Apêndice C
[*]
A FEBRE AMARELA DO BRASIL
(Escrito para O Brasil e os Brasileiros por A. R. Egbert, M. D.)
Numa obra da natureza desta, seria evidentemente descabida uma dissertação médica minuciosa
acerca da febre amarela do Brasil; entretanto, numa obra referente a esse país, torna-se necessário um breve esboço de semelhante doença.
Devido à sua situação peculiar, quem não esteja ao par das coisas do Império do Brasil há de naturalmente supor que aí existam em abundância, como
nos demais países tropicais, condições adversas em relação à vida dos estrangeiros. Tal fato não se dá, porém; muito pelo contrário.
Situado imediatamente sob a linha do Equador, o Brasil é, devido à sua situação, singularmente brando
e saudável quanto ao clima. Este é delicioso e, principalmente ao longo da costa, temperado por fresca e incessante brisa; quanto ao interior, a
altitude compensa a proximidade do equador, demonstrando assim que um clima não deve ser apenas julgado pela latitude. Tudo isso vem mostrar por que
motivo o Brasil tem-se mantido tão livre desse "terrível flagelo" que é a febre amarela.
Como as demais epidemias, a origem da febre amarela se perde na noite dos tempos. Esses gigantes devastadores das nações não tiveram narradores que
descrevessem as suas origens e princípios. Alguns médicos julgam poder encontrar nos escritos de Hipócrates as primeiras descrições da febre
amarela; mas esquecem eles que os sintomas característicos em que se baseiam para estabelecer-lhe a identidade — os vômitos negros e a amerelidão da
pele — não são de modo algum peculiares à moléstia em questão.
A opinião que prevalece entre aqueles que investigaram o assunto é que a moléstia é de origem
moderna; e alguns fatos parecem relacioná-la com o tráfico dos escravos. Não resta dúvida que fez a sua aparição nos Estados Unidos simultaneamente
com semelhante tráfico, estando alguns profissionais do Sul desse país convencidos de que a febre amarela, como os negros, foi importada da África.
As nossas mais longínquas informações a respeito dizem-nos que foi o padre Dutertre o primeiro autor que aludiu a esse "terrível flagelo das costas
ardentes do Atlântico". Viu-o, em 1635, nas Antilhas, e afirma expressamente que antes dessa data ele era desconhecido nessas ilhas. Em 1647 invadiu
Barbados. O padre Labat viu-o devastando a Martinica em 1649. A primeira vez que essa epidemia ocorreu em terras dos Estados Unidos foi em 1693, na
cidade de Boston. Desde então passou a ser, desgraçadamente, por demais conhecida dos nossos antepassados em toda a costa atlântica.
No Brasil, apareceu pela primeira vez em dezembro de 1849, ou janeiro de 1850, tendo feito as suas maiores devastações nas províncias litorâneas em
1850. Mostrou-se particularmente violenta nas cidades do Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Pernambuco/Recife escapou.
Embora sérios, os seus efeitos foram exagerados pelas narrativas. Em todo o Império do Brasil, cuja
população era superior a sete milhões de habitantes, houve apenas, causadas por essa epidemia de 1850, 14 mil mortes e, segundo os relatórios
oficiais, não se contaram quatro mil óbitos por febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, que conta uma população de 300 mil habitantes.
Os drs. Paulo Cândido e Meireles/Paula Cândido e Meireles, que gozam do mais alto prestígio em sua
classe, corroboram esses dados. O dr. Lallemant, eminente profissional alemão de vasta clínica no Rio, parece-nos exagerar o número de casos e de
óbitos: dá cem mil casos de febre amarela com dez mil fatais — algarismos que parecem estar em desacordo com os fornecidos por outras fontes
igualmente merecedoras de fé.
Porém, admitindo mesmo os algarismos do dr. Lallemant, pode-se verificar quanto a mortalidade foi
menor do que em Nova Orleans, cidade que conta um terço da população do Rio, e na qual, em agosto de 1853, 5.269 morreram de febre amarela. E ainda
se considera a capital do Brasil como o lugar mais insalubre do mundo! De acordo com o dr. Lallemant, morreram 475 pessoas no Rio em 1851; 1.943, em
1852; 853, em 1853, e apenas quatro em 1854. Em 1857, somente algumas dezenas de casos se deram, cujo número exato não temos em mão.
