Saturnino Barbosa, precursor do Modernismo
Trabalhando como jornalista em São Paulo, Afonso Schmidt
escreveu enorme coleção de crônicas que foram reunidas nos livros São Paulo de meus amores e Lembrança (crônica), reunidos num só
volume. No primeiro, documenta aspectos do cotidiano paulista de sua época e, no segundo, dá seu testemunho valioso sobre pessoas interessantes ou
importantes que conheceu, fazendo, às vezes, seu necrológio. Fez crônicas sobre Tarsila do Amaral, Marcelo Tupinambá, Garcia Redondo, Cid Silveira,
Martins Jesus, Viriato Correia, Batista Cepelos, Nuto Sant'Ana, Dinorá de Carvalho, Apolônio Pinto, Judas Isgorogota e muitos outros... Dentre
muitos, escolhemos Saturnino Barbosa, praticamente um desconhecido das novas gerações.
SCHMIDT, Afonso. Lembrança (crônica). Editora Brasiliense Ltda., s/d., p.331
"Saturnino Barbosa
Ainda lembro aquele dia em que, ao virar uma esquina, topei com o escritor Saturnino
Barbosa. Estava velho, muito velho, mas ainda rijo. Ao vê-lo, vieram-me à memória fatos de outros tempos. O movimento de renovação artística e
literária não começou para nós em 1922, como há quem pretenda, mas muito antes, ali por 1910, graças àquele poeta que ali está, de sobretudo preto
puído nas costuras, oculos fumados e, na mão ágil, um piúva de respeito...
Saturnino Barbosa chegou a ser popular, popularíssimo. Sofreu durante muitos anos
todas as ofensas com que os homens comuns enchem os seus alforjes, como se fossem pedras, para com elas lapidar os precursores, os que não rezam
pela mesma cartilha.
Professor público em Cubatão, amigo da letra de forma, ele, de quando em quando,
alarmava a nossa sensibilidade romântica e provinciana com livros que - naquela época - conseguiam fazer barulho. Enchiam a secção-livre dos
jornais, eram discutidos nos cafés. E os semanários ilustrados botavam a boca no mundo, entre divertidos e indignados... A verdade é que tudo
naqueles poemas era novo para um tempo em que os cânones literários ainda valiam por tabus.
Foi Saturnino Barbosa quem aboliu definitivamente a métrica, o que representava
naqueles dias uma façanha só comparável à tomada da Bastilha. Além disso, deu à sua poesia um sentido filosófico negativista, que alarmou os crentes
de muitas religiões, os quais, com igual veemência, fizeram frente única contra o poeta... Por outro lado, ele reformou o estoque das imagens
literárias mais em uso. Naquele tempo, nós ainda rimávamos bonina com campina, lírio com empíreo etc. Ele começou a rimar, em São Paulo, psicose com
endosmose, telefone com cicerone, assim por diante. Na sua revolução, acabou com as rimas, simplificou a ortografia, pintou o caneco. Um escândalo
na Paulicéia que usava punhos postiços, botinas de elástico, palheta de abas largas!
Com o decorrer do tempo, tudo que na sua obra era novidade passou a ser moda corrente.
Mas até hoje não se fez a justiça de dizer que o movimento renovador em São Paulo, que mais tarde desabrochou e floriu, até entrar novamente neste
período de estagnação, teve como precursor aquele simpático professor público, alto, forte, vermelho, com um bengalão desta grossura, destinado a
manter em respeito a crítica que, valha a verdade, em se tratando de sua obra, esgaravatava o dicionário à procura de novos apodos.
Como todo pioneiro, ele não foi muito longe. Acabou por aborrecer-se do público, das
letras, de tudo, e desapareceu de circulação. Idade não é biscoito. Oitenta e sete anos são uma existência. Mas ainda conserva o sorriso bom, que as
coroas tornam dourado. Nesse encontro, o poeta ofereceu-me um exemplar do seu livro espírita intitulado Filosofia da Morte. Trata da
reencarnação e apresenta uma lista dos mais ilustres reencarnados que transitam pelo triângulo central. Lendo-o, vi que a nossa população está cheia
de papas, reis e outras grandes personalidades de História que, entre nós, vivem incógnitos.
Para dar idéia da riqueza de nomes ilustres, de antanho, que se encontram de novo por
aí e nos acotovelam na Rua de São Bento, citarei o caso do cronista, isto é, o nosso caso. Quem estas linhas rabisca é, no citado livro, o mais
modesto dos reencarnados. Um trovador errante. Nada mais que Pierre Vidal, poeta que, segundo o Larousse, nasceu em Tolosa no século XII e
morreu nos primeiros anos do século seguinte...
Eu, isto é, o cronista, fiquei tão impressionado comigo mesmo que, logo depois,
escrevi a Paris, encomendando os 'meus' livros que, exatamente como os de hoje, andam sempre esgotados... Claro que na carta pedindo a
remessa das obras de Pierre Vidal, evitei empregar a expressão 'minhas obras'; o livreiro, que só entende de filosofia de algibeira, poderia
ficar mal impressionado..." |