Ilustração do cartunista Bar, de A Tribuna, publicada com a matéria
MEMÓRIAS
A senhora de 50 anos
Mário Roberto N. Velloso (*)
Colaborador
Antes de Cubatão, minha comarca era Franco da Rocha.
Isso, aquele do Juqueri, lugar de gente doida. Até hoje guardo sérias dúvidas se fui mandado pr'aquela terra meio de propósito.
O fato é que dela saí por promoção, não por bom comportamento.
Saí de uma cidade estigmatizada pela loucura e desagüei em Cubatão, outro estigma,
desta vez de poluição. Ô sina.
E, de início, rebatia como podia as simpáticas recomendações dos colegas: levar para o
Fórum máscara ao invés de código, e trocar a toga, modelo obsoleto, por um moderno e bem vedado escafandro.
Tudo conversa mole - em São Paulo a poluição é muito pior. Não temos, verdade seja
dita, um ar de Campos de Jordão, mas milagres deixemos para o Altíssimo.
Vejo a cidade, predominantemente, pela sala de audiências, que é um filtro fiel da
sociedade. Na maior parte são dramas e problemas intermináveis, cuja simples lembrança, em pleno feriado de Nove de Abril, já me dá urticária.
Prefiro lembrar, hoje que é dia de festa, das vezes em que o riso brotou espontâneo,
provando que a comédia, de tão forte e necessária para o ser humano, não respeita nem a autoridade judicial. Um autêntico despeito.
E por falar em despeito é que me vem à mente um casal que tentava um acordo sobre
pensão alimentícia.
No calor das trocas de cifras e outras gentilezas, eis que o objeto da discussão,
menino de colo, desatou a chorar. A mãe, para acalmá-lo, sem a menor cerimônia, desobstruiu a vasta peitaria para amamentar a fera, desviando
a atenção dos presentes por breves instantes; afinal, não é sempre que se vê um air-bag duplo e inflado, tão assim, digamos, fora de
contexto. O ex-marido, ávido por um argumento convincente, logo falou: "Tá vendo, doutor, pensão prá quê, se o leite é de graça?"
Teve ainda a do incauto larápio, pilhado em flagrante delito furtando uma televisão
novinha, com caixa e tudo. No interrogatório, tentou se explicar: estava indo comprar cigarro no bar e, vendo uma TV nova, na caixa, no meio da
calçada, resolveu levá-la pois alguém poderia ter perdido. Nobre gesto.
Confirmei o horário - foi às 3 da madrugada, em dia de semana.
Não agüentei: deixei de lado a austera solenidade que o ato exigia, afastei os óculos
para a ponta do nariz e olhei bem na cara dele, por cima do aro: "Seu fulano, com sinceridade, o sr. acha que dá prá acreditar nisso?"
Ele deu um risinho, tentando fazer um gesto largo com as mãos algemadas (era
reincidente), e disse: "Essa é a estória que eu tinha prá contar pro senhor, não tenho outra". Respondi, retribuindo o mesmo riso maroto, que sendo
assim ele também já podia ir imaginando a sentença que viria; eu não tinha outra.
E como essas, várias foram as vezes em que pude trocar experiências com os cubatenses,
a maioria delas em ocasiões mais solenes, mais importantes e mais circunspectas, mas nem por isso mais divertidas.
Nesse fechado contato, sempre vi com admiração essa terra que convive numa simbiose
invejável entre a tecnologia, o progresso e a grandiosidade das indústrias, e o saudável traço interiorano de bem receber as pessoas, de olhar no
olho do interlocutor e pagar um café para o amigo no bar da esquina.
Parabéns, Cubatão.
Estás uma enxuta e respeitável senhora de 50 anos, madura, experiente e cheia de
estórias para contar, mas com o mesmo vigor e curvas (calma, refiro-me às curvas da Anchieta) de uma dinâmica e promissora moça de vinte.
(*) Mário Roberto N. Velloso é juiz de Direito em
Cubatão desde 1994 e autor do livro de crônicas Computador de
Consciência. |