Em 1854, a doença havia completamente desaparecido; apenas surgiram alguns casos nos princípios de 1857, que cessaram no mês de março do mesmo ano.
Pouco se duvida que a causa da febre amarela seja peculiar e específica. Grandes divergências, porém, existem sobre a natureza dessa causa. Alguns a
consideram um ser microscópico, organizado, vivo; outros, uma espécie de fermento. Fortes razões se aduzem em favor de ambas as teorias, porém nada
de positivo e definido se sabe relativamente à natureza de semelhante causa.
Quanto a saber se a doença é ou não contagiosa, divergem as opiniões mais autorizadas. Começa, porém, a prevalecer agora a opinião de que não é
contagiosa; e a força das provas manifesta-se a favor deste ponto de vista.
A febre amarela apresenta grande diversidade de sintomas, ocasionados por várias influências, assumindo aspecto particular de acordo com as
circunstâncias de seu aparecimento — escorbútica, tífica, etc.
(Seguem-se os sintomas, e o autor prossegue na sua apreciação).
Esses sintomas duram geralmente de algumas poucas horas a três dias, passando então a declinar
e deixando o paciente animado e esperançoso. É um alívio enganador que se continua de algumas horas a um dia.
Sobrevêm então grande fraqueza e prostração. Em casos graves, essa fraqueza é extrema: o pulso
apressado, irregular e fraco; a pele amarela, alaranjada, ou de aspecto bronzeado; o sangue parece parar nos capilares, e as partes correspondentes
do corpo, bem como as extremidades, tornam-se arroxeadas escuro. A língua se mostra muitas vezes pardacenta e seca na porção central, ou então lisa,
avermelhada e fendida, com feridas às vezes entre as gengivas e os dentes.
O estômago readquire a sua excitabilidade e aparecem os vômitos negros. Os intestinos dão passagem
e descarregam frequentemente grande quantidade de matéria negra, semelhante à expelida pelo estômago. Dando-se também hemorragias por várias partes
do corpo; sobrevêm, então, um delírio fraco, desprendendo-se de todo o corpo um cheiro desagradável; os olhos ficam fundos e o semblante se abate,
sobrevindo depois a morte, muitas vezes serena porém algumas vezes entre convulsões.
Em certos casos, os doentes morrem de febre amarela sem apresentarem vômitos negros, amarelidão da pele ou hemorragias.
Em lugar de apresentar esse curso fatal, o organismo muitas vezes reage após o período de prostração, e surge uma febre secundária, que pode
apresentar diferentes graus de violência. Segue-se um período de tempo variável, algumas vezes levando a uma cura rápida, outras vezes
continuando-se numa forma tifóidica, que pode terminar, com vários resultados, em duas, três ou mais semanas. Nos casos graves, a convalescença e
sempre extremamente demorada; sendo o doente frequentemente incomodado por feridas demoradas e de mau aspecto em várias partes do corpo.
Em alguns casos, as funções de relação parece conservarem-se quase inalteradas no começo. O
paciente pode andar pelas ruas e nada chama a atenção sobre o seu caso, a não ser, talvez, uma expressão fora do comum da sua fisionomia.
Examinando-se-lhe o pulso, este apresentava-se extremamente fraco, se não totalmente ausente. Seguiam-se os vômitos e a morte rapidamente. Esses
casos eram denominados "itinerantes" (walking cases).
Os modos de tratamento são muitos e os mais diversos, às vezes sem a menor aplicação ao caso.
(Como o tratamento da febre amarela nos Estados Unidos vem tratado em obras ao alcance de
todos, julgou-se melhor não referi-lo nesta obra, e somente dar a público o processo brasileiro descrito pelo dr. Egbert como o empregado por um dos
mais conceituados médicos do Império. — J. C. F.).
