Quase
dois anos depois desses acontecimentos, João Ramalho ainda andava
pelos vales do Paraíba, onde havia tamoios e tupiniquins. Seu nome
continuava aclamado pela povoação nascente nos campos de
Piratininga. A tal ponto que, nas eleições, foi ele escolhido
para vereador, cargo de grande confiança dos munícipes.
Em seu retiro,
nas terras pertencentes a Brás Cubas, onde morava em casa de um
parente, João Ramalho recebeu a notificação e apressou-se
em vir à vila. A viagem de Moji das Cruzes a São Paulo foi-lhe
penosa. Hospedou-se nas pousadas de Lourenço Martins. Ali, vão
procurá-lo João Fernandes, escrivão, e Baltasar Rodrigues,
procurador, pedindo-lhe, em nome do Conselho, que assuma o posto para que
fora eleito.
No entanto,
o arraiano do Paraíba recusa, declarando-se velho e cansado. Alega
já ter passado dos 78 anos, bem vividos e sofridos. Sua idade já
não lhe permite viver em idas e vindas. Em suas palavras, sente-se,
porém, um ressaibo de amarguras. Setenta e oito janeiros para o
beirão não deviam ter tal importância, pois a sua vitalidade
era extraordinária: dez anos antes, foi testemunhada por Tomé
de Sousa que, assombrado, escrevera ao soberano português:
"... João
Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou
nesta terra, quando cá veyo. Tem tantos filhos, netos, bisnetos
e descendentes que ho não ouso de dizer a V. A. ... Não tem
cãs na cabeça nem no rosto e anda nove léguas a pé
antes do jantar".
Também
ali perto vivia aquele cacique Caiubi que, de tão idoso, já
não tinha luas para contar. Diziam-no de 130 anos.
Na realidade,
talvez João Ramalho não tivesse, nesses termos precisamente,
aludido à sua idade. Talvez houvesse dito que, há setenta
e oito anos, "andava por estas terras"; isso estaria mais conforme
com a sua declaração posterior, docuemntada. Tanto mais que
nem todos os historiadores estão concordes quanto ao número
de anos por ele invocados para se eximir ao cargo que já não
o interessava.
João
Ramalho e o filho Detalhe de
pintura a óleo de Wasth Rodrigues, Museu Paulista, S.Paulo/SP Sentia-se
amargurado. Preferia passar o resto da vida numa região isolada,
num sertão infestado de índios contrários. A julgar
pela ata da sessão de 15 de fevereiro, poderia tratar-se de um degredo.
Essa palavra fora riscada, emendada, complicada. Se não degredado,
pelo menos afastado da vila que se enchia de fidalgos importantes. Seu
auxílio fora decisivo para a Coroa, para os próprios padres.
O cronista da Companhia, um século depois, ainda se atirava ferozmente
à sua memória, ao comportamento de seus filhos e netos. A
política de certos reinóis para com ele, desde os primeiros
tempos, parecia ter sido essa: utilizar-lhe o prestígio, a experiência,
a lealdade sem limites, mas combater ao mesmo tempo a sua misteriosa pessoa
e os seus incríveis mamelucos, que se julgavam donos da terra, que
se mostravam desaforados e brigões.
Já não
se necessitava tanto da sua presença. Ele, por seu lado, nunca precisara
de ninguém, exceto daquela doce Isabel, que lhe haviam tirado e
que agora dormia para sempre, sob um florido pé de manacá.
Morto, também, estava seu filho Vitorino, na luta contra os inimigos
da vila, entre os quais contava parentes e companheiros desgostosos com
o aniquilamento de Santo André. Igualmente, Tibereçá
estava morto. O poderoso chefe guaianá que não só
lhe salvara a vida, quando fora o primeiro branco a galgar a serra, mas
também, por nímia grandeza de alma, lhe dera por esposa a
graciosa filha. As pessoas mais queridas já estavam mortas. E os
vivos, apesar das demonstrações de entusiasmo, não
tinham por ele o carinho que tanto merecia. Em longuíssima existência
nestas terras, tinha aprendido com os silvícolas aquela desconfiança
sempre alerta que os levava a se deitar no mato para escutar o chão
e averiguar se vinham inimigos no seu encalço.
