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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
XXVI - O testamento de Ramalho
(de Afonso Schmidt) 
Quase dois anos depois desses acontecimentos, João Ramalho ainda andava pelos vales do Paraíba, onde havia tamoios e tupiniquins. Seu nome continuava aclamado pela povoação nascente nos campos de Piratininga. A tal ponto que, nas eleições, foi ele escolhido para vereador, cargo de grande confiança dos munícipes.

Em seu retiro, nas terras pertencentes a Brás Cubas, onde morava em casa de um parente, João Ramalho recebeu a notificação e apressou-se em vir à vila. A viagem de Moji das Cruzes a São Paulo foi-lhe penosa. Hospedou-se nas pousadas de Lourenço Martins. Ali, vão procurá-lo João Fernandes, escrivão, e Baltasar Rodrigues, procurador, pedindo-lhe, em nome do Conselho, que assuma o posto para que fora eleito.

No entanto, o arraiano do Paraíba recusa, declarando-se velho e cansado. Alega já ter passado dos 78 anos, bem vividos e sofridos. Sua idade já não lhe permite viver em idas e vindas. Em suas palavras, sente-se, porém, um ressaibo de amarguras. Setenta e oito janeiros para o beirão não deviam ter tal importância, pois a sua vitalidade era extraordinária: dez anos antes, foi testemunhada por Tomé de Sousa que, assombrado, escrevera ao soberano português: 

"... João Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou nesta terra, quando cá veyo. Tem tantos filhos, netos, bisnetos e descendentes que ho não ouso de dizer a V. A. ... Não tem cãs na cabeça nem no rosto e anda nove léguas a pé antes do jantar".

Também ali perto vivia aquele cacique Caiubi que, de tão idoso, já não tinha luas para contar. Diziam-no de 130 anos.

Na realidade, talvez João Ramalho não tivesse, nesses termos precisamente, aludido à sua idade. Talvez houvesse dito que, há setenta e oito anos, "andava por estas terras"; isso estaria mais conforme com a sua declaração posterior, docuemntada. Tanto mais que nem todos os historiadores estão concordes quanto ao número de anos por ele invocados para se eximir ao cargo que já não o interessava.

João Ramalho e o filho
Detalhe de pintura a óleo de Wasth Rodrigues, Museu Paulista, S.Paulo/SP
Sentia-se amargurado. Preferia passar o resto da vida numa região isolada, num sertão infestado de índios contrários. A julgar pela ata da sessão de 15 de fevereiro, poderia tratar-se de um degredo. Essa palavra fora riscada, emendada, complicada. Se não degredado, pelo menos afastado da vila que se enchia de fidalgos importantes. Seu auxílio fora decisivo para a Coroa, para os próprios padres. O cronista da Companhia, um século depois, ainda se atirava ferozmente à sua memória, ao comportamento de seus filhos e netos. A política de certos reinóis para com ele, desde os primeiros tempos, parecia ter sido essa: utilizar-lhe o prestígio, a experiência, a lealdade sem limites, mas combater ao mesmo tempo a sua misteriosa pessoa e os seus incríveis mamelucos, que se julgavam donos da terra, que se mostravam desaforados e brigões.

Já não se necessitava tanto da sua presença. Ele, por seu lado, nunca precisara de ninguém, exceto daquela doce Isabel, que lhe haviam tirado e que agora dormia para sempre, sob um florido pé de manacá. Morto, também, estava seu filho Vitorino, na luta contra os inimigos da vila, entre os quais contava parentes e companheiros desgostosos com o aniquilamento de Santo André. Igualmente, Tibereçá estava morto. O poderoso chefe guaianá que não só lhe salvara a vida, quando fora o primeiro branco a galgar a serra, mas também, por nímia grandeza de alma, lhe dera por esposa a graciosa filha. As pessoas mais queridas já estavam mortas. E os vivos, apesar das demonstrações de entusiasmo, não tinham por ele o carinho que tanto merecia. Em longuíssima existência nestas terras, tinha aprendido com os silvícolas aquela desconfiança sempre alerta que os levava a se deitar no mato para escutar o chão e averiguar se vinham inimigos no seu encalço.

As filhas estavam amparadas. Tinham-se casado havia muito. Seus filhos e netos já constituíam boa parte da sociedade, que brilhava no fim do século. E, como tivesse outra maneira de pensar e de sentir, o patriarca quase centenário começou a julgar-se demais, num mundo diferente. Não queria ser uma petra scandali para os nomes que, por suas alianças, vinham surgindo de geração para geração. Eram os Camacho, os Luís, os Carvoeiro, os Bueno, os Camargo, os Grou, os Grã, os Ferreira, os Preto, os Monteiro, os Dias, os Gago, os Álvares, os Rodrigues, os Gonçalves, os Castanho, os Pacheco, os Pires, os Torres, os Cunha, tantos outros. Dali a pouco, começaria um século novo, resplandecente de heroismo e de glórias.

João Ramalho sentiu-se um sobrevivente no mundo novo que já não era o seu. No dia seguinte, tomou o bordão, chamou Sebastião e ambos partiram no rumo do Paraíba. Não mandou notícias, não pediu notícias dos que tinham ficado. Lá, no alpendre da casa do neto Sebastião, havia uma rede só para ele. Três vezes por dia, a bondosa Filipa, esposa do mameluco, ia levar-lhe a comida. E o velho andava por ali, absorto, pensando em coisas distantes. Quando chegara, o casal tinha uma filhinha de colo. E os anos foram passando. Um dia, admirou-se ao ver uma mocinha lhe trazer a refeição:

- Zabelinha, como você está crescida!