A prevenção contra a doença é naturalmente mais importante do que o seu próprio tratamento. As
pessoas que não podem abandonar os lugares dominados pela febre amarela devem escolher a sua moradia nos pontos mais altos e saudáveis; devem dormir
nos cômodos mais altos da casa; devem evitar o sereno da noite; abster-se de exercícios fatigantes; expor-se a mudanças de temperatura; fazer dieta
nutritiva e sadia, porém não excitante e, quando obrigado a penetrar em ambiente conhecido como infeccionado, cuidar de não o fazer com o estômago
vazio ou o corpo enfraquecido por transpiração ou fadiga.
De acordo com as maiores autoridades médicas dos Estados Unidos, os cuidados para evitar a doença tais como dieta rigorosa, sangria, purgação ou uso
de mercúrio, são inúteis, se não prejudiciais; enfraquecem o organismo, e quanto mais fraco menos este resiste à entrada do veneno, ou à sua
influência depois de absorvido.
O seguinte modo de tratamento é o recomendado e seguido pelo dr. Paula Cândido, do Rio de Janeiro, e tem-se mostrado em suas mãos grandemente
eficiente.
"A primeira coisa a fazer é limpar o canal digestivo. Óleo de rícino, em doses de 2,4 ou mais
onças, deve ser administrado sem tardança, seja qual for o estado do doente. Se ele obstinadamente rejeita esse medicamento, empregar citrato de
magnésia ou sais neutros em dose suficiente para produzir oito evacuações. Esse efeito deve ser mantido durante os dias subsequentes, porém com
crescente moderação.
"Nenhuma matéria estranha nem secreções intestinais devem ser deixadas ficar no canal digestivo,
pois tornam-se focos de substâncias venenosas. O torpor dos intestinos leva a tentar outros recursos além dos purgativos: torna-se necessário
administrar clisteres, fazendo eu uso da seguinte combinação:
R — |
Sumo exprimido de persicária, cortada em pedaços e posta em infusão n'água |
2 lbs. |
|
Sumo de limão (casca e polpa cortadas e esmagadas) |
4 oz. |
|
Sulfato de sódio |
4 oz. |
|
Alóes Socotrina |
4 oz. |
|
Cânfora e sulfato de quinina, cada |
1 dracm. |
M — |
Saturado com sal de cozinha. Q. S. para dois ou três clisteres. |
|
"Caso não se possa conseguir persicária, pode ser substituída pela mesma quantidade de infusão de
camomila, folhas de laranja, ou água do mar.
"Essas lavagens devem ser dadas de duas em duas horas, o mais quente possível são imediatamente rejeitadas, porém seguidas de abundante
transpiração; seu emprego deve ser continuado.
"Sinapismos quentes na sola dos pés, nos joelhos e nas coxas, devem ser empregados desde o começo, juntamente com os seguintes remédios,
repetindo-se até que a febre decresça.
"Friccionar toda a superfície do corpo, principalmente o abdome, as virilhas, as axilas e os braços com a seguinte mistura:
R — |
Vinagre canforado |
1 lb. |
|
Sulfato de quinina |
2 dracrn. |
|
Tintura de quinina |
2 oz. |
|
Creosoto |
1 dracm. |
"Um dracma de creosoto em meia libra de espírito de vinho, para esfregar o abdome, os braços e os
flancos, é um excelente meio de provocar a transpiração e produzir outros efeitos. Essas fricções devem ser feitas embaixo das cobertas a fim de não
resfriar o doente, devendo ser feitas nas três ou quatro horas seguidas. Além da ação antisséptica, provocam transpiração.
"Infusão fraca de borragem, adocicada, de hora em hora, muito quente, preparando-se cada infusão na ocasião de ser tomada; ou então de água gomada
quente.
"Se não se der a transpiração em duas ou três horas, deve-se recorrer à tintura de acônito ("cabeça de frade"), 1 dracma, em duas libras d'água,
tomando-se uma colher de quarto em quarto de hora, sem interromper as outras medicações.
