Os
dias eram curtos, as noites compridas. A esquadra já não
se dirigia às Índias, a determinado porto. A bombordo, elevava-se
uma serra que, de quando em quando, se fragmentava em morros, para mostrar,
talvez, a foz de largo rio; a estibordo, a terra, como numa sucessão
de ilhas, ia-se tornando cada vez mais azul até se perder de vista
na lonjura.
O litoral do
arquipélago em que acreditava mestre Gaspar era constituído
por lagamares arrepiados de vegetação franzina, de folhagem
cor de azinhavre, agarrando-se, penosamente, ao lodo preto.
Quando João
e Duarte, ao alvorecer, deixaram a alcácema, onde agora dormiam,
as três naus já pareciam imóveis. A sua estava fundeando
a cem braças da costa. À proa, alargava-se uma como embocadura
de rio, entre barrancos cobertos de alta e cerrada floresta.
Bandos de aves
gritadoras de diversos gêneros atravessavam o céu sobre a
abra, toldando por vezes o brilho do Sol. Mestre Gaspar, no castelo de
proa, rodeado de encanecidos capitães, mostrava as cartas e discutia.
Por fim, considerou as nuvens de psitacídeos, abriu os braços
e sentenciou:
- Terra dos
Papagaios!
Ouviam-se o
desenrolar dos cabrestantes, o arrastar dos calabres, o ranger de roldanas
nos cadernais. Os marinheiros arriaram um bote. A seguir, por meio de cordas,
desceram pipas vazias e alcôfas feitas de esparto, estas para transportar
os mantimentos, que porventura encontrassem, aquelas para colher água
fresca nas nascentes dos morros próximos. Levavam, também,
dois mosquetões para o que desse e viese, embora os marinheiros
estivessem armados com os punhais que usavam à cinta.
Depois da primeira
refeição, constituída de bolachas emboloradas - pois,
meses antes, a tempestade penetrara nos paióis -, regadas com canecos
de zurrapa, quatro remadores tripularam a embarcação. Para
a mesma, desceram os presos, que iam ser mandados à sua sorte, e
o Sabença, que se gabava de falar diversas línguas. No fim,
embarcou mestre Balasco, no caso, representando a Justiça d'El Rei.
Com lentas
e fundas remadas, o bote rumou para a barca, aproximando-se das ribas ásperas,
onde algumas estrelas de coqueiros dominavam a mata inextricável.
Já próximos de terra, os viajantes começaram a ouvir
as vozes das aves, o zinido das cigarras e a harmonia do vento noroeste,
que agitava a folhagem. Nos galhos, pensos sobre o rio ou braço
de mar, bandos de macacos comiam frutos, careteavam, chiavam, ou guinchavam.
Uns debruçavam-se na forquilha para observarem o bote que se aproximava;
outros se penduravam pelo rabo em um ramo e ali ficavam a se embalar.
Quanto o bote
abicou no areão, diversos seres humanos puseram-se a espiar entre
os cipós e trepadeiras que, como festões naturais, enredavam
as árvores. "A feição deles era serem pardos, à
maneira de avermelhados", como, anos depois, escreveria o funcionário
Caminha que, de viagem para as Índias, onde ia tomar posse do seu
cargo de escrivão da feitoria portuguesa de Calicute, por estas
terras arribou na esquadra daquele almirante Gouveia que, mais tarde, se
chamaria Pedro Álvares Cabral.
Os marinheiros
da proa apoiaram os mosquetes na forquilha, que os acompanhava, e, certamente,
disparariam contra os curiosos nativos, se mestre Balasco não interviesse:
- Calma, rapazes!
Vejamos, primeiro, se é possível parlamentar com esses índios.
Digo índios porque eles lembram os habitantes da Índia.
Os marujos
abaixaram os canos prontos a cuspir fogo e os silvícolas, tendo
interpretado que a sua intenção era pacífica, começaram
a aparecer pelo barranco. Tinham a pele mais ou menos acastanhada e viviam
quase nus, resguardando-se, apenas, com uma tanga de couro ou de penas.
Seus cabelos eram geralmente longos, negros e grossos, aparados na testa.
Traziam enfeites de penas na cabeça. Alguns haviam furado o lábio
inferior e nele metido um osso de animal ou uma argola. Quando chegaram
mais perto do bote, os visitantes observaram que os nativos exibiam no
peito, nos braços e nas pernas, tatuagens de garridas cores.
- Somos amigos!
- gritou-lhes o transmontano, no desejo de confirmar a sua reputação
de poliglota.
Os da terra,
porém, não o entenderam. Mas, embora não o entendendo,
deram prova de maior confiança. Foram aproximando-se da embarcação
e, como crianças curiosas, começaram a pegar para verem os
objetos ao seu alcance.
E o Sabença
insistia:
- Água
fresca, para beber... Assim...
Mais por gestos
que por palavras, um dos índios acabou compreendendo a pergunta.
Respondeu-lhe, como pode, que água boa e em quantidade, bastante
para encher as pipas, os filhos do mar só encontrariam lá
longe, num ribeiro que brotava do morro. E explicou:
- Buriquioca!
Buriquioca!
Desanimados,
os marinheiros resolveram regressar à nau. Antes, porém,
mestre Balasco fez desembarcarem os dois degredados e, com certa emoção,
desejou-lhes melhores dias na existência que iam iniciar. Eles galgaram
o barranco e, como não tivessem nada de melhor a fazer, penetraram
na floresta. Vendo-os partir, Sabença, inesperadamente, lembrou-se
de alguma coisa: apanhou a guitarra e saiu empós deles:
- João!
Duarte!
Não
obtendo resposta, pôs-se a correr para alcançá-los,
desaparecendo em terra. O bote ali permaneceu quase uma hora, à
sua espera, mas, como o flaviense não voltasse nem desse sinal de
si, mestre Balasco ordenou aos tripulantes que tomassem dos remos e os
recambiassem para a nau.
No dia seguinte,
o mar amanheceu limpo de quilhas e de velas. Mas, no Novo Mundo, começava
a haver portugueses. |