No
dia seguinte, pela manhã, os três adventícios reuniram-se
no terreiro. Homens e mulheres, como faziam sempre, ao se levantar, assavam
frutos e raízes no brasido que restava da fogueira.
Sabença,
tendo caído nas graças do maioral Pirupava e do feiticeiro
Pirambóia, dormira num rancho, sobre couros estendidos. João
e Duarte não alcançaram essa distinção; repousaram
no pátio, em esteiras, à claridade das estrelas. Mas a noite
tinha sido cálida, muito agradável.
Comendo mandioca
e mel, o moço de Chaves contou aos companheiros, com uma pontinha
de vaidade, que, utilizando o quase nada que aprendera da língua
dos nativos, começava a entender-se com o cacique. Falara-lhe que,
tendo estudado muitas coisas em sua terra, estava em condições
de ir ao rio, e, por processos mágicos, colher tanto ouro, tanto,
que a tribo poderia fabricar com esse metal os objetos de uso doméstico.
Ouvindo as
palavras do hóspede, Pirupava sentiu-se tentado pela promessa e
ofereceu-lhe alguns índios para acompanhá-lo até às
catas, proposta que o letrado logo aceitou. Por isso, naquela manhã,
depois do desjejum, deu-se a partida, com alguns nativos, que levavam surrões
de couro, para trazerem as pepitas colhidas. Mas, no momento dos adeuses,
Duarte falou-lhe:
- Ó
flaviense! Por que motivo não me levas contigo? Não pretendo
nada para mim. O essencial é raspar-me daqui, quanto mais cedo melhor!
Sabença,
que devia ser mesmo um gênio em aprender línguas exóticas,
correu à oca do maioral e entendeu-se com ele. De volta, respondeu
ao degredado:
- Já
falei ao Pirupava; ele me autorizou a levar-te conosco, pois tu, como lhe
fiz ver, és o homem que nos convém nesta arriscadíssima
empresa.
- E eu? - perguntou
João, cofiando as magníficas barbas.
- Tu ficas.
Com esses cabelos armados e essas barbas ramalhudas, tu te tornaste a atração
da ocara. Daqui a alguns dias, quando deixares de ser uma novidade
digna de admirar, o pajé Pirambóia achará que estás
com o anhangá no corpo e o cacique Pirupava te mandará
para qualquer lugar onde, mais à vontade, possas curtir as saudades
da Catarina.
Isso dizendo,
o letrado levantou a guitarra e agitou-a no ar, despedindo-se. Dois índios
seguiram na frente. Ele e Duarte no centro. E outros dois guerreiros atrás,
para lhes garantir a retaguarda. Lá foram. Passaram rente a um dos
pedrouços coroados de espinheiros, transpuseram a caiçara,
mergulharam no mato e desapareceram. João resmungou:
- Esses patuscos
são da mesma estofa; os ventos da fortuna sopram-lhes galernos!
Tibiriçá
(Tibereçá), que ajudou Martim Afonso e Brás Cubas
a defenderem
Santos e São Vicente contra os índios inimigos Pintura a
óleo de Wasth Rodrigues, Museu Paulista, São Paulo/SP
Nesse
dia, João manteve-se arredio, não se aproximando de niguém.
Mas, na madrugada seguinte, vendo alguns guerreiros que iam para o banho,
tratou de apropinquar-se e, bem acolhido, lá foi com eles. Após
muito caminhar, chegaram a uma praia sombreada de coqueiros.
Fez um esforço
e conseguiu formular uma pergunta que, suficientemente adivinhada, significava:
onde estamos nós? O índio mais próximo respondeu-lhe:
- Engaguaçu.
Dali a pouco,
chegaram ao mar, que estava calmo e transparente. Tão transparente
que se podia ver no fundo das águas rasas os veios escuros dos resíduos.
Sobre a praia molhada, lisa e espelhante, pontilhada de conchas e caramujinhos,
a saca e a ressaca pareciam tecer colchas de crivo, com frocos de alva
espuma.
Depois do banho,
dirigiram-se a umas pedras perenemente batidas pelas ondas e flecharam
alguns peixes que, assados ali mesmo, na fogueira que nunca se apagava
e era destinada a tal fim, lhes serviram de almoço. Terminado o
bródio, partiram de regresso, mas foram descansando nas moitas que
mais lhes apeteciam.
Quando chegaram
à taba, o Sol já descaía e as sombras espichavam-se
debaixo das árvores. Faziia um calor abafado. As cigarras ziniam
longamente no mormaço.
Ao penetrarem
na ocara, encontraram algumas figuras novas, gente chegada do planalto.
Eram índios guaianás de Inhapuambuçu e de Jeribatiba,
que haviam descido a serra de Paranapiacaba.
João,
afogueado, dirigiu-se ao pote de jacuba com que pretendia refrescar-se,
mas lá chegando topou com algumas cunhantãs, que logo
o rodearam, manifestando por ele viva curiosidade. Vestiam-se quase do
mesmo modo que os varões, mas traziam uma cinta dourada ao redor
da cabeça. Seus cabelos cor de azeviche eram longos, caídos
pelos ombros, enfeitados com áscuas de ouro. Ostentavam colares,
pulseiras e correntinhas, apertando o âmbar dos artelhos.
Uma delas,
núbil e graciosa, afoitou-se mais que as companheiras:
- Um homem
branco! - exclamou.
Aquilo pareceu-lhe
impossível! Nunca imaginara que houvesse homens brancos, verdes,
vermelhos ou azuis! Para certificar-se, pegou-lhe nas mãos, apalpou-lhe
as barbas e os cabelos hirsutos, encheu-o de perguntas inúteis.
Entretanto, o beirão limitava-se a rir com seus belos dentes, sem
compreender patavina do que ela se esforçava por lhe dizer.
Era impossível
entenderem-se por palavras, mas não o foi, todavia, pela expressão
dos olhos. Amaram-se à primeira vista.
A cunhantã
chamava-se Potira, nome que na linguagem abanheéim quer dizer
flor,
e era filha do cacique Tibereçá, cuja taba ficava lá
em cima, no planalto, entre os rios que banham os campos de Piratininga. |