O maço de três homens
Imagem: reprodução da página 96 do 1º volume da edição de
1941, da Cia. Editora Nacional
Capítulo VI
Praia do Flamengo.
A minha residência no Rio era na Praia do Flamengo, — assim denominada por ter sido em tempos primitivos frequentada por essas lindas aves. Imagine
o leitor as praias de Newport, Rhode Island, ou a de Hastings, famosa pela memorável batalha, transferidas para os perímetros urbanos de Londres ou
Nova York, de modo que, tomando-se um ônibus em Charing Cross ou Union Square, em quinze minutos se esteja sobre alvíssimas areias e em presença das
grandes ondas do mar, e fará uma ideia do que seja a Praia do Flamengo.
Entrando-se numa das "Gôndolas Fluminenses", no Largo do Paço, depois de
barulhentamente percorrer algumas ruas, encontra-se a gente junto ao Morro da Glória, onde, se deseja uma excursão morro acima, desce-se da condução
e passeia-se por uma estrada que percorre pitorescas alturas, sentindo-se desde logo a brisa fresca que sopra do mar; ou, se prefere um passeio mais
plano, salta-se na Rua do Príncipe [T25].
As rodas e as vozes igualmente barulhentas, impediram que até então quaisquer outros sons ocupassem
a nossa atenção; porém agora o majestoso choque das ondas vem ferir o nosso ouvido. Assombra-nos a vista o espetáculo dessas ondas quando, como
monstros crispados e espumantes, se erguem em sua violência e parecem dispostas a devorar toda a linha de construções na sua furiosa arremetida. O
próprio solo treme a nossos pés, e o ar vibra com suas poderosas pancadas. Mas não há perigo a temer. O litoral, a poucos pés de distância da areia,
é guarnecido de rochedos e, ao longo de toda a praia o governo e os particulares mandaram construir fortes muralhas de pedra.
Assim mesmo, às vezes, o velho Netuno afirma seus direitos com tão tremenda energia, que os blocos
dos rochedos, pesando toneladas, têm sido arrastados do seu enrocamento. Em maio de 1853, um temporal durou vários dias, tendo-se levantado um vento
forte que atuando sobre as ondas do oceano dirigiu-as de encontro à muralha protetora, e o embate foi o mais forte a que assisti na natureza em
luta.
Quando batiam de encontro ao paredão, erguiam-se as ondas a oitenta pés de altura, varrendo e
alagando as vivendas pintadas de cores alegres e, ao mesmo tempo, no recuo, solapando a face da muralha do lado da terra, de tal forma que, numa
extensão de centenas de pés entre a Rua da Princesa e a do Príncipe, a municipalidade teve que encarregar de pesada tarefa certos empreiteiros de
sua preferência.
(O calçamento das ruas foi uma infalível fonte de diversão para mim durante o meu primeiro ano de
residência no Rio. Veja-se, na figura, os calceteiros trabalhando na Rua São José. O maço de calçar é o pilão-de-três
homens, de que nos fala Shakespeare. Um trio de escravos é chamado para pôr mãos à obra entoando um solo executado com um malho batendo numa
barra de ferro.
Os três seguram o maço: um deles — o maestro, reconhecível pelo chapéu — geme uma cantiga,
que os outros acompanham em coro, ao mesmo tempo em que suspendem o maço do solo deixam-no cair pesadamente. Segue-se um descanso de alguns momentos
e, em seguida, a cantiga, o coro e a pancada sobre as pedras se repetem: mas, como bem se pode imaginar, as ruas do Rio de Janeiro não são calçadas
depressa).
Os estragos causados na Praia do Flamengo exigem mais de um ano de reparos. Uma luta entre o mar e
a terra, como a de 1853, não ocorre frequentemente: a regra é a paz e a amabilidade, pois as próprias ondas maiores, que parecem espumar tão
furiosamente, brincam apenas em gigantesca diversão e, ao tocarem as miríades de grãos de areia, beijam-nos o mais gentilmente possível, e recuam
até de novo misturarem-se às suas turbulentas companheiras.
Esplêndido panorama.
Em frente à minha morada, veem-se a baía até Jurujuba e Praia Grande [T26],
e domina-se um panorama de toda a extensa Praia do Flamengo, do Posto Sinaleiro da Babilônia, o escarpado Pão de Açúcar e a entrada da baía. Ao
longe, veem-se nesta, ilhas verdejantes e, no último plano, domina a altaneira Serra dos Órgãos, ora iluminada pelo sol, ora meio encoberta de
neblina, porém constituindo sempre o mais grandioso aspecto da paisagem.
Da minha janela dos fundos, à direita, posso observar a íngreme encosta Sul do Morro da Glória e, à
esquerda, por cima dos tetos de telha vermelha, ergue-se o alto Corcovado, cuja vertente voltada para a cidade é coberta de florestas.
Um homem que manda cortar uma palmeira.
Junto de nós, ao meu lado, no jardim de meu vizinho, um laborioso português, vindo de Braga. Esse homem começou sendo um desses ignorantes e pobres
trabalhadores da mãe-pátria, que no Brasil e em outros países, à custa de muita economia e regularidade de vida, adquirem propriedades, mas
raramente bom gosto.
Tinha no centro de seu jardim uma bela e altiva palmeira. Durante sucessivas noites, estive ouvindo
a música da fresca brisa da tarde brincando em suas longas e franjadas folhas. A vista dela era verdadeiramente refrescante quando os raios do sol
ao meio-dia faziam vibrar o ambiente. Era um "pedaço de beleza", um "regalo", mas não "para sempre".
Um dia, de manhã bem cedo, ouvi o bater do machado; correndo à janela, vi o sr. M. dando ordens a
um preto que, com vigorosos golpes, enterrava o instrumento cortante dentro do caule da nobre árvore, e cada golpe sucessivo fazia tremerem o
gracioso cimo e os frutos pendurados da palmeira.
"O implacável
machado que desbasta o argênteo tronco
Corta os laços que, como trepadeiras, ligavam
O meu amor a essa árvore; e quando ela tomba no solo
Meu coração tomba com ela.
Ó lenhador, poupa essa árvore".