As filhas estavam
amparadas. Tinham-se casado havia muito. Seus filhos e netos já
constituíam boa parte da sociedade, que brilhava no fim do século.
E, como tivesse outra maneira de pensar e de sentir, o patriarca quase
centenário começou a julgar-se demais, num mundo diferente.
Não queria ser uma petra scandali para os nomes que, por
suas alianças, vinham surgindo de geração para geração.
Eram os Camacho, os Luís, os Carvoeiro, os Bueno, os Camargo, os
Grou, os Grã, os Ferreira, os Preto, os Monteiro, os Dias, os Gago,
os Álvares, os Rodrigues, os Gonçalves, os Castanho, os Pacheco,
os Pires, os Torres, os Cunha, tantos outros. Dali a pouco, começaria
um século novo, resplandecente de heroismo e de glórias.
João
Ramalho sentiu-se um sobrevivente no mundo novo que já não
era o seu. No dia seguinte, tomou o bordão, chamou Sebastião
e ambos partiram no rumo do Paraíba. Não mandou notícias,
não pediu notícias dos que tinham ficado. Lá, no alpendre
da casa do neto Sebastião, havia uma rede só para ele. Três
vezes por dia, a bondosa Filipa, esposa do mameluco, ia levar-lhe a comida.
E o velho andava por ali, absorto, pensando em coisas distantes. Quando
chegara, o casal tinha uma filhinha de colo. E os anos foram passando.
Um dia, admirou-se ao ver uma mocinha lhe trazer a refeição:
- Zabelinha,
como você está crescida!
No dia seguinte,
João Ramalho e Sebastião partiram para São Paulo de
Piratininga. Hospedaram-se nas pousadas de um conhecido. Depois de uma
semana de descanso, em que ele pôs os papéis em ordem, dirigiu-se
ao 1º Tabelião de Notas da vila, perto da Tabatingüera.
Era a casa de Lourenço Vaz, que exercia essas funções.
O notário,
prevenido de véspera por Sebastião, estava pronto para averbar
o testamento. Lá estavam sentadas no banco quatro testemunhas, das
pessoas mais antigas e respeitáveis da povoação. E,
com elas, o juiz ordinário, Pedro Dias. O testador sentou-se numa
tripeça junto à mesa. Lourenço Vaz instalou-se no
posto que lhe competia, arrumou as quartilhas de almaço sobre a
mesa, diante de si, molhou a pena de pato no tinteiro e foi escrevendo...
Aos três
dias do mês de maio de 1580 anos da era de Nosso Senhor Jesus Cristo,
perante mim, tabelião, Lourenço Vaz do 1º Ofício
de Notas, na presença de Pedro Dias, Juiz Ordinário e de
quatro testemunhas, diz João Ramalho natural de Vouzela, comarca
de Viseu, Província da Beira, Portugal, filho de João Velho
Maldonado e de Catarina Afonso Belbode, casado na terra com Catarina das
Vacas, que já se encontra por estas terras há noventa anos.
O tabelião
escrevia, escrevia, João Ramalho esperou que ele escrevesse e depois
retomou o fio das suas declarações:
- Diz que
se encontra por estas terras há noventa anos...
E o testamento
prosseguiu correto, legal. Por ele se comprovava que João Ramalho
chegara ao Brasil antes de Cabral, antes mesmo de Colombo ter aportado
a Guanaami, nas Antilhas. Mas, por ser de suma importância histórica,
sumiu. O caderno rubricado por João Soares, em cuja página
10 fora averbado o testamento de João Ramalho, tomou o caminho ignorado
de outros papéis do século XVI, que poderiam fazer luz sobre
os primeiros tempos de São Vicente, de Santo André e de São
Paulo. Os estudiosos sabem de sua existência, através das
informações de Pedro Taques, de Frei Gaspar da Madre de Deus
e de uns translados, que pertenceram ao arquivo de José Bonifácio.
