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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - JUDIAS
As polacas e seu cemitério cubatense (4)

Uma história que só recentemente começou a ser investigada

Ainda faltam mais estudos aprofundados sobre a presença judaica na Baixada Santista através dos séculos, tão importante que vários acidentes geográficos na região têm nomes dados por seus antepassados. No século XX, novamente, o véu do mistério encobre parcialmente a história dos judeus na Baixada Santista, marcada por episódios como o da máfia que agia no tráfico de mulheres brancas judias, destinadas à prostituição, as chamadas polacas. Elas e os cáftens, bem como os suicidas, eram enterrados em locais específicos e um deles era o Cemitério Israelita, levado de Santos para Cubatão no início do século XX.
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Na edição de 25 de maio de 1997, o jornal O Estado de São Paulo publicou esta matéria em página dupla sobre o assunto:


A historiadora Beatriz, no cemitério de Inhaúma: "Apaixonei-me perdidamente por elas"
Foto: Raimundo Valentim/AE, publicada com a matéria

HISTÓRIA
O fim de um tabu

Historiadora, cuja pesquisa que se transformou em tese de mestrado foi iniciada em 1988, rompeu um tabu da comunidade judaica, ao resgatar a memória de segregados

Moisés Rabinovici

Inhaúma - Aqui jazem 797 polacas, seus filhos e alguns cafetões - os "companheiros de viagem" da historiadora Beatriz Kushnir, judia de 30 anos que rompeu um tabu da comunidade judaica ao resgatar a memória de judeus segregados, porque prostituídos.

Se hoje as polacas estão ressuscitando, mesmo nos jornais e programas de TV comunitários que antes as censuravam, é porque desde 1988 Beatriz garimpou preconceitos e paranóias anti-semitas até encontrar uma mina de documentos para construir uma tese de mestrado, aprovada com louvor em 1994 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois transformada no livro Baile de Máscaras: Mulheres Judias e Prostituição (Imago, 1996).

Beatriz esteve no subúrbio carioca de Inhaúma, aos 2 anos, levada pela mãe, que foi ver uma empregada. Não é o nome tupi, que significa Ave Preta, a razão do atual aspecto sinistro acrescentado ao cemitério onde florescem pés de mandioca e bananeiras entre os túmulos. A rampa para o portão com a estrela de Davi está cortada por uma trincheira de paus e pedras. A polícia terá de derrubá-la se quiser atacar os traficantes da favela do Rato Molhado. O perigo de morte torna-se mais macabro do que os mortos.

"Nada é à-toa", assegura Beatriz, de volta ao cemitério de Inhaúma tantas vezes depois de adulta. "Apaixonei-me perdidamente por elas", aponta para as polacas. Uma das lápides traz o nome de Estera Gladkowicer, judia russa que se matou em 1968.

"Judia rara" - "Foi um caso meu", contou ao Estado o sambista Moreira da Silva. "Uma vez fui ver o túmulo, mas não tem graça nenhuma: a vida continua", diz ele, que mora com vista para o cemitério do Catumbi. "Enterrou ali, não sai mais". Para ela compôs o samba Judia Rara. E com a memória afiada, aos 95 anos, ele cantarolou:

A rosa não se compara
A essa judia rara
Criada no meu país
Rosa de amor sem espinhos
Diz que são meus seus carinhos
E eu sou um homem feliz

O sambista carioca Moreira da Silva, de 95 anos: 
caso com prostituta russa inspirou a música "Judia Rara"
Foto: Tatiana Constant/AE - 29/3/92 - publicada com a matéria
O avô de Beatriz vendia a prestação para as polacas, "ótimas freguesas". Falavam em iídiche. Encrenca, em português, vem [de] ein krenke, que quer dizer doente. "É o que repetiam as polacas quando temiam que um cliente tivesse doença venérea", concluiu o jornalista Luís S. Krausz, mestre em letras clássicas pela Universidade da Pensilvânia, EUA.

Pioneiras - As polacas foram pioneiras na imigração judaica para o Brasil. As primeiras desembarcaram no Rio em 1867. A partir de 1904, começaram a chegar os judeus para as colônias agrícolas Philippson e Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Uma próxima leva de imigrantes veio para o Rio e São Paulo no final da Primeira Guerra. A ascensão do nazi-fascismo produziu um quarto grupo com refugiados judeus da Europa Ocidental.

"A existência de prostitutas judias durante o período das imigrações para as Américas é um tema tabu para uma parte da comunidade judaica em todo o mundo", diz Beatriz. "É um tema cercado pelo silêncio e pelo segredo". O que a manteve firme diante de pressões contra a sua pesquisa foi uma grande curiosidade em saber: "Como um grupo marginalizado, tanto pelos legisladores da cidade como pela comunidade judaica, recriou redes de solidariedade e sociabilidade que lhes definiu uma identidade social e uma auto-imagem positivas?"