"Além disso, devem ser administrados, quatro horas depois das evacuações, em uso interno, os seguintes cloretos:
R — |
Água de Labarraque |
2 dracmas |
|
Água destilada, levemente acidulada com ácido muriático |
1/2 garrafa |
M — |
|
|
"Tome três colheres dessa mistura em meio copo d'água, ou simplesmente uma colher de água de
Labarraque num copo d'água, tomando uma colher dessa solução de quarto em quarto de hora ou de meia em meia hora.
"Nunca se deve misturar açúcar com água de Labarraque. Deve ser misturada com cloro, facilmente reconhecível pelo cheiro, e conservada fora da luz.
"Para as pessoas mais delicadas, a dose deve ser mais fraca. Todas essas medicações devem ser contínuas; umas não se opõem às outras.
"Ao fim de 24 horas, a doença geralmente vai cedendo; os medicamentos não devem, porém, ser interrompidos, mas apenas menor o seu emprego ou maiores
os intervalos.
"Alívios, ou aquela calma aparente acima referida, que tantas vezes têm sido assinalados como precedendo a morte, derivam-se da reabsorção das
secreções abdominais. A medicação, portanto, deve ser contínua.
"Não dou permissão para tomar caldos, laranjas, vinho, ou qualquer outra coisa até passado dois dias depois de terem desaparecido os sintomas e
quando o número de pulsações tenha baixado a 40.
"Tenho lançado o recurso às vezes de sialagogas para a secreção da saliva, tais como gengibre, canela, raiz de alcaçuz, conservadas na boca.
Aconselho os fumantes a que fumem charutos.
"Tônicos, principalmente os preparados de quinina, são muito úteis em pequenas doses repetidas quando apenas subsiste a fraqueza.
"Devo acrescentar que, no caso de apresentar-se o terrível sintoma da supressão da urina, dou ao doente uma dracma de nitrato de potassa dissolvido
numa garrafa d'água, para tomar meio cálice de meia em meia ou de quarto em quarto de hora; clisteres de uma onça de vinagre canforado em duas
xícaras de água morna; fricções do mesmo vinagre ou óleo de amêndoas canforado no abdome, repetidas com pequenos intervalos.
"Não tenho fé em sangrias, sanguessugas, ventosas, calomelanos, quinina em uso interno, amônia, láudano, ópio, arsênico, terebintina, nitrato de
prata, gelo, banhos quentes ou frios, etc.".
O tratamento do Dr. Paula Cândido difere essencialmente dos prescritos pelos médicos mais
conhecidos dos Estados Unidos. Difere também do que é seguido nas Índias Ocidentais. A razão dessa divergência, presumo eu, é o caráter diferente
que a febre amarela apresenta no Brasil.
A febre amarela fez a sua primeira visita ao Brasil em 28 de dezembro de 1840 e manteve-se neste país desde então até março de 1854; em dezembro de
1857 apareceu de forma atenuada, desaparecendo em abril.
A tabela que se segue contem os dados oficiais do número de óbitos no Império e na Capital, onde se apresentou com a máxima gravidade, ano por ano:
Óbitos |
|
População |
em 1850 |
51 |
52 |
53 |
54 |
Império |
7.000.000 |
14.000 |
8.719 |
9.527 |
8.531 |
- |
Rio de Janeiro |
300.000 |
3.827 |
475 |
1.943 |
853 |
4 |
Esta tabela demonstra que a doença foi relativamente benigna, sendo pequena a porcentagem.
(Segue-se um trecho extraído do Relatório do Ministro do Império, 1855).
Obras e publicações consultadas pelo autor do artigo
acima:
Medical News and Library, 1853 e 1854.
Practice of Medicine Wood.
"New Orleans Medical and Sulgical Journal" 1853.
"Relatório do Ministro do Império do Brasil".
"Harper's New Monthly Magazine", 1857.
Sketches of Brazil (estudo médico), Robert Dundas, Sup. Hosp. Brit. da Bahia.
"Conseils contre la propagation de la fièvre jaune", Dr. Paula Cândido, do Rio de Janeiro.
"Relatório" do Dr. Lallemant, do Rio de Janeiro.
[*]
Nota do tradutor:
Não foi incluído o Apêndice 1, que é um artigo publicado no "Anglo-Brazilian Times", de 24
de out. 1865, sobre Desavenças Religiosas. |