Esses versos, cantados por um anjo, não teriam feito cessar a obra de destruição; e a rainha das
florestas tropicais caiu sob ignominiosas mãos. O sr. M, o regicida, dirigiu-se essa manhã para o seu armazém de "toucinho" e "carne-seca", da Rua
do Rosário, congratulando-se consigo mesmo, enquanto enche as ventas com uma pitada de "areia-preta", de ter conquistado um pouco mais de terra
batida de sol para os seus canteiros de couve, derrubando uma palmeira que só um século poderia reproduzir.
Noite de luar no Flamengo.
À noite, a vista da varanda em frente da minha casa é a mais encantadora possível. Nas noites claras, o céu se mostra iluminado pelo Cruzeiro do
Sul, por Orion e outras brilhantes estrelas; e às vezes, quando as nuvens escondem as luzes menos celestiais, o seio da baía parece um mar de fogo.
O mais esplendoroso espetáculo noturno é, porém, contemplar a lua cheia erguendo-se acima dos
morros coroados de palmeiras que ficam para os lados da Baía de São Francisco Xavier. Suaves raios de luz anunciam a aproximação da rainha, e pouco
depois a sua forma completamente redonda, emergindo, espalha sobre as águas distantes de Jurujuba seus argênteos reflexos, enquanto as vagas que
banham toda a extensão da Praia do Flamengo parecem suntuosos festões bordados de luar.
Os tigres.
Estamos no auge da admiração; talvez mesmo repetindo
"Numa noite como
esta..."
e pensando em alguma coisa como castas Dianas "que
se movimentam em nossa imaginação, livremente divagando", quando somos bruscamente chamados à
triste realidade de que estamos neste mundo sublunar. Saímos às pressas da varanda, para apanhar um frasco de água da colônia, bouquet,
amônia, ou outra coisa qualquer que nos socorra o olfato.
Os tigres [A14]
também têm direito a contemplar a lua que se levanta. Batendo oito horas da noite, essas odoríferas — para não dizer selvagens — feras descem
correndo a Rua do Príncipe e, pelo espaço de duas horas, tornam a noite uma coisa apavorante, não pelos seus rugidos, mas com perfumes que
certamente foram importados da Arábia Infelix.
Conta-se ao estrangeiro recém-chegado ao Rio uma curiosa anedota acerca de um fluminense que, visitando Paris, adoeceu gravemente. Todos os recursos
médicos lhe foram aplicados em vão, até que foi chamado um médico francês bem familiarizado com a capital do Brasil que, prontamente, opinou ser
impossível esperar salvar o paciente, salvo se este pudesse respirar de novo o seu ar nativo; mas, como não podia regressar ao Rio, o médico
prescreveu que se queimasse no quarto do doente uma cocção composta dos mais desagradáveis cheiros. Para encurtar a história, o doente se salvou!
Na data em que escrevemos estas linhas, semelhante contratempo é mais tolerável do que antigamente, pois adotaram-se barris hermeticamente fechados,
que são recolhidos por carroças durante o dia, sendo o seu contendo levado para pontos distantes da cidade. Em breve o Rio contará com um bom
serviço de esgoto, cujos planos já foram submetidos ao ministro do Império em 1854. Quando isso tiver sido executado, nenhuma outra cidade tropical
ultrapassará o Rio como cidade agradável e sadia para se morar. (1865: a Rio City Improvements Company está realizando o serviço).
A Praia do Flamengo, salvo esse atraso que se nota quando o vento está em direção desfavorável, é um dos mais deliciosos arrabaldes para um
estrangeiro residir. Uma hora depois dos tigres terem terminado a sua tarefa, o ambiente fica livre de todo cheiro desagradável como se apenas a
fragrância das laranjeiras em flor viesse da Glória e dos jardins da vizinhança; e a manhã desponta sobre uma praia toda branca.
Banhos de mar.
Durante cinco meses no ano, a Praia do Flamengo é o ponto escolhido por ambos os sexos para banhos de mar. Na estação dos banhos (de novembro a
março), assiste-se todas as manhãs a cenas cheias de vida. Antes que o sol desponte acima dos morros, uma fila de homens, mulheres e crianças desce
as ruas para tomar banho nas claras águas salgadas da baía.
As senhoras que vêm de lugares mais distantes se fazem acompanhar de escravos, que carregam as
barracas, armando-as na praia; as senhoras vestem então as suas roupas de banho e soltam suas longas tranças pretas. Homens e mulheres, de mãos
dadas, entram no espumoso elemento e, assim, os que não são bem adestrados em natação podem resistir ao embate das ondas mais fortes que caem sobre
eles.
As senhoras se mostram elegantemente vestidas, com roupas feitas de um tecido escuro; mas não
exibem o coquetismo das praias de banho francesas, em que as damas estudam a vestimenta que devem pôr no mar com o mesmo apuro que o fazem para um
salão de baile. Os cavalheiros são obrigados pelo regulamento da polícia a se vestirem decentemente, o que até agora não tem impedido de nadar os
que preferem esse exercício às "duchas" das ondas.
É divertido verem-se as moças e os rapazes brasileiros entregando-se, pelo menos uma vez, a alguma atividade, — correndo pela praia, soltando gritos
de prazer toda vez que uma onda mais pesada rola por cima de um grupo e os atira cambaleando por sobre a areia. Os banhistas derrubados fincam os
pés nervosamente na areia, para não serem arrastados pelo recuo das ondas. De vez em quando, algum gaiato grita: "Tubarão! tubarão!", molhando as
senhoras, para provocar o riso dos garotos que o grito despertou. Costuma-se contar certos feitos desses canibais de pele áspera, mas nunca ouvi
falar de um caso autêntico de banhista da Praia do Flamengo que tenha servido de repasto aos temíveis "lobos-do-mar".
Às sete horas, já o sol está alto, e toda a movimentada multidão foi-se embora. Veem-se, ainda, porém, algumas cabeças crespas balançando-se aqui e
ali no seio das ondas, seus cabelos lanosos desafiando o medo do coup de soleil. As pretas que acompanham as senhoras geralmente entram
n'água ao mesmo tempo que as suas amas. Nas noites de luar, o mar se anima com vários pontos pretos, que são as cabeças dos escravos da redondeza,
que se espanejam n'água, rindo e gritando à vontade. Todos eles nadam notavelmente bem, e dá satisfação ouvir as suas vozes satisfeitas, soltas
alegremente como se não conhecessem tristezas.