Notas
Quem é,
afinal, o enigmático João Ramalho?
Ninguém
sabe ao certo.
Nos primeiros
anos deste século (N.E.: século
XX), travaram-se, no Instituto Histórico
e Geográfico de São Paulo e na imprensa, vivos debates sobre
a figura do português aqui aportado ignora-se como e quando. A darmos
crédito ao seu testamento feito em cartório, perante o escrivão,
o juiz ordinário e testemunhas gradas, em livro rubricado por João
Soares, ele chegara a estas terras ali por 1490, isto é, antes de
Cabral e de Colombo. Mas esse testamento, citado por Pedro Taques e por
Frei Gaspar da Madre de Deus, assim como por outras pessoas, desapareceu
sem deixar maiores vestígios.
Onde estaria
localizada a vila de Santo André da Borda do Campo, que João
Ramalho fundou e da qual foi nomeado alcaide-mor por Tomé de Sousa,
quando por aqui andou?
Esse é
outro enigma pitoresco, ou melhor, enigma geográfico.
Ao longo de
sua existência - que parece ter sido de cento e poucos anos - os
enigmas dessa classe multiplicam-se. Náufrago? Degredado? Judeu
escapo das perseguições? Agente da Corte de Lisboa? Analfabeto?
Feiticeiro? Preador de índios? Pirata? Ninguém sabe. Por
falta de documentos sérios, ao alcance dos estudiosos, sua vida
é um campo aberto à fantasia dos poetas.
Nos anos a
que aludimos, o nosso Instituto Histórico designou uma comissão
para estudar vários pontos obscuros - que são quase todos.
Tal comissão, consultando os escassos documentos que lhe foram apresentados,
chegou à conclusão de que João Ramalho era analfabeto
e assinava de cruz as atas da Câmara de Santo André da Borda
do Campo. De cruz, não. Enquanto os demais camaristas iletrados
assinavam de cruz, como é de praxe, ele assinava de "kaf", que é
uma letra hebraica e, nesse caso, um nebuloso símbolo.
Horácio
de Carvalho, erudito escritor que por muitos anos exerceu o cargo de diretor
do Diário Oficial de São Paulo, e que tomou parte
nessa campanha, escreveu alentado volume sobre o "kaf" de João Ramalho.
Mas, para
os que se interessarem por tais problemas, Santo André da Borda
do Campo e a vida do patriarca dos paulistas, melhor será consultarem
a ata da citada comissão do Instituto Histórico, assinada
por Teodoro Sampaio (relator), Antônio de Toledo Piza e João
Mendes de Almeida Júnior. Segue-se um parecer, discordante, de M.
Pereira Guimarães, secretário dessa lídima instituição
de cultura. Tudo isso e ainda outras informações e suposições,
o leitor curioso encontrará no vol. VII da Revista do Instituto,
relativo ao ano de 1902.
Com esse material,
vasto, mas discutido, limitei-me a escrever uma novelazinha sem pretensões
históricas, à maneira de outras da minha lavra, como "O
Assalto", aventura de Bartolomeu Fernandes Faria, potentado de Jacareí
na época da mineração; "A Sombra de Júlio
Frank", nos primeiros anos da fundação dos Cursos Jurídicos;
"O Romance de Paulo Eiró", contando os sofrimentos e as glórias
do grande poeta de Santo Amaro, e "A Locomotiva", com uma interpretação
inédita do movimento de 1932.
Assim é
"O Enigma de João Ramalho", a fantasiosa novelazinha que
aí está -
A.S.
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