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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - JUDIAS
As polacas e seu cemitério cubatense (3)

Uma história que só recentemente começou a ser investigada

Ainda faltam mais estudos aprofundados sobre a presença judaica na Baixada Santista através dos séculos, tão importante que vários acidentes geográficos na região têm nomes dados por seus antepassados. No século XX, novamente, o véu do mistério encobre parcialmente a história dos judeus na Baixada Santista, marcada por episódios como o da máfia que agia no tráfico de mulheres brancas judias, destinadas à prostituição, as chamadas polacas. Elas e os cáftens, bem como os suicidas, eram enterrados em locais específicos e um deles era o Cemitério Israelita, levado de Santos para Cubatão no início do século XX.
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Na edição de 25 de maio de 1997, o jornal O Estado de São Paulo publicou esta matéria em página dupla sobre o assunto:


Cemitério de Cubatão antes do processo de restauração:
"impuras", as prostitutas judias eram enterradas à parte, como os suicidas
Foto: Arquivo da Chevra Kadisha, publicada com a matéria

HISTÓRIA
Resgate do passado

A vida das prostitutas judias russas, alemãs e austríacas, as polacas que invadiram o Brasil no século passado (N.E.: século XIX), renasce em livros, peças e conferências, mas também nos seus túmulos, que são restaurados em Cubatão

Moisés Rabinovici

As polacas estão ressuscitando. Párias em vida, abandonadas por 30 anos no gueto em que se enterraram judias, em Cubatão, elas começam a renascer dos túmulos restaurados até junho pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo, já personagens de quatro livros. estrelas de três projetos teatrais; tema de monografia, tese e conferências; e fantasmas atormentando a comunidade judaica brasileira, dividida entre apenas reconhecê-las, ou enfim aceitá-las, ou enterrá-las para sempre.

As polacas do "povo da Bíblia" estavam confinadas ao Deuteronômio: "Não haverá dentre as filhas de Israel quem se prostitua no serviço do templo, nem dentre os filhos de Israel haverá quem o faça" (23:17) Elas agora parecem ressurgir em outro momento bíblico: "Toma a harpa, rodeia a cidade, ó prostituta, entregue ao esquecimento; toca bem, canta muitos cânticos, para que haja memória de ti" (Isaías, 23:16).

Certidão - Um "aluvião de Messalinas" invadiu o Rio de Janeiro em 1872. "A horda de judias russas, alemãs e austríacas começou a aparecer na roda cortesã, nos teatros de última classe, nas ruas mais concorridas, mulheres de ademanes desembaraçados, rostos formosos, trajando com luxo e levando presa no olhar a atenção dos transeuntes que as observavam", como registrou Os Cáftens, um folheto de Clímaco dos Reis, considerado pelo diretor do Museu Histórico em 1955, Gustavo Barroso, "a certidão de nascimento" da prostituição de porta aberta inaugurada pelas "famosas polacas".

Elas "paravam nas esquinas, nos corredores e jardins dos teatros, em toda parte e, com uma desenvoltura até então desconhecida, distribuíam bilhetes com seus nomes e moradias..."

O Estado de 25 de julho de 1979, então A Província de São Paulo, publicou a notícia de que "duas alegres raparigas deliberaram dar algumas voltas na cidade em um elegante carrinho particular de passeio, tirado por um cavallo, e guiado por uma d'ellas, de nacionalidade russa, ao que ouvimos contar, e entendida n'aquellas façanhas hyppicas".

Uma verdadeira "scena", como acrescentou: "Assim fizeram, percorrendo galhardamente algumas ruas da cidade com grande espanto dos basbaques em geral, e dos urbanos em particular". Nas ruas da Liberdade ("ironias do acaso!"), as duas foram presas e levadas ao chefe da polícia, que as libertou "provando que aqui no Brazil, como na Rússia, é permitido à mulher guiar um carro particular".

Os "biombos-alcouces" e "casinhas-bordéis" proliferaram rapidamente no começo do século no Rio e em São Paulo. "Neles, há um só quarto, uma só prostituta e um pequeno pátio, onde os homens que esperam formam fila", descreveu o jornalista Robert Neumann, autor de um livro de investigação sobre o tráfico de brancas, 23 Mulheres, publicado no Brasil em 1941.

"Abre-se a porta e aparece a mulher, vestindo camisa de cores berrantes", ele continua. "O freguês que foi despachado passa sem lhe dizer palavra; e o próximo entra, a porta se fecha". Atônito, conclui: "Tão incrível é o número de fregueses recebidos num único dia que, antes de o revelar, necessário se faz dizer que ele foi confirmado pelas autoridades, pela sociedade judaica de socorros Ezras Noshim e pelos investigadores da Liga das Nações".

Historiadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Margareth Rago "morreu de medo" ao penetrar no mundo misterioso das polacas e de seus rufiões para o livro Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, 1890-1930 (Paz e Terra, 1991). "Fui assustada por gente da comunidade judaica que não queria desenterrar o assunto." Perguntavam-lhe: "Mas por que você quer mexer com isso?" Ao saber agora das obras de restauro no cemitério de Cubatão, ela se mostra curiosa e irônica: "Redenção?"

Rago foi muito além da "geografia do prazer" no submundo de São Paulo. Seguindo o rastro deixado há 50 anos no livro Le Chemin (O Caminho) de Buenos Aires, pelo poeta e famoso repórter Albert Londres, queimado como um arquivo num suspeito incêndio de um navio em 1932, ela identifica no Brasil os tentáculos dos poderosos "maquereaux", os gigolôs franceses, e dos "polaks", traficantes de judias das aldeias pobres do Leste Europeu.

Máfias - Quando perseguidos na Argentina, os rufiones refugiavam-se nas filiais paulista ou carioca, onde mantinham até "escolas de prostituição". As máfias francesa e polaca importariam para a América do Sul cerca de 1.200 mulheres por ano, embarcadas nos portos de Gênova, Marselha, Anvers (N.E.: Antuérpia) e Hamburgo (N.E.: respectivamente portos da Itália, França, Bélgica e Alemanha).

Mas "é praticamente impossível estimar a quantidade de prostitutas que vieram traficadas da Europa", conclui Rago. Como "também dificilmente saberemos quantas vieram por vontade própria, ou iludidas com promessas de casamento e perspectivas estimulantes de enriquecimento". Nos bordéis distinguiam-se as estrangeiras, "embora as raras estatísticas disponíveis registrem uma porcentagem superior de brasileiras". Madame O, de 80 anos, testemunhou a belle époque paulista como costureira francesa. E nunca encontrava brasileiras nos bordéis.

"Por quê?", perguntou-lhe Rago, numa entrevista em 1989. "Porque elas não eram disso no meu tempo", respondeu. "Quando cheguei ao Brasil, não havia mulheres (brasileiras) não... tudo francesas e polacas, muitas". Na música de João Bosco e Aldir Blanc, O Mestre-Sala dos Mares, de 1974, as mulatas já se tornam majoritárias:

...Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Está no Gênese (38:24): "Passados quase três meses, disseram a Judá: 'Tamar, tua nora, se prostituiu e eis que está grávida da sua prostituição.' Então disse Judá: 'Tirai-a para fora, e seja ela queimada.'" Está em Levítico (21:9): "E se a filha dum sacerdote se profanar, tornando-se prostituta, profana a seu pai; no fogo será queimada".

Os judeus brasileiros não queimaram as "curves" (prostitutas, em iídiche) de Santos, do Rio e de São Paulo. Mas lhes reservaram, "impuras", o mesmo chão dos suicidas que ousam findar a vida dada, e então só tirada, por Deus: junto aos muros dos cemitérios. "Die linke", esquerdistas, marginalizadas, ou "as outras", na tradução do jornalista Alberto Dines, as "curves" abriram seus próprios cemitérios, rezaram em sinagogas próprias e congregaram-se em sociedades de assistência mútua. Viveram e morreram judias. Mais do que esquecidas, expiaram. Abolidas, perpetuaram-se. Eternas polacas.


Túmulos restaurados no Cemitério de Cubatão:
comunidade está dividida sobre a necessidade de resgatar parte da história das mulheres
Foto: Arquivo da Chevra Kadisha, publicada com a matéria

Diretores querem fazer adaptação teatral de livro

Iacov, Hillel, Miguel Fallabela e Walter Avancini disputam "Jovens Polacas"

A chama da refinaria da Petrobrás parece uma vela acesa vista do pequeno gueto judeu dentro do Cemitério Municipal de Cubatão. Fogo-fátuo, no meio da poluição. Agora, restaurados, os túmulos de 56 mulheres e 14 homens não mais emanam assombrações que assustavam os vivos, para além dos muros.

Iacov Hillel: heroínas no teatro
Foto: Luludi/AE - 26/6/93 - publicada com a matéria
Em 10 de junho, a obra estará concluída, com o calçamento sinuoso igual ao de Copacabana. A restauração incluiu uma mudança de mentalidade de uma comunidade que por 30 anos fazia de conta que esses 70 mortos, "impuros", não lhes pertenciam, mesmo que enterrados, por conta própria, como judeus.