Os habitantes do Rio têm paixão pelos banhos de mar, e são por isso chamados "cariocas", que alguns traduzem por "patos". Muitas
pessoas andam milhas para tomá-los. Há um flutuante para banhos no interior do porto, não longe do Hotel Pharoux, para aqueles que têm a coragem
necessária para afrontar o elemento que aí chamam de água salgada, mas que, para um narrador fiel, devido ao sistema improvisado de esgotos, deve
ser estigmatizado por um nome bem diverso.
Não são os bípedes os únicos animais que gozam dos benefícios das abluções na Praia do Flamengo. Os cavalos e as mulas têm, reservados para eles,
certos trechos da praia, onde nas primeiras horas da madrugada são lavados e escovados. É reconfortante saber que as pobres criaturas têm essa
oportunidade de lavar-se, pois do contrário muito sofreriam com a preguiça dos seus tratadores. Os senhores que têm cuidado com os seus cavalos
esforçam-se por encontrar empregados de cavalariça ingleses, por serem os pretos proverbialmente maus tratadores de animais. Os belos cavalos
importados do Cabo da Boa Esperança ficam logo avariados nas mãos de um preto.
Julga-se que o clima do Brasil lhes é desfavorável e custa-se a acreditar que
semelhantes animais, gordos e frágeis, sejam da mesma raça, meio sangue inglês, meio árabe, que no Cabo da Boa Esperança aguentam uma viagem de 60
ou 70 milhas por dia sem outro alimento senão uma ração de aveia, seguida de um giro sobre terreno arenoso
[A15]. Para uso comum,
os cavalos do país são melhores, mas não são tão ágeis e elegantes como os importados.
O Morro da Glória.
A poucos passos da minha porta, está a entrada do lado Sul para a Glória. Aí, quando o mar não está muito forte, podem atracar as embarcações, sendo
muitas vezes as nossas noites animadas pela presença de inteligentes oficiais de marinha dos navios de guerra cujo ancoradouro é do outro lado da
Fortaleza de Villegagnon.
Uma vez entrando-se no portão que fica ao pé do morro, vê-se um trecho estreito e plano de terra, ocupado por uma ou duas residências isoladas e um
belo jardim particular cheio de flores. A base da escura rocha, que se ergue verticalmente na face que dá para o mar, é escondida por grandes
bananeiras balouçantes e trepadeiras penduradas. O alto do morro apresenta uma vista variada, onde, como que num tabuleiro de xadrez, se misturam
aspectos urbanos e campestres.
Passagens estreitas circundam o morro em diferentes altitudes, levando a muitas belas residências e
jardins de que o morro está coberto até em cima. De ambos os lados dos caminhos, veem-se cerradas sebes de mimosas floridas, altivas palmeiras e os
singulares cajueiros, com seus frutos refrigerantes em forma de garrafa, assim como outras árvores copadas, com esplêndidas parasitas penduradas,
reinando em todo o ambiente uma quietude e um frescor, que dificilmente se poderia esperar dentro do recinto de uma cidade situada sob um sol
tropical.
A mais linda residência do morro é a do cônsul inglês, sr. John J. C. Westwood, cavalheiro que mais vi cooperar em todas as obras de caridade ou
beneficência que lhe fossem dadas conhecer. O sr. Westwood faleceu em 1864.
Entre os moradores do Morro da Glória, figuram duas famílias (de ingleses e suíços), que, pelo seus gostos e preocupações, se colocam muito além da
classe de meros negociantes tão frequentemente encontrados num país estrangeiro. Em sua agradável companhia, sentia-se a gente às vezes consolado da
ausência da família tão distante além dos mares. O amigo inglês era um naturalista amador de primeira qualidade, possuindo ambas as famílias os
melhores periódicos e livros de literatura geral ingleses e franceses. Após as fadigas do dia, era um delicioso descanso passar as tardes em tal
companhia, cercado de um panorama tão grandioso.
Em muitas noites de luar, pude penetrar no sentimento que, anos antes, o dr.
Kidder experimentou, podendo, como ele, dizer que "desfrutava os encantos de uma cena noturna
descrita assim com tanta felicidade por Von Martius
[T27]".
O morro da Glória visto do Passeio Público
Imagem: reprodução da página 104 do 1º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Cena noturna.
"Uma névoa delicada e transparente se eleva sobre a terra; a lua brilha entre nuvens pesadas e
estranhamente agrupadas. Os contornos dos objetos iluminados por ela são nítidos e bem definidos, enquanto um mágico lusco-fusco parece apagar da
vista os objetos na sombra. Apenas ligeira aragem se faz sentir, e as mimosas vizinhas, que enrolaram as suas folhas para dormir, ficam imóveis ao
pé da escura copa das mangueiras, das jaqueiras e das árvores que fornecem os sublimes jambos.
Às vezes sopra um vento brusco, e as folhas suculentas do cajueiro se agitam; as grumixamas e as
pitangueiras deixam cair uma cheirosa chuva de flores cor-de-neve; as coroas das majestosas palmeiras ondulam lentas sobre o teto parado de verdura
que elas dominam como um símbolo de paz e tranquilidade. Os gritos estrídulos das cigarras, dos gafanhotos e das rãs fazem um incessante zunido,
produzindo com a sua monotonia uma agradável melancolia.
Diferentes balsâmicos aromas enchem o ambiente e as flores, abrindo alternadamente suas pétalas, à
noite, deleitam o olfato com seu perfume — aqui os caramanchões de paulínias e suas vizinhas, as laranjeiras - ali tufos espessos de eupatórias, ou
os cachos das palmeiras em flor que, subitamente se abrindo, desprendem as suas flores, mantendo uma sucessão de fragrâncias; enquanto o mundo
vegetal enche a noite de deliciosos odores, iluminado por uma profusão de vaga-lumes que semelham milhares de estrelas errantes.
Brilhantes relâmpagos faíscam incessantemente no horizonte, elevando o pensamento para a alegre
contemplação das estrelas que, cintilando no silêncio solene do firmamento, enchem a alma do pressentimento de maravilhas ainda maiores".
Igreja da Glória.
