Página 56 (última) do jornal A Tribuna de Santos, de 26 de fevereiro de 1984
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Tochas humanas na cidade bomba
Aquela gente estava tão acostumada com os riscos que não ligou para a gasolina que corria debaixo de seus pés. E quando o mangue, chão comum de tantos miseráveis, virou fogo, milhares de
seres correram. Pais aflitos puxando através das tábuas podres da vila os filhos atônitos. Muitos saíram vivos do inferno. Muitos foram lambidos pelas labaredas loucas e se converteram em tochas humanas, vultos fantasmagóricos na madrugada sombria.
o povo esperava o novo dia para acordar do pesadelo. E com o sol, uma procissão de gente perambulava nas pinguelas e via brotarem do mangue de cinzas os corpos amigos. Rostos desesperados identificaram rostos derretidos.
Ninguém suportou a tragédia. O soldado do fogo gritou, surrou e, por fim, chorou. Em cada quadra, um retrato de emoção. O afeto da mãe pelos filhos estava vivo nos corpos-carvão que se
abraçavam petrificados no chão. Depois de brigarem contra a morte, os bombeiros recolheram as lembranças mortas de tantas vidas. E um esquadrão de gente começou um novo tempo. Um tempo de gente pela metade. De gente que deixou, fincado no mangue,
parte de sua vida, esperança total de um dia, com crianças crescidas, poder abandonar o charco da cidade-bomba, que muitos desconheciam. Ou negavam. |