A mudança de mentalidade representa um reconhecimento, não aceitação. Uma controvérsia para a comunidade. Não aceitasse restaurar o cemitério, o pior poderia acontecer: a prefeitura de Cubatão o desapropriaria, repetindo o que aconteceu com o Chora Menino, em São Paulo, em 1970-71, quando 209 de 255 túmulos tiveram de ser transferidos para o Cemitério Israelita do Butantã, onde estão hoje com as lápides lisas, sem nenhuma identificação.

Os mortos de Chora Menino e de Cubatão são diferentes porque em vida se envolveram com prostituição, como os de Inhaúma, no Rio. São as polacas de Santos e São Paulo, e alguns de seus rufiões ou maridos, que conservaram o judaísmo embora excluídos. "Símbolos da materialização do pecado", para a historiadora Beatriz Kushnir.

Tom de censura - O médico e escritor Moacyr Scliar conheceu uma polaca quando clinicava num asilo para idosos da comunidade judaica. Sob sua inspiração, escreveu uma novela, O Ciclo das Águas (Editora Globo, 1977). No prefácio de Jovens Polacas (Editora Rosa dos Tempos), um romance da judia baiana Esther Largman, ele lembra um telefonema que recebeu logo que saiu o seu livro. "O tom era de censura: eu não tinha nada de escrever sobre o assunto", dissera-lhe um homem que não se identificou, mas com sotaque judaico.

Fallabela: cobiçando o livro
Foto: Tasso Marcelo/AE - 2/2/96 - publicada com a matéria

"Isso é coisa nossa, não interessa aos outros", ainda ouviu. Então, chegou a uma conclusão: "(...) não se trata apenas de comércio sexual; o mais perturbador é que o tráfico de mulheres tenha sido feito por judeus, por herdeiros de uma missão ética que vem desde os tempos bíblicos. Mais do que isso, revela uma perigosa cisão dentro de um grupo para o qual a união é condição de sobrevivência. Mesmo assim, a história precisa ser contada. Não há outra coisa a fazer com os espectros (como Freud bem mostrou) a não ser exorcizá-los".

A professora Largman chegou às Jovens Polacas, livro agora cobiçado para uma adaptação teatral pelos diretores Iacov Hillel, Miguel Fallabela e Walter Avancini, pesquisando os "judeus dos trópicos" para um fascículo de uma revista de história nos Estados Unidos. "Fui me aprofundando e me vi, de repente, com um material muito grande". Decidiu-se por "um romance baseado em fatos reais". Um rabino a apoiou, outro lhe pediu que parasse. Para ela, "os judeus são um povo igual aos outros". Não tem só prostitutas: agora também inclui o fanatismo religioso capaz de assassinar primeiros-ministros, como aconteceu a Yitzhak Rabin, em 1995.

Em cartaz - Por terem sido "escondidas", acrescenta Largman, as polacas estão agora em cartaz, "desvendadas". A atriz-autora Analy Pinto, que fez a novela Razão de Viver, do SBT, acabou de adaptar o romance Jovens Polacas para um teatro musicado que o diretor Iacov Hillel (Um Violinista no Telhado) quer estrear no segundo semestre. Um dos títulos provisórios: Não Haverá Rameiras entre as Filhas de Israel.

Avancini: interesse na história
Foto: Carlos Chicarino/AE - 5/2/90 - publicada com a matéria
"Temos de resgatar as polacas", diz Analy. "Temos de dar a elas o direito de existir". Mais ainda, como acrescenta: "A comunidade tem uma dívida para com elas, que foram muito dignas e agüentaram a barra sem se queixar". Hillel diz que "não se pode esconder as polacas debaixo do tapete: elas estão na memória de São Paulo e dos judeus". A atriz Tânia Sekler as admira: "Impressionante como não renegaram o judaísmo em momento algum". Pergunta a psicóloga Eveline Alperowitch: "Por que não um cemitério de ladrões, ou assassinos? Por que só de prostitutas?"

Hillel: "Lugar de heroínas é no teatro. É o teatro que tem o dever de resgatar as polacas, transformando o passado numa ficção viva..."

Analy: "A gente está falando de um problema feminino, mais do que de raça e de país. Estamos falando de libertação e de opressão feminina. Muitas mulheres choraram quando fizemos a primeira leitura do texto. As polacas não tinham saída..."

Tânia: "As polacas estão pedindo a vez."

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