Ilustração do cartunista Bar, de A Tribuna, publicada com a matéria
MEMÓRIAS
O fantasma do bananal
Antonio Carlos Cruz
Colaborador
"Eu nunca vi... mas há quem jure ter visto... é peludo,
os olhos são duas grandes bolas de fogo"!
- "Eu já vi... tem a minha altura, parece gente... mas é feioso e cheira a enxofre"...
- "É... esqueceram os chifres? Aquilo na sua cabeça são cornos... só pode ser o
Tinhoso, que o Pai me perdoe"!
E não mais se falava do recente passamento do prefeito Tenório. Assunto obrigatório
que agora acompanhava as rodas de rabos-de-galo no balcão do armazém do seo Alberto Coelho, as aparições noturnas p'ros lados da divisa dos
bananais do Tonico e Joaquim Marques a todos intrigava. Mesmo durante o dia o lugar sugeria o tétrico. Ali, a encosta do Morro do Marzagão servia,
há muito, de retirada de saibro para formatar tijolos utilizados na construção do Curtume Costa Moniz. Abandonada a mina, a barranqueira se via
coberta de liquente e trepadeiras. Lá no alto, bem na beira, um velho tronco de tamanqueira relutava em cair. Até acontecer, servia de pouso aos
urubus naqueles calorentos dias, alimentando ainda mais a crendice da inominável criatura.
A voz rouca e pausada do Castanheira, que acabara de chegar, soa como resposta a todas
as indagações: - "Dizem que o velho Abílio, que tinha a casinhola à sombra daquela tamanqueira, ao enviuvar, enforcou-se num dos seus galhos. Sua
alma purga esse pecado até hoje".
- "Cruz, credo"!
- "Seo Alberto, bota aí mais quatro rabos-de-galo... e queima com Fernet".
E o converseiro avança na noite.
Sozinho numa mesa de canto do pequeno salão, o português David parecia distante do
assunto em pauta. De poucas palavras, morava de favor no barracão construído ali no meio do bananal do Tonico, que servia de estufa e depósito de
ferramentas. Os cruzeiros que ganhava com roçadas e cortes de bananas ali no armazém deixava, trocados por cachaça e fumo de corda. Sem parentes
próximos, parecia querer afogar na bebida o amargo da sua solidão.
Pobre David. O Criador em nada o favorecera. Mouco e de pequena estatura, os
esbranquiçados cabelos e barbas encaracolavam-se deixando mostrar o rosto, além dos pequenos olhos afundados, o verrugoso nariz e avantajado par de
orelhas. Caracterizava-se ainda pelo andar cabisbaixo e arrastado, de certo em razão das pesadas botas que usava.
Enfim, a singular figura mais estava para assustar que ser assustada.
Ainda assim, mal conseguia disfarçar o pavor que aquele assunto lhe inspirava. Afinal,
aqueles fenômenos pareciam acontecer próximo donde morava.
Calado como chegou e ali ficara, David levanta-se, sem despedidas, toma o rumo de
casa. A meio caminho desvia para a barranqueira, à cata de folhas de pari-paroba; o chá da erva minimiza o mal-estar provocado pelo excesso de
bebida.
Enquanto isso, lá atrás, seu Alberto despedia-se dos alvoroçados fregueses:
- "Amanhã tem mais, pessoal... até".
E todos tomavam seus rumos. Tomás e Juvenal caminham junto, eram vizinhos. E na volta
para casa a conversa gira em torno do mesmo assunto:
- "Chiii, Juvenal. Já é quase meia-noite".
- "Não gosto de passar perto da barranqueira a essa hora... aquele lugar sempre me deu
arrepios"...
- "Silêncio... está ouvindo"?
- "É o canto do Sem-fim. Há três dias e três noites ele pia no tronco da
tamanqueira"...
- "Ave, Mãe... isso é mau-agouro"!
E a caminhada continua silenciosa.
- "Que foi isso"?
- "Quê? Onde"?
Fosse o que fosse, a coisa vinha dos lados da barranqueira. O ruído de palhas
arrastadas pelo bananal aumentava, contrastando com o silêncio daquela enluarada noite.
De repente, a coisa parou a poucos metros dos estarrecidos amigos que,
conduzidos pelo pavor, fizeram ecoar, em uníssono, não menos pavoroso berro seguido de desabalada carreira. A correria ganha as sinuosas trilhas da
restinga e bananais até que, logo à frente, trombam com a coisa, que parecia persegui-los. Nova sessão de berros e a descampa muda de
direção. Não demora nada e lá vem a coisa, trombando os amigos e as bananeiras, numa barulheira infernal.
E assim foi até que, ofegantes, Tomás e Juvenal buscam abrigo no barraco de David. Ali
o encontram extenuado, olhos arregalados de pavor, o corpo queimado pelas urtigas que cresciam junto aos pés de bananas, nas trêmulas mãos as ramas
de pari-paroba reduzidas a talos!
- "Vocês... vocês... viram o que eu vi"?
- "Você... você... viu o que vimos? A coisa é monstruosa e quase nos pega"...
- "A coisa? Eram duas... e como correm... quando eu pensava que tinha me livrado, lá
vinham elas tentando me pegar"!
E, a partir daquele dia, a seleta roda de discussões acerca dos temas da atualidade,
ali no Armazém do seu Alberto Coelho, ganhava mais um participante: o português David, que entre um e outro rabo-de-galo queimado com Fernet
insistia em afirmar que a coisa que a todos assustava, lá pros lados da barranqueira, na verdade eram duas... sob os veementes protestos de Tomás e
Juvenal, que já tinham a frase pronta:
- "Uma só, David... uma só.. e como berrava e corria... e como cheirava mal"! |