Muitas vezes, enquanto apreciávamos o espetáculo tão eloquentemente descrito pelo grande
naturalista alemão, fui despertado das minhas meditações pelo toque dos sinos da igreja da Glória. Se bem que o culto daquele que fez as belezas
naturais que me rodeavam fosse ainda mais sublime do que a simples contemplação do grandioso e maravilhoso no mundo material, ainda assim o som
daqueles sinos me enchiam de penosas reflexões. Em todas as ocasiões que entrei na linda igreja de Nossa Senhora da Glória e vi a multidão ajoelhada
e as provas de um Cristianismo mal compreendido, não pude acreditar que Deus fosse aí cultuado "em espírito e verdade".
No interior da igreja, as paredes octogonais são revestidas, na extensão de alguns pés, por grandes ladrilhos holandeses, representando paisagens e
cenas relacionadas com o paganismo clássico. Acteon e seus cães perseguem a tímida corça ou a célere lebre; Cupido, também, com as suas flechas na
mão, toma parte na função.
No altar-mor, Nossa Senhora da Glória, vestida como uma dama da moda, de laços e sedas, contempla a
cena a seus pés. Recebeu muitas joias de seus devotos, e não há gema cujo custo seja julgado incessivo para merecer os seus favores. Suas mãos estão
cheias de cintilantes anéis, e as mangas de seu vestido são fechadas com botões de diamantes. Seu colo e suas orelhas estão enfeitados com colares
de brilhantes e ricos pingentes. Um imenso broche de diamantes se espalha por todo o seu colo: foi oferecido em promessa à Virgem por dona
Francisca, esposa do príncipe de Joinville, para a esperada recompensa de ver restabelecida a saúde de Sua Alteza.
Os cachos e ondulações de cabelo que circundam a fronte da Nossa Senhora são
também oferendas, cortadas por alguma mãe aflita dos cachos dourados de um filho dileto [A16].
Fusão do cristianismo com o paganismo.
Penetremos na sacristia que fica nos fundos da igreja. Aí podemos apreciar alguns espécimes do que se pode ver em todas as igrejas do Brasil, e que
outrora podia ser testemunhado em quase todos os templos pagãos da antiga Itália, antes de Constantino o Grande.
Dentre todos os aspectos por onde se poderia traçar com segurança a fusão do Cristianismo com o
paganismo, nenhum mais curioso que o processo dos ex-votos. Os antigos, quando afetados de oftalmia, reumatismos, furúnculos, falta de
membros etc., etc., rezavam a seus deuses e deusas para obterem suas curas, oferecendo, para o escrínio da divindade favorita, ou suspendendo junto
a seus altares, placas votivas, em que inscreviam uma descrição da doença e o nome do inválido. Reconhecimentos de gratidão e curas
milagrosas eram assim tornados públicos para a edificação dos crentes e confusão dos incrédulos. Também no Brasil, as igrejas estão cheias de
placas votivas contando as maravilhosas curas de Nossa Senhora e inúmeros santos de nomes complicados.
Os piedosos pagãos não se limitavam apenas a agradecimentos escritos e a descrições das partes
afetadas pelas doenças, porém penduravam em seus templos as produções manuais de seus mecânicos e artesãos, constituídas pelas pinturas e esculturas
de mãos, pernas, olhos, e outras partes do corpo sofredor.
Na Igreja da Glória também se pode ver certa quantidade de modelos em cera de braços, pés, olhos,
narizes, seios etc., etc.. Quando a moléstia é de natureza interna, e a sede da afecção não pode ser modelada, o assunto é representado
generalizadamente por um paciente acamado; o perigo no mar por um naufrágio. Todos proclamam a mesma coisa: — a cura milagrosa operada por Nossa
Senhora e outros santos, através do ex-voto oferecido.
Temos exemplos muito antigos do mesmo modo de proceder entre os pagãos. Os deuses dos Filisteus, que se apossaram em combate da Arca da Aliança,
foram com o seu povo batidos; e quando a arca voltou aos filhos de Israel, os pagãos filisteus fizeram ex-votos de ouro para acompanhar seus
temíveis cativos: (Sam. VI. 4).
O sr. Ewbank, que parece ter dedicado grande atenção à arqueologia e mitologia comparadas, faz a seguinte citação de Tavernier, um dos primitivos
viajantes católicos na Índia: — "Quando um peregrino se dirige a um pagode para a cura de uma
enfermidade, leva consigo uma imagem da parte afetada, feita de ouro, prata ou cobre, e oferece-a ao seu deus".
No segundo volume de Montfaucon (também um escritor católico), há uma longa lista de "ex-votos",
"alguns oferecidos a Netuno para segurança nas viagens, a Serapis para a saúde, a Juno Lucina
para crianças e partos felizes: pinturas de doentes no leito, e de olhos, mãos, membros, bem como placas sem número, oferecidas a Esculápio e outros
santos médicos populares entre os pagãos".
Esse triste espetáculo do moderno paganismo no Rio de Janeiro é algum tanto atenuado pelo fato de, sempre que os ex-votos se encontram nas
igrejas consagradas a Nossa Senhora ou algum santo, a maioria das oferendas se mostram escurecidas e empoeiradas pelo tempo. Às vezes aparece um par
recente de olhos ou de seios, porém tais modelos de cera são menos frequentes na capital que antigamente.
Deve haver entretanto certa procura dos mesmos da parte de certas regiões do Império, pois um terço
dos vendedores de cera e sebo, nos lugares em que tais artigos são encontráveis no Rio, tem uma seção especial de ex-votos em suas fábricas.
Na Tijuca, um plantador, sr. M., informou-me que acabara de visitar um seu vizinho cujo braço ficara tão imprestável que perdera toda a utilidade
para ele, até que um dia foi aconselhado por algum santo vivo a que fosse procurar uma casa vendedora de velas e comprasse um modelo em cera
de seu membro inutilizado para oferecê-lo à Virgem. Não é preciso dizer que o braço ficou inteiramente curado.
Aos sábados, frequentemente eu passeava pelo Morro da Glória, quando voltava dos navios e hospitais, onde fora prestar serviços ou visitar doentes.
Num dia de festa, subi ao morro como de costume, e quando me achava junto à larga plataforma em que assenta a igreja, ouvi compassos musicais que
muito diferiam dos cantos solenes e dos grandiosos cânticos da comunidade Romana. Eram polcas e danças, executadas por uma banda militar
contratada para aquela solenidade! Informaram-me recentemente que esse e outros abusos semelhantes foram remediados pela intervenção direta do
imperador.
Sermões em honra de Nossa Senhora.