No livro, Beatriz explica: "É por isso que o trabalho tem como imagem central um baile de máscaras. Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se ir ao encontro de tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas". Ela ainda achou quatro polacas entre mendigos num asilo de loucos. Conversou com vários descendentes. Mapeou cinco sociedades fundadas no Rio, em São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York "para manter, na prática do cotidiano, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais era proibido". Recuperou 44 anos de atas dos encontros.

O lema das polacas cariocas era Chessed shel Eimes, ou Caridade de Verdade. Mas tão nobre desígnio não impressionava o Centro Sionista do Rio, que conclamava, pelo semanário Dos Iídiche Vochenblat, em 26 de setembro de 1924, o reinício da "velha luta contra os elementos no Rio de Janeiro que, embora de descendência judaica, só merecem a nossa repulsa, sob todos os aspectos, pois envergonham a todos nós que vivemos no Brasil assim como enxovalha a todo o povo judeu". Eram tmeim, impuros.

Beatriz esboça o perfil dos três grupos de cafetões da época. O francês, individualista, dominava suas mulheres pelo terror e violência. Marcava as rebeldes com navalhadas no rosto. O portenho, sentimental, controlava pelo coração. O judeu já era estereotipado. Na visão de dois delegados, "exploram o lenocínio como se estivessem à testa de uma casa de negócios para o qual a mulher é exclusivamente uma mercadoria".

O escritor judeu Stefan Zweig passou pelo Rio em 1936. Suas lembranças foram as prostitutas: "(...) que caminhos de longe, que destinos reúnem essas judias e francesas, até terminarem aqui, pelo preço de 3 mil réis (cerca de 3 francos franceses)! Que cenário para a satisfação do mais banal e animal dos prazeres rápidos, raramente vi algo tão fascinante como essas quatro ruas cintilantes, que dentro de seus muros inquietantes servem a um único propósito e exclusivamente a ele. Algumas mulheres são realmente belas (...) uma discreta melancolia paira sobre todas e por isso a sua humilhação, sua exposição na vitrine nem parece vulgar, comove mais do que excita. Uma visão inesquecível".


Postal do começo do século XX: 
rufião combina com interessados o preço a ser pago pela prostituta
Foto-reprodução publicada com a matéria

Máfia - A máfia de cafetões judeus, a Zwi Migdal, esteve ativa em Varsóvia até a década de 30. Recrutava suas "escravas brancas" em pobres cidades do Leste europeu usando como isca "um comerciante rico e casadouro" prestes a "fazer a América". Quando necessário, exigência de família, até se casavam no religioso. Muitas mulheres só descobriam ser parte de um harém já em alto-mar. Desembarcavam sem alternativa que não a de se prostituírem. Estavam num novo país, desvirginadas, não falavam a língua nem tinham dinheiro.

"Senhoras honradas iam ao porto avisar as recém-chegadas que estavam sendo enganadas", conta Beatriz. "Mas era uma balela, pois não lhes davam trabalho". E é aí que ela vê uma grande ferida aberta: "A impossibilidade de ajudar em momento de crise". Com o tempo, surgiram várias organizações judaicas em Nova York e Londres para combater a Zwi Migdal.

Irmãs - As polacas brasileiras tratavam-se por irmãs. E muitos dos epitáfios de Inhaúma perpetuam essa irmandade. A última "irmã superiora" morreu em 1984, aos 103 anos. Beatriz a chama de "rainha das rainhas". Era Rebecca Freedman, a Becca, que veio de Zacrichin, na Polônia, via Nova York. Foi a última presidente da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita. Profundamente religiosa, ela guardava até o shabat, do pôr-do-sol de sexta ao de sábado. Um dia tentaram lhe mostrar a contradição de ser prostituta, com uma clientela goi (de não-judeus) e ainda insistir em ser judia. No que ela respondeu: "Olha, o freguês podia ser treif (sujo), mas o dinheiro era kosher (purificado para o consumo)".

Depois que Baile de Máscaras começou a repercutir com resenhas em jornais e revistas, Beatriz recebeu alguns telefonemas anônimos. A pergunta era a mesma, sempre: "É da casa da dona Rebeca?" A ficha demorou a cair até que compreendeu de que a estavam chamando. Agora a situação parece ter mudado Na quinta-feira, no Espaço Cultural Cláudio Abramo, ela falou sobre As Mulheres Judias e a Prostituição, convidada pela Casa de Cultura de Israel e Secretaria Municipal de Cultura.

"Acho muito interessante que a comunidade de São Paulo esteja querendo ouvir", disse. Mas não é só: a próxima palestra já está marcada para julho em Israel, na Universidade Hebraica de Jerusalém. (M.R.)


Cemitério de Inhaúma, perto da favela do Rato Molhado: 
rampa para o portão com a estrela de Davi está bloqueada por paus e pedras
Foto: Raimundo Valentim/AE, publicada com a matéria

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