Capa da revista Veja de 7 de março de 1984
Imagem: acervo digital Veja
Especial
Inferno em Cubatão
Terror e morte no incêndio da favela sobre um oleoduto
As faixas que a prefeitura de Cubatão, nas fraldas da Serra do Mar, a 60 quilômetros de São Paulo, estendeu nas principais avenidas da cidade anunciavam para este
ano um "Carnaval sem crise" - e reforçavam a campanha com a qual o prefeito nomeado José Osvaldo Passarelli, 41 anos, vem tentando desde que assumiu o cargo, em 1981, recuperar a feia imagem de seu município, considerado um dos mais poluídos do
mundo. Duas fortes explosões e o incêndio que as seguiu, na madrugada de sábado, dia 25, interromperam os ensaios das três escolas de samba de Cubatão, cancelaram o Carnaval e abalaram duramente a campanha de Passarelli.
Provocados por um vazamento de gasolina nos dutos da Petrobrás que ligam a Refinaria Presidente Bernardes ao Porto da Alemoa, já no município de Santos, as explosões e o incêndio devastaram uma das
favelas mais miseráveis de Cubatão - a Vila Socó -, atingindo mais de 1.000 barracos e matando pelo menos noventa pessoas, cujos corpos haviam sido encontrados até a quarta-feira passada. Apenas quinze deles puderam ser reconhecidos.
A gasolina que boiava no mangue incendiou-se e os casebres de madeira
foram rapidamente consumidos pelo fogo que só deixou escombros
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Naquele dia, os bombeiros passaram a jogar cal viva nos escombros e no mangue onde os barracos haviam sido construídos sobre palafitas, sepultando para sempre os cadáveres que provavelmente ainda
restavam no local. A prefeitura de Cubatão pretende apurar o número exato de mortos pelo único método de que dispõe - contando os sobreviventes e deduzindo-os dos 6.320 habitantes cadastrados por seus assistentes sociais na Vila Socó.
Tão chocante quanto os efeitos do incêndio foi a longa cadeia de erros que resultou no morticínio do dia 25 - os equívocos, por sinal, prosseguiriam mesmo depois de constatado o vazamento da
gasolina, que começou a boiar nos mangues, sob os casebres.
A busca de corpos: nem todos foram encontrados e o mangue foi coberto de
cal
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
O motorista Manoel de Jesus Souza, 35 anos, identificou perfeitamente o líquido que escorria ao chegar do trabalho, ainda na manhã de sexta-feira. "Era gasolina mesmo", repetiria depois. No entanto,
tranquilizado por outro morador, que lhe prometeu telefonar prontamente para a Petrobrás, ele entrou em seu barraco e foi descansar para o turno seguinte na empresa Tigre Transportes.
Como Souza, muitos habitantes da Vila Socó sentiram o forte cheiro de gasolina, sem contudo acordar para o perigo que os rondava. É o caso do ajudante de obras Cícero Ramos de Santana, 42 anos, que
na noite do incêndio despertou com batidas nervosas na porta de seu casebre. "Corre!", gritava uma vizinha. O fogo, que se alastrava rapidamente pelos 700.000 litros de gasolina já espalhados sobre o mangue, estava bem perto. Ele ainda conseguiu
ajudar a mulher a salvar seis de seus sete filhos, mas na terça-feira só pedia a Deus para fazê-lo esquecer a agonia da filha Marisete, de 17 anos, que não conseguiu escapar às chamas.
Como quase todos os seus vizinhos, Cícero já fora advertido do enorme risco pelo tenente da Polícia Militar Roldão Paulino da Silva, 47 anos que percorreu a favela gritando avisos sobre a iminência
do incêndio. Com medo de assaltos, frequentes naquela região, poucos abriram as janelas, e ninguém se dispôs a enfrentar a chuva que caía àquela hora.
A violência das chamas: só 15 dos 90 mortos puderam ser reconhecidos
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Muitos culpados - Várias testemunhas, que na segunda-feira eram convocadas pelos jornais para depor num inquérito instaurado pela Petrobrás, garantem ter alertado funcionários da empresa para
o vazamento. O próprio tenente Roldão Paulino solicitou à Petrobrás pelo rádio de sua viatura, às 22h30 de sexta-feira, providências que só foram tomadas à 1 hora de sábado. Mas à 1h25 - antes que os bombeiros chegassem - a favela já estava em
chamas. Horas depois, surgiu dos escombros da Vila Socó um lúgubre debate sobre quem fora o culpado, enquanto 302 famílias, com suas posses reduzidas às roupas do corpo, se viam provisoriamente instaladas no Centro Esportivo de Cubatão.