O dr. Kidder dá-nos o seguinte relato de algumas práticas religiosas na Glória, que se pode aplicar em geral aos ofícios religiosos nas igrejas do
Brasil:
A pregação não é incluída entre os ofícios semanais da igreja; porém duas vezes ouvi sermões feitos aqui em ocasiões especiais. Um pequeno púlpito
elevado se vê na parte Leste do edifício, intercalado num vestíbulo entre as paredes interna e externa. Neste púlpito, num dos ofícios da Quaresma,
apareceu o pregador, depois de acabada a missa. O público, imediatamente voltou-se para a esquerda do altar-mor, que era para onde a sua atenção se
voltara até então.
O sermão foi apaixonadamente exaltado. No meio, o orador fez uma pausa e, erguendo em sua mão um
pequeno crucifixo de madeira, caiu de joelhos e começou a orar para o mesmo como sendo seu Senhor e Mestre. O público, na maioria ajoelhado em filas
sobre o chão coberto de folhas, curvou a cabeça, parecendo acompanhá-lo em sua devoção. O padre prosseguiu e, terminado o sermão, todos começaram a
bater nos peitos, como que imitando os antigos publicanos.
Festa da Glória
Numa outra ocasião, o discurso foi na festa anual de Nossa Senhora da Glória e foi todo uma apologia do caráter da santa. Haviam procurado um dos
mais populares pregadores da época, e ele parecia estar inteiramente convencido de ter um tema capaz de lhe proporcionar ilimitados recursos. Não
saiu dos superlativos: "As glórias da Sacratíssima Virgem não são para ser comparadas com as
dos homens, mas tão somente com as do Criador". "Ela
fez tudo o que Cristo fez, menos morrer como ele". "Jesus
Cristo era independente do Pai, mas não de sua Mãe". Tais sentimentos, entoados em conjunto,
não deixavam oportunidade para se penitenciar diante de Deus ou para a expressão da fé para com o Senhor Jesus Cristo em toda a duração do sermão.
Em 1852, por ocasião de uma festividade soleníssima em honra de Nossa Senhora, um dos padres mais eloquentes do Rio foi convidado para pronunciar o
sermão na Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo, que fica ao lado da Capela Imperial. Na noite dessa mesma data, um cavalheiro católico me fez um
resumo do sermão, que eu transcrevo para uso do leitor: — "Os magos de Leste e os reis do
Oriente fizeram penosas caminhadas de terras distantes e, prostrando-se aos pés de Nossa Senhora, ofereceram-lhe suas coroas em troca da sua mão;
mas ela rejeitou a todos, e deu-a ao obscuro, ao humilde mas piedoso São José".
Por ocasião das festas de igreja, os fiéis (e também os outros, nesse particular) podem obter o número que desejem de objetos piedosos, sob a forma
de medidas e bentinhos — pinturas, imagens, medalhas de santos e do Papa etc., etc.. São "trocadas" — nunca vendidas — na
igreja, e produzem bons preços.
Uma medida é uma fita cortada da altura exata da Nossa Senhora ou do santo padroeiro do
lugar. Quando usadas de encontro à pele, curam toda espécie de doenças e realizam os diferentes desejos de seu feliz possuidor.
Há certas e determinadas cores que se julgam próprias de cada Nossa Senhora; uma vez contaram-me o
importante fato que, quando um fluminense piedoso faz um voto a Nossa Senhora, deve tomar muito cuidado para evitar que seja empregada uma cor
errada. Uma senhora da minha família, desejando fazer um pequeno presente a uma de suas amigas — uma jovem mãe católica — enviou um lindo vestido
cor de rosa para o filho; mas o embrulho voltou, com muito pesar porque o presente não podia ser recebido, uma vez que a mãe fizera uma promessa que
se relacionava particularmente com o filho. Tinha prometido a Nossa Senhora (cujas cores favoritas eram as da neve caindo e a do céu nas alturas)
que se seu filho ficasse curado só se vestiria de azul e branco até completar seis meses! No fim desse prazo, acrescentou a resposta, o presente
poderia ser aceito.
Os bentinhos são duas almofadinhas com as imagens pintadas de Nossa Senhora ou de um dos santos padroeiros. São também usados sobre a pele,
aos pares, amarrados por uma fita, um no peito e outro nas costas. São os mais eficazes para proteger a quem os usa contra os inimigos externos,
pela frente e pelas costas.
Visitei a Igreja da Glória durante um desses dias de festa, e a "troca" de imagens e medidas foi imensa. O preço nem sempre, porém, é
pago em dinheiro. Verifiquei que velas de cera, oferecidas à Virgem, valiam tanto como moedas de prata e de cobre. O calor e o aperto da multidão na
igreja eram tais que procurei refúgio na esplanada em frente; e o contraste do ar fresco da noite e os doces aromas que se desprendiam dos jardins
em baixo era o mais agradável e reconfortante.
A multidão, como logo me certifiquei, não se confinava na igreja. Formavam-se grupos em volta da fonte, e milhares de pessoas se achavam na estrada
denominada a Ladeira da Glória, ou empregavam o tempo comendo doces, fumando e conversando no Largo. Estavam aguardando os fogos de artifício que
encerrariam a festa.
Os brasileiros apreciam enormemente a pirotécnica, e todas as festas principiam e terminam com a
queima de foguetes e rodinhas. O fogo final excede a tudo o que no gênero jamais presenciei na América do Norte; e duvido que haja qualquer outro
país no mundo, exceto a China, onde a pirotécnica seja tão variada e esplêndida como no Brasil. Não são apenas as rodinhas, cones, sóis, luas,
estrelas, triângulos, polígonos, vasos, cestas, arcos com letras e os arranjos comuns conhecidos entre nós, mas alteados em grandes postes, são
figuras humanas do tamanho natural, representando serradores de madeira, dançarinos em corda, amoladores de facas, bailarinas e todas as profissões
que exijam movimentação característica.
Por um engenhoso mecanismo, essas efígies movem suas diferentes partes com admirável presteza,
imitando os movimentos naturais. Nada de gauche. As figuras são bem vestidas, até mesmo com luvas quando representam senhoras. O lenhador faz
saltar centelhas, e o amolador de facas faz girar uma roda que expele uma verdadeira auréola de cintilações!
