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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - VILA SOCÓ - (9)
A tragédia e os culpados, nas páginas de Veja

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Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. A revista noticiosa semanal paulistana Veja, que na edição anterior destacara na capa uma reportagem especial sobre os avanços da Petrobrás e não dera uma nota sobre o assunto, publicou matéria de quatro páginas (46 a 49) na edição de 7 de março de 1984, com pequeno destaque na capa e um comentário na página 82 (Acervo Digital Veja - acesso em 19/2/2014 - ortografia atualizada nesta transcrição):
 

Capa da revista Veja de 7 de março de 1984

Imagem: acervo digital Veja

Especial

Inferno em Cubatão

Terror e morte no incêndio da favela sobre um oleoduto

As faixas que a prefeitura de Cubatão, nas fraldas da Serra do Mar, a 60 quilômetros de São Paulo, estendeu nas principais avenidas da cidade anunciavam para este ano um "Carnaval sem crise" - e reforçavam a campanha com a qual o prefeito nomeado José Osvaldo Passarelli, 41 anos, vem tentando desde que assumiu o cargo, em 1981, recuperar a feia imagem de seu município, considerado um dos mais poluídos do mundo. Duas fortes explosões e o incêndio que as seguiu, na madrugada de sábado, dia 25, interromperam os ensaios das três escolas de samba de Cubatão, cancelaram o Carnaval e abalaram duramente a campanha de Passarelli.

Provocados por um vazamento de gasolina nos dutos da Petrobrás que ligam a Refinaria Presidente Bernardes ao Porto da Alemoa, já no município de Santos, as explosões e o incêndio devastaram uma das favelas mais miseráveis de Cubatão - a Vila Socó -, atingindo mais de 1.000 barracos e matando pelo menos noventa pessoas, cujos corpos haviam sido encontrados até a quarta-feira passada. Apenas quinze deles puderam ser reconhecidos.

A gasolina que boiava no mangue incendiou-se e os casebres de madeira foram rapidamente consumidos pelo fogo que só deixou escombros

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Naquele dia, os bombeiros passaram a jogar cal viva nos escombros e no mangue onde os barracos haviam sido construídos sobre palafitas, sepultando para sempre os cadáveres que provavelmente ainda restavam no local. A prefeitura de Cubatão pretende apurar o número exato de mortos pelo único método de que dispõe - contando os sobreviventes e deduzindo-os dos 6.320 habitantes cadastrados por seus assistentes sociais na Vila Socó.

Tão chocante quanto os efeitos do incêndio foi a longa cadeia de erros que resultou no  morticínio do dia 25 - os equívocos, por sinal, prosseguiriam mesmo depois de constatado o vazamento da gasolina, que começou a boiar nos mangues, sob os casebres.

A busca de corpos: nem todos foram encontrados e o mangue foi coberto de cal

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

O motorista Manoel de Jesus Souza, 35 anos, identificou perfeitamente o líquido que escorria ao chegar do trabalho, ainda na manhã de sexta-feira. "Era gasolina mesmo", repetiria depois. No entanto, tranquilizado por outro morador, que lhe prometeu telefonar prontamente para a Petrobrás, ele entrou em seu barraco e foi descansar para o turno seguinte na empresa Tigre Transportes.

Como Souza, muitos habitantes da Vila Socó sentiram o forte cheiro de gasolina, sem contudo acordar para o perigo que os rondava. É o caso do ajudante de obras Cícero Ramos de Santana, 42 anos, que na noite do incêndio despertou com batidas nervosas na porta de seu casebre. "Corre!", gritava uma vizinha. O fogo, que se alastrava rapidamente pelos 700.000 litros de gasolina já espalhados sobre o mangue, estava bem perto. Ele ainda conseguiu ajudar a mulher a salvar seis de seus sete filhos, mas na terça-feira só pedia a Deus para fazê-lo esquecer a agonia da filha Marisete, de 17 anos, que não conseguiu escapar às chamas.

Como quase todos os seus vizinhos, Cícero já fora advertido do enorme risco pelo tenente da Polícia Militar Roldão Paulino da Silva, 47 anos que percorreu a favela gritando avisos sobre a iminência do incêndio. Com medo de assaltos, frequentes naquela região, poucos abriram as janelas, e ninguém se dispôs a enfrentar a chuva que caía àquela hora.