O prefeito Passarelli, lutando para conservar os olhos abertos depois de uma vigília de 36 horas, procurava isentar-se na segunda-feira: "Eu sei que não sou culpado disso", repetia. O governador
Franco Montoro preferiu distribuir o ônus da tragédia. "Somos todos culpados", decidiu Montoro na quarta-feira. A Petrobrás pode não ser, de fato, a única culpada. Embora os próprios técnicos da empresa tenham revelado, no Rio, que o rompimento do
conduto de gasolina provavelmente ocorreu por "sérias falhas humanas" de seus operadores, as consequências dessas falhas não teriam sido tão graves se o governo de São Paulo e a prefeitura de Cubatão tivessem levado a sério as advertências que a
empresa vem fazendo, comprovadamente, há pelo menos sete anos.
O conduto estourado: abriram a válvula errada
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Segundo os técnicos, o rombo de quase 1 metro de comprimento por 16 centímetros de largura constatado no conduto rompido só pode ter sido provocado por uma altíssima pressão - e a causa mais provável
dessa pressão extraordinária seria a abertura de válvulas desencontradas nas duas extremidades do conduto.
Nessa versão, um funcionário abriu a entrada de gasolina no Terminal de Derivados de Petróleo, em Cubatão, e outro, que deveria controlar a saída do combustível no extremo oposto do tubo, no Porto da
Alemoa, abriu a válvula de um outro duto, paralelo. Sem ter por onde escapar, a gasolina comprimida pela estação de bombeamento do terminal provocou a ruptura do tubo em seu ponto mais fraco, que, por fatalidade, estava exatamente sob a Vila Socó.
Manoel de Jesus: risco desprezado
Foto: João Bittar, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Advertências inúteis - Se parece óbvio que a empresa terá de responder pela falha de seus funcionários, é também evidente que as refinarias de petróleo precisam de oleodutos, que seriam
inofensivos se sobre eles não existissem favelas.
Em 1977, um ano depois de absorver os oleodutos da Rede Ferroviária Federal, a Petrobrás enviou uma carta ao então governador Paulo Egydio Martins, alertando-o sobre as possíveis consequências de um
incêndio nesses oleodutos, sitiados por favelas desde os anos 60. O ponto mais crítico, para a empresa, era a Vila Nova, a 2 quilômetros de Vila Socó, onde a picada sobre os condutos é utilizada como rua. Uma carta semelhante chegou às mãos do
próprio Montoro em dezembro passado, mas novamente as advertências resultaram inúteis.
Enquanto não se estabelece a dose exata de culpa de cada um, a prefeitura de Cubatão reúne os esforços dos que demonstram sentir algum peso na consciência. Assim, Cubatão resolveu esquecer
temporariamente outras áreas críticas - mais de 60% da população vive em habitações precárias - para concentrar-se na reconstrução das casas dos desabrigados de Vila Socó em local seguro.
Sobreviventes, entres os 60% da população que vive em casas precárias
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Esse local, para o prefeito Passarelli, é a Vila Natal, um aglomerado de casas modestas, mas dotadas de água e luz, na margem direita da Via Anchieta, sobre um terreno de mangue aterrado. A Petrobrás
fornecerá o material de construção necessário.
Ali, os flagelados do fogo deverão reunir-se aos da água: a quase totalidade dos atuais moradores de Vila natal foram removidos das encostas da Serra do Mar, onde o perigo de deslizamentos causados
pela chuva foi quase esquecido neste verão inusitadamente seco.
Os oleodutos acompanham a margem esquerda da Via Anchieta
Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Embora especialmente aguda, a tragédia de Vila Socó é apenas um dos muitos capítulos que compõem o drama interminável protagonizado por esse município na Serra do Mar. Sustentada por um orçamento de
25 bilhões de cruzeiros em 1984, a cidade não tem um único metro de rede de esgotos - ali só existem fossas sépticas, e os detritos despejados pelas indústrias e por uma população de 110.000 habitantes transformam o Rio Cubatão, cujas águas são
limpas até aquele trecho, num lago fétido.
Infografia: Paulo Nilson, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)
Há alguns meses, o país se emocionou com as crianças da Vila Parisi, também em Cubatão, que haviam nascido sem cérebro, vítimas de níveis devastadores de poluição. Na semana passada, estava debruçado
sobre Vila Socó, para onde se transferira, provisoriamente, o inferno de Cubatão. |