chegavam, uniam-se a doces cunhantãs, construíam o rancho e ali ficavam, dando ensejo a récuas de caribocas. Mas o progresso do povoado da borda do campo era muito lento. Dez anos depois do seu início, já em 1543, não passava de um aglomerado de ranchos, com algumas culturas de mandioca e de cereais, trazidos pelo fidalgo navegador. As ferramentas agrícolas por ele igualmente fornecidas estavam guardadas na casas da administração e, como todos os habitantes eram pobres, podiam ser retiradas para o trabalho por quem delas precisasse, geralmente europeus.

Os caribocas, filhos de europeus e índias, que começavam a ser chamados mamelucos, nome que em Portugal dessa época designava filho de cristão e moura, não eram afeitos ao trabalho organizado. Traziam do silvícola a negligência e do europeu o espírito de aventura. Foram eles que, no século seguinte, deram maior vulto às "entradas" e às Bandeiras.

E assim se foram passando os anos. Certo dia, o guarda-mor dos Campos de Piratininga, descendo a São Vicente, foi ali informado de que o Governo Geral pretendia dar à povoação ramalhense a categoria de vila, mas o projeto estabelecia que "antes disso a fortificassem com uma trincheira e quatro baluartes, onde se cavalgue artilharia".

João Ramalho não hesitou. Reuniu os homens, distribuiu tarefas e, durante meses, a indolente povoação transformou-se em ativa colméia. Cavaram-se trincheiras, ergueram-se baluartes, adquiriram-se canhões de bronze em São Vicente, fundiram-se balas e armazenou-se grande quantidade de pólvora em improvisado paiol. Ao mesmo tempo, foi construída a casa da Câmara, na praça central. Tudo isso a expensas do guarda-mor, que tinha os seus haveres pessoais e, com certeza, recorreu aos filhos, alguns dos quais homens de posses, numa terra em que a pobreza era comum.

Quando tudo ficou pronto, ele desceu a São Vicente e comunicou a Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, que o povoado da Borda do Campo já tinha atendido a tudo o que fora imposto para receber condignamente o foral de vila.

Tomé de Sousa chegara à Bahia em princípios de 1549. Em sua companhia, vieram muitas famílias, 600 homens de armas, numerosos oficiais de diversas profissões, 400 degredados e seis jesuítas, inclusive o superior da missão, o padre Manuel da Nóbrega. Em fevereiro de 1553, desembarcou ele em São Vicente e, dois meses depois, galgou a serra, internando-se no planalto. Foi daí que nasceu São Paulo.

Certa manhã, os da borda do campo viram um magote de homens subir na sua direção. Na dianteira, chapéus de veludo, gibões azuis ou verdes, calções justos, meias brancas e sapatos de fivelas de prata, vinham Tomé de Sousa e as mais altas autoridades de São Vicente, além de muitos acompanhantes. Um desses personagens era o austero Antônio de Oliveira, lugar-tenente de Martim Afonso. Outro, era o ardoroso Brás Cubas, provedor da Fazenda Real.

O guarda-mor da Borda do Campo agasalhou-os com a sua cordialidade de beirão. Nesse dia, 8 de abril de 1553, a povoação foi elevada à categoria de vila, com o nome de Santo André da Borda do Campo. E João Ramalho, que já era guarda-mor, passou a ser o seu alcaide-mor.