Não há festa, durante todo o ano, que seja mais apreciada pelos fluminenses amantes de diversões do que essa de Nossa Senhora da Glória. Na véspera,
é queimada certa quantidade de rodinhas — provavelmente para despertar a atenção da Virgem para a homenagem que lhe será tributada no dia seguinte,
a fim de que ela, na multiplicidade de suas preocupações, não se esqueça da aproximação do seu aniversário; pois deve ter uma assombrosa memória
para se poder lembrar de cada data festiva em que a sua companhia é implorada, dado que a quarta parte das igrejas do Rio é dedicada a uma Nossa
Senhora.
No dia da festa, desde manhã cedo, as proximidades da branca igrejinha estão apinhadas de devotos em suas alegres vestimentas; nada nessa
festividade exige as roupas escuras comuns; as próprias borboletas e os colibris de peito dourado, que voam por sobre os entreabertos jasmins e
rosas em torno, não se mostram mais vistosos em suas cores que as senhoras e senhoritas de todas as idades que passam e repassam pela estrada da
Glória, vestidas com todas as cores do arco-íris, e com suas longas tranças cuidadosamente penteadas e adornadas de flores naturais, entre as quais
sobressaem os cravos.
Entram na igreja para ouvir missa; e feliz do que tem suficientes forças, pulmões e nervos, para
conseguir abrir caminho até o altar através da multidão que a natureza vestiu de luto perpétuo. Uma vez chegados ao desejado lugar, ajoelham-se no
chão e, depois de dizer suas orações e ouvir a missa, divertem-se conversando no círculo das belas que, em tais ocasiões, estão sempre na ansiosa
espera do formoso objeto de sua adoração. Note-se que, como na França, a maioria dos devotos é de mulheres; e provavelmente por isso, todo homem
fica ansioso para angariar o afeto de algumas belas devotas, que lhe suprirão a falta de fervor.
Depois que elas pacientemente exibiram seus encantos e seus brilhantes, durante algumas horas, um
frêmito de animação perpassa pela multidão, e salvas de artilharia anunciam a chegada da comitiva imperial que, quando o tempo o permite, deixam as
suas carruagens no começo da ladeira e lentamente a sobem até o alto da igreja. A ladeira foi previamente coberta de flores e de folhas de canela
silvestre.
Em certas ocasiões, bandos de crianças, vestidas de branco, dos diferentes pensionatos, estão esperando, no alto do morro, para beijar as mãos de
Suas Majestades. É o mais lindo número do espetáculo — o imperador, com sua estatura majestosa, e a imperatriz, com seu sorriso amável, passando
lentamente pelas fileiras de meninas que, com os olhinhos brilhando, não deixam de fazer ideia da parte importante que estão representando.
Após a cerimônia na igreja, a comitiva imperial desce até à casa do Senhor Bahia
[T28-bis] rico
banqueiro brasileiro que mora nas imediações do local, onde foi preparada uma esplêndida colação, e a tarde termina por um baile e fogos de
artifício. As exibições pirotécnicas são feitas na estrada do lado oposto da casa; desgraçado daquele que se arriscar a conduzir um cavalo fogoso
por ali. Não há outro caminho para ir de Botafogo ao centro da cidade; de formas que tem que tomar a filosófica resolução de ficar apreciando, o
melhor que possa, as rodinhas de Catarina e as ardentes dançarinas piruetando no meio das chispas de fogo.
Um aspecto que distingue esses ajuntamentos no Rio é que, entre milhares de pessoas presentes, não se dá nenhuma cena de brutalidade nem nenhuma
briga. Reina uma perfeita calma e, se no aperto inevitável, alguém sai pisado ou empurrado, um pronto pedido de desculpas imediatamente se ouve, com
o inseparável tirar do chapéu.
Como só se bebe água, nada há que inflame as baixas paixões da multidão. Os escravos não só se
mostram respeitosos em suas maneiras, como também demonstram um alegre sentimento de liberdade, para aquela ocasião; e procuram ambiciosamente os
melhores lugares para ver, lugares que os seus senhores menos ativos procuram conseguir em vão.
À meia-noite está tudo terminado, e as quietas estrelas derramam seu brilho sobre a Glória coroada pela igreja e coberta de vegetação.
Descida a Ladeira da Glória, voltando-se para a esquerda, entra-se numa bem calçada — em alguns pontos mesmo macadamizada — via pública denominada
Catete, larga e importante rua que leva da cidade a Botafogo.
Lavadeiras
Imagem: reprodução da página 115 do 1º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
A meio caminho entre o centro da cidade e o mencionado bairro, está o Largo (do)
Machado, que é onde principia Laranjeiras. Havia outrora muitas árvores de laranja-da-terra
[A17] nesse vale encantador e, embora a maioria delas tenha
desaparecido, o lugar das mesmas foi ocupado com suas mais doces aparentadas, as laranjas seletas, ficando o ambiente de noite referto do rico
perfume de suas flores. Alguns dos mais lindos jardins — que, em vez de muros de pedra, são cercados de grades de ferro — e as mais belas casas
residenciais do Rio abrigam-se nesse vale.
Um riacho sombrio porém límpido deixa correr suas águas borbotantes através de largos leitos escavados nos barrancos, que ficam entre dois esporões
a pique da montanha do Corcovado. Passando por suas margens, veem-se grupos de lavadeiras dentro d'água ou batendo roupa sobre as pedras que se
espalham em blocos ao longo do riacho. Muitas delas vêm da cidade, de manhã muito cedo, carregando suas pesadas trouxas de roupa suja na cabeça e, à
tarde, voltam com roupas limpas na água corrente e coradas ao sol.
Veem-se vários pontos fumegando fogo, onde cozinham a comida; e grupos de criancinhas brincam em
volta delas, algumas bastante crescidas para engatinhar até junto de suas mães; a maior parte, porém, foi carregada até ali nas costas das
sobrecarregadas lavadeiras. Mulheres escravas, de vários ofícios, podem ainda ser vistas carregando seus filhos; mas as lavadeiras não trabalham
mais seminuas como trabalhavam.
Fazem lembrar as pappoose cavalgando as costas de suas mães, índias da América do Norte; porém o modo diferente de amarrar as crianças em
posição fixa produz um efeito bem diverso. A estreita tábua sobre a qual a criancinha índia é atada, dá-lhe a sua forma proverbialmente ereta, ao
passo que a posição encurvada que conservam as pernas da criancinha preta em volta da cintura materna produz-lhe membros arqueados para toda a vida.