No dia seguinte, João Ramalho e Sebastião partiram para São Paulo de Piratininga. Hospedaram-se nas pousadas de um conhecido. Depois de uma semana de descanso, em que ele pôs os papéis em ordem, dirigiu-se ao 1º Tabelião de Notas da vila, perto da Tabatingüera. Era a casa de Lourenço Vaz, que exercia essas funções.

O notário, prevenido de véspera por Sebastião, estava pronto para averbar o testamento. Lá estavam sentadas no banco quatro testemunhas, das pessoas mais antigas e respeitáveis da povoação. E, com elas, o juiz ordinário, Pedro Dias. O testador sentou-se numa tripeça junto à mesa. Lourenço Vaz instalou-se no posto que lhe competia, arrumou as quartilhas de almaço sobre a mesa, diante de si, molhou a pena de pato no tinteiro e foi escrevendo...

Aos três dias do mês de maio de 1580 anos da era de Nosso Senhor Jesus Cristo, perante mim, tabelião, Lourenço Vaz do 1º Ofício de Notas, na presença de Pedro Dias, Juiz Ordinário e de quatro testemunhas, diz João Ramalho natural de Vouzela, comarca de Viseu, Província da Beira, Portugal, filho de João Velho Maldonado e de Catarina Afonso Belbode, casado na terra com Catarina das Vacas, que já se encontra por estas terras há noventa anos.

O tabelião escrevia, escrevia, João Ramalho esperou que ele escrevesse e depois retomou o fio das suas declarações:

- Diz que se encontra por estas terras há noventa anos...

E o testamento prosseguiu correto, legal. Por ele se comprovava que João Ramalho chegara ao Brasil antes de Cabral, antes mesmo de Colombo ter aportado a Guanaami, nas Antilhas. Mas, por ser de suma importância histórica, sumiu. O caderno rubricado por João Soares, em cuja página 10 fora averbado o testamento de João Ramalho, tomou o caminho ignorado de outros papéis do século XVI, que poderiam fazer luz sobre os primeiros tempos de São Vicente, de Santo André e de São Paulo. Os estudiosos sabem de sua existência, através das informações de Pedro Taques, de Frei Gaspar da Madre de Deus e de uns translados, que pertenceram ao arquivo de José Bonifácio.

Notas

Quem é, afinal, o enigmático João Ramalho?

Ninguém sabe ao certo.

Nos primeiros anos deste século (N.E.: século XX), travaram-se, no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e na imprensa, vivos debates sobre a figura do português aqui aportado ignora-se como e quando. A darmos crédito ao seu testamento feito em cartório, perante o escrivão, o juiz ordinário e testemunhas gradas, em livro rubricado por João Soares, ele chegara a estas terras ali por 1490, isto é, antes de Cabral e de Colombo. Mas esse testamento, citado por Pedro Taques e por Frei Gaspar da Madre de Deus, assim como por outras pessoas, desapareceu sem deixar maiores vestígios.

Onde estaria localizada a vila de Santo André da Borda do Campo, que João Ramalho fundou e da qual foi nomeado alcaide-mor por Tomé de Sousa, quando por aqui andou?

Esse é outro enigma pitoresco, ou melhor, enigma geográfico.

Ao longo de sua existência - que parece ter sido de cento e poucos anos - os enigmas dessa classe multiplicam-se. Náufrago? Degredado? Judeu escapo das perseguições? Agente da Corte de Lisboa? Analfabeto? Feiticeiro? Preador de índios? Pirata? Ninguém sabe. Por falta de documentos sérios, ao alcance dos estudiosos, sua vida é um campo aberto à fantasia dos poetas.

Nos anos a que aludimos, o nosso Instituto Histórico designou uma comissão para estudar vários pontos obscuros - que são quase todos. Tal comissão, consultando os escassos documentos que lhe foram apresentados, chegou à conclusão de que João Ramalho era analfabeto e assinava de cruz as atas da Câmara de Santo André da Borda do Campo. De cruz, não. Enquanto os demais camaristas iletrados assinavam de cruz, como é de praxe, ele assinava de "kaf", que é uma letra hebraica e, nesse caso, um nebuloso símbolo.

Horácio de Carvalho, erudito escritor que por muitos anos exerceu o cargo de diretor do Diário Oficial de São Paulo, e que tomou parte nessa campanha, escreveu alentado volume sobre o "kaf" de João Ramalho.

Mas, para os que se interessarem por tais problemas, Santo André da Borda do Campo e a vida do patriarca dos paulistas, melhor será consultarem a ata da citada comissão do Instituto Histórico, assinada por Teodoro Sampaio (relator), Antônio de Toledo Piza e João Mendes de Almeida Júnior. Segue-se um parecer, discordante, de M. Pereira Guimarães, secretário dessa lídima instituição de cultura. Tudo isso e ainda outras informações e suposições, o leitor curioso encontrará no vol. VII da Revista do Instituto, relativo ao ano de 1902.

Com esse material, vasto, mas discutido, limitei-me a escrever uma novelazinha sem pretensões históricas, à maneira de outras da minha lavra, como "O Assalto", aventura de Bartolomeu Fernandes Faria, potentado de Jacareí na época da mineração; "A Sombra de Júlio Frank", nos primeiros anos da fundação dos Cursos Jurídicos; "O Romance de Paulo Eiró", contando os sofrimentos e as glórias do grande poeta de Santo Amaro, e "A Locomotiva", com uma interpretação inédita do movimento de 1932.

Assim é "O Enigma de João Ramalho", a fantasiosa novelazinha que aí está - 

A.S.