Depois
da volta de Martim Afonso de Sousa e seu séquito para São
Vicente, pelo Esteiro do Ramalho que ia ter a Piaçagüera, o
velho de serra-acima, já agora guarda-mor dos campos de Piratininga,
tratou de escolher local adequado para o início da povoação.
Depois de alguns dias de pesquisas, em companhia de seu neto Sebastião,
o fronteiro foi encontrá-lo nas vizinhanças de certo riacho
de águas cristalinas, que surdia de um bosque de pinheiros e barafustava
pela macega, a desaguar nos desfiladeiros da serra.
O fato é
que o guarda-mor, escolhido esse local, para lá se mudou com a família.
E logo se entregou de corpo e alma à tarefa de reunir os silvícolas,
espalhados pela região, ao redor de seu novo sítio. Mas não
previu que fosse tão difícil. Os índios aí
estabelecidos não tinham razões particulares, para, de "motu-próprio",
se submeterem à autoridade dos brancos.
O guarda-mor
chegava e encontrava o chefe da maloca deitado na rede, a pitar. As mulheres
preparavam peixes perto do fogão, os filhos andavam por fora, ocupados
na caça e na pesca.
- Cunhado,
vim fazer-lhe uma visita.
- Entre, cunhado.
Foi Tupã quem o mandou.
- A conversa
é curta. Quero convidá-lo e aos seus a se mudarem para o
povoado que se está formando ali embaixo.
- Para que
isso? Estamos tão bem aqui...
- Para agradar
ao Rei de Portugal.
O índio
ria, divertido, cuspindo fininho para o lado:
- E que temos
nós com o morubixaba dos portugueses?
- Ele é
o nosso Pai Grande.
- Não
acredito. Por que motivo está ocupando estas terras, sacrificando
ou escravizando nossos filhos?
- No povoado,
a vida será melhor.
- Só
pedimos aos brancos uma coisa: que não se incomodem conosco, que
não nos molestem.
Diante de tais
razões, Ramalho recorria a Potira - que começava a ser Isabel
para lusos e mamelucos - e ela, com seus netos pequenos, ia convencer o
velho recalcitrante, mas este se mostrava irredutível, batia o pé.
- No povoado
- dizia ela - nós todos teremos roça, criação,
ferramenta, armas para a defesa.
- E aqui, por
acaso, não temos a nossa vida tradicional?
- Ganharemos
tudo com a mudança!
- Não!
Vocês, a serviço dos emboabas, é que ganharão
muita coisa.
Apesar dessa
resistência, o núcleo foi vagarosamente engrossando. O próprio
Martim Afonso, ao partir de regresso, deixara vários homens na borda
do campo, para as catas do ouro. Em suas visitas freqüentes ao litoral,
os barcos, que demandavam o Sul, foram deixando marinheiros fugidos, criminosos
degredados e cavaleiros da aventura, que ouviam falar de ouro fácil
no planalto, ao alcance de suas mãos. É verdade que havia
a proibição de os do mar resgatarem ou negociarem, com os
do planalto, visivelmente para se por a salvo a produção
de ouro do Jaraguá e do sertão. Mas essa medida, naturalmente
frustrada, só servia de chamariz. Atingia a homens que, só
por estarem ali, demonstravam audácia a toda prova.
Chegavam, uniam-se
a doces cunhantãs, construíam o rancho e ali ficavam,
dando ensejo a récuas de caribocas. Mas o progresso do povoado da
borda do campo era muito lento. Dez anos depois do seu início, já
em 1543, não passava de um aglomerado de ranchos, com algumas culturas
de mandioca e de cereais, trazidos pelo fidalgo navegador. As ferramentas
agrícolas por ele igualmente fornecidas estavam guardadas na casas
da administração e, como todos os habitantes eram pobres,
podiam ser retiradas para o trabalho por quem delas precisasse, geralmente
europeus.
Os caribocas,
filhos de europeus e índias, que começavam a ser chamados
mamelucos, nome que em Portugal dessa época designava filho de cristão
e moura, não eram afeitos ao trabalho organizado. Traziam do silvícola
a negligência e do europeu o espírito de aventura. Foram eles
que, no século seguinte, deram maior vulto às "entradas"
e às Bandeiras.
E assim se
foram passando os anos. Certo dia, o guarda-mor dos Campos de Piratininga,
descendo a São Vicente, foi ali informado de que o Governo Geral
pretendia dar à povoação ramalhense a categoria de
vila, mas o projeto estabelecia que "antes disso a fortificassem com
uma trincheira e quatro baluartes, onde se cavalgue artilharia".
João
Ramalho não hesitou. Reuniu os homens, distribuiu tarefas e, durante
meses, a indolente povoação transformou-se em ativa colméia.
Cavaram-se trincheiras, ergueram-se baluartes, adquiriram-se canhões
de bronze em São Vicente, fundiram-se balas e armazenou-se grande
quantidade de pólvora em improvisado paiol. Ao mesmo tempo, foi
construída a casa da Câmara, na praça central. Tudo
isso a expensas do guarda-mor, que tinha os seus haveres pessoais e, com
certeza, recorreu aos filhos, alguns dos quais homens de posses, numa terra
em que a pobreza era comum.
Quando tudo
ficou pronto, ele desceu a São Vicente e comunicou a Tomé
de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, que o povoado da Borda do
Campo já tinha atendido a tudo o que fora imposto para receber condignamente
o foral de vila.
Tomé
de Sousa chegara à Bahia em princípios de 1549. Em sua companhia,
vieram muitas famílias, 600 homens de armas, numerosos oficiais
de diversas profissões, 400 degredados e seis jesuítas, inclusive
o superior da missão, o padre Manuel da Nóbrega. Em fevereiro
de 1553, desembarcou ele em São Vicente e, dois meses depois, galgou
a serra, internando-se no planalto. Foi daí que nasceu São
Paulo.
Certa manhã,
os da borda do campo viram um magote de homens subir na sua direção.
Na dianteira, chapéus de veludo, gibões azuis ou verdes,
calções justos, meias brancas e sapatos de fivelas de prata,
vinham Tomé de Sousa e as mais altas autoridades de São Vicente,
além de muitos acompanhantes. Um desses personagens era o austero
Antônio de Oliveira, lugar-tenente de Martim Afonso. Outro, era o
ardoroso Brás Cubas, provedor da Fazenda Real.
O guarda-mor
da Borda do Campo agasalhou-os com a sua cordialidade de beirão.
Nesse dia, 8 de abril de 1553, a povoação foi elevada à
categoria de vila, com o nome de Santo André da Borda do Campo.
E João Ramalho, que já era guarda-mor, passou a ser o seu
alcaide-mor. |