Na parte superior do vale das Laranjeiras, existe uma mina de água mineral, muito frequentada em certas estações do ano. Denomina-se Água(s)
Férrea(s), nome que indica as propriedades ferruginosas das suas águas. Próximo desse local pode-se tomar a estrada que conduz ao alto do Corcovado.
Ascensão ao Corcovado.
A excursão ao cume dessa montanha é uma das primeiras que devem ser feitas pelos visitantes do Rio. Pode-se subir a cavalo até a uma curta distância
do cume; a excursão deve ser iniciada de manhã muito cedo, quando o ar está fresco e balsâmico e o orvalho ainda umedece as folhas. O declive não é
muito forte, mas as passagens são estreitas e irregulares, desgastadas como foram pelas águas das chuvas. A maior parte da montanha se mostra
revestida de mataria espessa que varia de caráter com a altitude, mas sempre é abundantemente provida das mais raras e luxuriantes plantas. Perto do
cume, rareiam as grandes árvores, ao passo que se tornam numerosos os bambus e os fetos. Arbustos floridos e parasitas se estendem por todo o
percurso da ascensão.
Fiz uma vez a excursão na companhia de alguns poucos amigos. Os nossos cavalos foram deixados num rancho não muito distante do alto, e poucos passos
depois, atravessávamos a espessura da floresta. Acima desta, a pedra é apenas recoberta por delgada camada de terra, e aqui e ali um arbusto se
abriga entre as fendas da rocha.
O que se vê da planície como um simples ponto é, na realidade, uma rocha nua, bastante espaçosa
para aguentar cinquenta pessoas que em cima dela podem ver de todos os lados ao mesmo tempo, porquanto, exceto na direção em que é galgada, as
encostas da montanha são extremamente escarpadas.
A fim de proteger as pessoas contra acidentes, foram fincados postes de ferro, sustentando trilhos
do mesmo material, em volta da beirada do precipício. Isso foi feito à custa do Governo. Se excluirmos essa ligeira amostra de arte, tudo em volta
exibe a primitividade e a sublimidade da natureza.
A altitude da montanha — 2.360 pés — é suficiente para permitir uma clara vista à vol d'oiseau de um dos mais ricos e
grandiosos panoramas que é dado ao olhar humano contemplar. A baía com as suas ilhas; as fortalezas, o ancoradouro; toda a cidade, de São Cristovão
a Botafogo; o Jardim Botânico, a Lagoa Rodrigo de Freitas [A17A],
a Gávea, a Tijuca, o Pão de Açúcar, as ilhas fora da barra, o largo e ondulante oceano de um lado e, do outro, o círculo desmesurado de montanhas e
praias, tudo em volta de nós e a nossos pés. A atmosfera estava belamente transparente, e fiquei contemplando e recontemplando com crescente
interesse o panorama admirável, magnífico.
Dos flancos do Corcovado, saem vários filetes d'água que correm para Laranjeiras. Por meio de canais artificiais, são reunidos para suprirem o
grande aqueduto. Na descida, acompanhamos esse interessante curso d'água até atingirmos a cidade, junto dos arcos que ligam os Morros de Santa
Tereza e Santo Antonio. Esse trecho da estrada não tem o menor interesse para quem ama a natureza. De quando em quando, encontram-se negros,
agitando no ar seus cestos à caça de borboletas e outros insetos que se veem voejando de um lado para outro da estrada, escondendo-se nas flores e
nas folhas próximas.
Antigamente exercitavam-se muitos escravos, desde meninos, para colher e conservar espécimes de entomologia e botânica, os quais, praticando essa
tarefa continuadamente, organizavam imensas coleções. São essas matas local favorito para naturalistas amadores, que, se animados pelo entusiasmo
característico de seus atrativos, podem ainda vir a achá-los tão cheios de interesse como um Von Spix ou um Von Martius, cujas eruditas obras podem
ser comparadas às de Humboldt e Bonpland sobre o México e a Colômbia.
O aqueduto é um canal abobadado de alvenaria, passando ora por cima, ora por baixo, da superfície do solo, com declividade suave e orifícios para
entrada do ar de distância em distância. O panorama que se pode apreciar ao longo desse aqueduto é muitíssimo variado e cheio de interesse. Ora,
olhando para o lado direito, veem-se o vale de Laranjeiras, o Largo do Machado, o Catete, a entrada da baía e o oceano; ora, voltando a vista para a
outra encosta do morro, podem-se distinguir o Campo de Santana, a Cidade Nova, o esplêndido subúrbio do Engenho Velho e, ao longe, o fundo da baía,
circundado de montanhas e salpicado de ilhas.
Prosseguindo em nossa rota, justamente por cima do Convento de Santa Tereza, paramos para
contemplar uma bela vista da cidade. No estreito intervalo entre os Morros de Santo Antonio e Castelo, pode-se descortinar a parte mais importante
da cidade. O panorama que se consegue ver daí, entre as duas elevações, basta para que o olhar descanse com especial prazer numa combinação
singularmente feliz das coisas da natureza e da arte.
Provavelmente nenhuma outra cidade do mundo pode comparar-se ao Rio de Janeiro no que respeita à variedade e interesse dos panoramas sublimes que
apresenta em suas redondezas. A baía semicircular de Botafogo, com o grupo de montanhas que a rodeia, formam uma das mais pitorescas vistas que se
possa contemplar. Do alto do Corcovado, em frente, erige-se o famosíssimo Pão de Açúcar; e, mais longe ainda, aparece um imenso cone truncado de
granito; visto à distância, essa montanha parece-se com o posto de observação do mastro de um navio, donde a sua denominação de Gávea.
Entre esta e o Pão de Açúcar, há um grupo de duas outras, tão parecidas entre si que justificam o
nome de Dois Irmãos. A cabeça de um dos irmãos eleva-se acima do outro, o mais moço, e olha orgulhosamente para o oceano embaixo que lhe lava os
pés.
No sopé do Pão de Açúcar, está a Praia Vermelha à esquerda, assim chamada pela cor avermelhada de
suas areias; estende-se até à fortaleza de São João, do lado direito, e até às fortificações da Praia Vermelha, do lado esquerdo do Pão de Açúcar.
Nesta última, há um importante quartel para os recrutas do exército, onde muitos são os pobres índios do Alto Amazonas que são exercitados no manejo
das armas. Foi também cenário de uma sangrenta revolta dos soldados alemães no tempo do primeiro Imperador.
