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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
V - Terra dos papagaios          (de Afonso Schmidt)
Os dias eram curtos, as noites compridas. A esquadra já não se dirigia às Índias, a determinado porto. A bombordo, elevava-se uma serra que, de quando em quando, se fragmentava em morros, para mostrar, talvez, a foz de largo rio; a estibordo, a terra, como numa sucessão de ilhas, ia-se tornando cada vez mais azul até se perder de vista na lonjura.

O litoral do arquipélago em que acreditava mestre Gaspar era constituído por lagamares arrepiados de vegetação franzina, de folhagem cor de azinhavre, agarrando-se, penosamente, ao lodo preto.

Quando João e Duarte, ao alvorecer, deixaram a alcácema, onde agora dormiam, as três naus já pareciam imóveis. A sua estava fundeando a cem braças da costa. À proa, alargava-se uma como embocadura de rio, entre barrancos cobertos de alta e cerrada floresta.

Bandos de aves gritadoras de diversos gêneros atravessavam o céu sobre a abra, toldando por vezes o brilho do Sol. Mestre Gaspar, no castelo de proa, rodeado de encanecidos capitães, mostrava as cartas e discutia. Por fim, considerou as nuvens de psitacídeos, abriu os braços e sentenciou:

- Terra dos Papagaios!

Ouviam-se o desenrolar dos cabrestantes, o arrastar dos calabres, o ranger de roldanas nos cadernais. Os marinheiros arriaram um bote. A seguir, por meio de cordas, desceram pipas vazias e alcôfas feitas de esparto, estas para transportar os mantimentos, que porventura encontrassem, aquelas para colher água fresca nas nascentes dos morros próximos. Levavam, também, dois mosquetões para o que desse e viese, embora os marinheiros estivessem armados com os punhais que usavam à cinta.

Depois da primeira refeição, constituída de bolachas emboloradas - pois, meses antes, a tempestade penetrara nos paióis -, regadas com canecos de zurrapa, quatro remadores tripularam a embarcação. Para a mesma, desceram os presos, que iam ser mandados à sua sorte, e o Sabença, que se gabava de falar diversas línguas. No fim, embarcou mestre Balasco, no caso, representando a Justiça d'El Rei.

Com lentas e fundas remadas, o bote rumou para a barca, aproximando-se das ribas ásperas, onde algumas estrelas de coqueiros dominavam a mata inextricável. Já próximos de terra, os viajantes começaram a ouvir as vozes das aves, o zinido das cigarras e a harmonia do vento noroeste, que agitava a folhagem. Nos galhos, pensos sobre o rio ou braço de mar, bandos de macacos comiam frutos, careteavam, chiavam, ou guinchavam. Uns debruçavam-se na forquilha para observarem o bote que se aproximava; outros se penduravam pelo rabo em um ramo e ali ficavam a se embalar.

Quanto o bote abicou no areão, diversos seres humanos puseram-se a espiar entre os cipós e trepadeiras que, como festões naturais, enredavam as árvores. "A feição deles era serem pardos, à maneira de avermelhados", como, anos depois, escreveria o funcionário Caminha que, de viagem para as Índias, onde ia tomar posse do seu cargo de escrivão da feitoria portuguesa de Calicute, por estas terras arribou na esquadra daquele almirante Gouveia que, mais tarde, se chamaria Pedro Álvares Cabral.

Os marinheiros da proa apoiaram os mosquetes na forquilha, que os acompanhava, e, certamente, disparariam contra os curiosos nativos, se mestre Balasco não interviesse:

- Calma, rapazes! Vejamos, primeiro, se é possível parlamentar com esses índios. Digo índios porque eles lembram os habitantes da Índia.

Os marujos abaixaram os canos prontos a cuspir fogo e os silvícolas, tendo interpretado que a sua intenção era pacífica, começaram a aparecer pelo barranco. Tinham a pele mais ou menos acastanhada e viviam quase nus, resguardando-se, apenas, com uma tanga de couro ou de penas. Seus cabelos eram geralmente longos, negros e grossos, aparados na testa. Traziam enfeites de penas na cabeça. Alguns haviam furado o lábio inferior e nele metido um osso de animal ou uma argola. Quando chegaram mais perto do bote, os visitantes observaram que os nativos exibiam no peito, nos braços e nas pernas, tatuagens de garridas cores.

- Somos amigos! - gritou-lhes o transmontano, no desejo de confirmar a sua reputação de poliglota.

Os da terra, porém, não o entenderam. Mas, embora não o entendendo, deram prova de maior confiança. Foram aproximando-se da embarcação e, como crianças curiosas, começaram a pegar para verem os objetos ao seu alcance.

E o Sabença insistia:

- Água fresca, para beber... Assim...

Mais por gestos que por palavras, um dos índios acabou compreendendo a pergunta. Respondeu-lhe, como pode, que água boa e em quantidade, bastante para encher as pipas, os filhos do mar só encontrariam lá longe, num ribeiro que brotava do morro. E explicou:

- Buriquioca! Buriquioca!

Desanimados, os marinheiros resolveram regressar à nau. Antes, porém, mestre Balasco fez desembarcarem os dois degredados e, com certa emoção, desejou-lhes melhores dias na existência que iam iniciar. Eles galgaram o barranco e, como não tivessem nada de melhor a fazer, penetraram na floresta. Vendo-os partir, Sabença, inesperadamente, lembrou-se de alguma coisa: apanhou a guitarra e saiu empós deles:

- João! Duarte!

Não obtendo resposta, pôs-se a correr para alcançá-los, desaparecendo em terra. O bote ali permaneceu quase uma hora, à sua espera, mas, como o flaviense não voltasse nem desse sinal de si, mestre Balasco ordenou aos tripulantes que tomassem dos remos e os recambiassem para a nau.

No dia seguinte, o mar amanheceu limpo de quilhas e de velas. Mas, no Novo Mundo, começava a haver portugueses.