A baía oceânica que fica para além do Pão de Açúcar, chama-se Copacabana
[A17B]. Algumas poucas cabanas esparsas de pescadores e velhas
residências dos proprietários da terra acomodam todos os atuais habitantes do local. Já foi mais povoado, conforme afirma em suas memórias o sr.
Domingos Lopes, — alegre sexagenário com que travou relações o dr. Kidder numa das visitas que aí fez, e que minuciosamente lhe relatou as
monstruosas mudanças que se têm feito desde a sua infância, quando ainda o local hoje ocupado por São Francisco de Paula era um charco, não lhe
ficando atrás toda a porção da cidade que ficava para dentro desse sítio, embora coberta em certa extensão por casas humildes e baixas.
As areias da praia de Copacabana são brancas como a espuma que as cobrem. Quem deseje entreter-se
com o surdo porém passado roncar das ondas, quando rolam no verde Atlântico, não encontrará melhor ponto para observá-las e quem já gozou a sublime
companhia das ondas, que aqui se espraiam a seus pés, rendendo-lhe homenagem, não se demorará em visitar novamente o local.
O Pão de Açúcar.
Quando eu pela primeira vez contemplei o Pão de Açúcar, fui dominado por um desejo quase irresistível de galgar o seu cume. Mas esse desejo nunca se
realizou. Como os meus concidadãos têm compartilhado comigo essa ambição, devo ser facilmente perdoado.
Afirmam algumas pessoas que foi um oficial da marinha yankee quem primeiro concebeu e executou o ousado projeto de galgar seus flancos de
pedra. Entretanto, essa honra é disputada por outros em benefício, de um oficial da marinha austríaca. Seja como for, estava reservado a dona
América Vespucci ser, em 1838, a primeira mulher que pôde tentar a proeza; mas sem poder levar a efeito o que seu espírito ambicioso concebera.
Várias pessoas dos dois sexos, depois desse fracasso, renovaram a tentativa e, com perigo de sua
integridade e de suas vidas, algumas delas conseguiram chegar mesmo no topo. No dia 4 de julho de 1851, Burdell, um dentista americano, acompanhado
de sua esposa, juntamente com um cabeleireiro francês et sa dame, e uma jovem escocesa, realizaram a ascensão.
Desta última, recebi uma narração da aventurosa noite, na qual, por vezes, pareciam estar prestes a
precipitar-se no espumante oceano que se abria a seus pés. O cansaço e o perigo não eram pequenos, quando, afinal, o sucesso veio coroar-lhes a
louca temeridade, e eles atiraram foguetes e acenderam uma fogueira, com grande pasmo dos espectadores fluminenses.
A última ascensão à singular montanha, que é quase tão escarpada como o Bunker
Hill Monument, foi realizada por um jovem norte-americano que, sem um companheiro nem o aparelhamento e prática de um mastreiro, abriu caminho até o
cimo da escarpa, sob a ação de um ardente sol a pino. Ficou, porém, tão mal impressionado com a aventura, que pediu a seus amigos não mais lhe
tocassem no assunto [A18].
Notas do autor:
[A14]
Os serviços de esgoto do Rio de Janeiro eram antigamente muito deficientes, e escravos, apelidados tigres, transportavam todas as noites para
a beira das praias as imundícies acumuladas na cidade, até que a próxima maré as levasse para o largo.
[A15]
Quando Napoleão se achava em Santa Helena, deram-lhe cavalos dessa raça que se adaptavam muito bem ao seu modo de montar. Os velhos generais
ingleses que deviam acompanhar o "perverso prisioneiro" muitas vezes tiveram razão de se queixar do passo dos cavalos do Cabo.
[A16]
Essa deusa de pau tem uma esplêndida cabeleira. Representa o último rapto de cabelos feitos em seu benefício. Quando um irmão do sr. P. L.,
cavalheiro das minhas relações, completou sete anos, seus cabelos chegavam até o meio do corpo. Sua mãe, sendo muito devota de Nossa Senhora, juntou
os cachos cortados, e ofereceu-lhos como uma prova de fé, sem supor que estava imitando a prática das mulheres pagãs.
Os cachos foram mandados a um cabeleireiro francês, que preparou a cabeleira.
Foi essa então levada para a igreja e devidamente colocada em Nossa Senhora, depois do padre ter tirado reverentemente a antiga cabeleira, que
serviu para cobrir as madeixas flutuantes de Absalão de Laranjeiras (Ewbank — Sketches of Life in Brazil)
[T28].
[A17]
Gardner é de opinião que a "laranja da terra", ou a laranja amarga, não é indígena.
[A17A]
Lagoa das Freitas, no original.
[A17B]
No original: Copa Cabana.
[A18]
Nota de 1866: — Grandes melhoramentos se fizeram ultimamente no estado das ruas. Deve-se isso a um melhor sistema de calçamento, com pedras
retiradas das pedreiras que existem abundantemente nos morros da cidade. A Rio City Improvements Company, lutando com grandes obstáculos, está
atualmente construindo os esgotos da cidade, os quais, uma vez concluídos, farão do Rio a mais bela cidade dos trópicos.
Não podemos também esquecer as obras oficiais e as docas, sob a direção de Charles Neat Esq., em
frente ao edifício da Alfândega, na ilha das Cobras e suas proximidades. Um dos mais eficientes auxiliares do sr. Neat é o sr. Bullman, de Newcastle,
Ingl., a quem devo alguns dados meteorológicos.
Notas do tradutor:
[T25]
Rua do Príncipe do Catete, depois Rua Bela do Príncipe, é a atual Rua Silveira Martins.
[T26]
Praia Grande, atual Niterói.
[T27]
Karl Friedrich Philipp von Martius Reise in Brasilien, 1828-1831; excertos dessa obra foram publicados nesta Brasiliana: nº 118,
Através da Bahia, trad. e notas de Pirajá da Silva e Paulo Wolf.
[T28]
Sketches of Life in Brazil or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm (ou diário de uma visita à terra do cacau e da
palmeira), por Thomas Ewbank.
[T28bis]
José Lopes Pereira Baía, filho do visconde de Meriti; o seu palacete estava situado no local hoje ocupado pelo Palácio do Cardeal, à Rua do Catete. |