A violência das chamas: só 15 dos 90 mortos puderam ser reconhecidos

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Muitos culpados - Várias testemunhas, que na segunda-feira eram convocadas pelos jornais para depor num inquérito instaurado pela Petrobrás, garantem ter alertado funcionários da empresa para o vazamento. O próprio tenente Roldão Paulino solicitou à Petrobrás pelo rádio de sua viatura, às 22h30 de sexta-feira, providências que só foram tomadas à 1 hora de sábado. Mas à 1h25 - antes que os bombeiros chegassem - a favela já estava em chamas. Horas depois, surgiu dos escombros da Vila Socó um lúgubre debate sobre quem fora o culpado, enquanto 302 famílias, com suas posses reduzidas às roupas do corpo, se viam provisoriamente instaladas no Centro Esportivo de Cubatão.

O prefeito Passarelli, lutando para conservar os olhos abertos depois de uma vigília de 36 horas, procurava isentar-se na segunda-feira: "Eu sei que não sou culpado disso", repetia. O governador Franco Montoro preferiu distribuir o ônus da tragédia. "Somos todos culpados", decidiu Montoro na quarta-feira. A Petrobrás pode não ser, de fato, a única culpada. Embora os próprios técnicos da empresa tenham revelado, no Rio, que o rompimento do conduto de gasolina provavelmente ocorreu por "sérias falhas humanas" de seus operadores, as consequências dessas falhas não teriam sido tão graves se o governo de São Paulo e a prefeitura de Cubatão tivessem levado a sério as advertências que a empresa vem fazendo, comprovadamente, há pelo menos sete anos.

O conduto estourado: abriram a válvula errada

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Segundo os técnicos, o rombo de quase 1 metro de comprimento por 16 centímetros de largura constatado no conduto rompido só pode ter sido provocado por uma altíssima pressão - e a causa mais provável dessa pressão extraordinária seria a abertura de válvulas desencontradas nas duas extremidades do conduto.

Nessa versão, um funcionário abriu a entrada de gasolina no Terminal de Derivados de Petróleo, em Cubatão, e outro, que deveria controlar a saída do combustível no extremo oposto do tubo, no Porto da Alemoa, abriu a válvula de um outro duto, paralelo. Sem ter por onde escapar, a gasolina comprimida pela estação de bombeamento do terminal provocou a ruptura do tubo em seu ponto mais fraco, que, por fatalidade, estava exatamente sob a Vila Socó.

Manoel de Jesus: risco desprezado

Foto: João Bittar, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Advertências inúteis - Se parece óbvio que a empresa terá de responder pela falha de seus funcionários, é também evidente que as refinarias de petróleo precisam de oleodutos, que seriam inofensivos se sobre eles não existissem favelas.

Em 1977, um ano depois de absorver os oleodutos da Rede Ferroviária Federal, a Petrobrás enviou uma carta ao então governador Paulo Egydio Martins, alertando-o sobre as possíveis consequências de um incêndio nesses oleodutos, sitiados por favelas desde os anos 60. O ponto mais crítico, para a empresa, era a Vila Nova, a 2 quilômetros de Vila Socó, onde a picada sobre os condutos é utilizada como rua. Uma carta semelhante chegou às mãos do próprio Montoro em dezembro passado, mas novamente as advertências resultaram inúteis.

Enquanto não se estabelece a dose exata de culpa de cada um, a prefeitura de Cubatão reúne os esforços dos que demonstram sentir algum peso na consciência. Assim, Cubatão resolveu esquecer temporariamente outras áreas críticas - mais de 60% da população vive em habitações precárias - para concentrar-se na reconstrução das casas dos desabrigados de Vila Socó em local seguro.

Sobreviventes, entres os 60% da população que vive em casas precárias

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Esse local, para o prefeito Passarelli, é a Vila Natal, um aglomerado de casas modestas, mas dotadas de água e luz, na margem direita da Via Anchieta, sobre um terreno de mangue aterrado. A Petrobrás fornecerá o material de construção necessário.

Ali, os flagelados do fogo deverão reunir-se aos da água: a quase totalidade dos atuais moradores de Vila natal foram removidos das encostas da Serra do Mar, onde o perigo de deslizamentos causados pela chuva foi quase esquecido neste verão inusitadamente seco.

Os oleodutos acompanham a margem esquerda da Via Anchieta

Foto: Carlos Fenerichi, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Embora especialmente aguda, a tragédia de Vila Socó é apenas um dos muitos capítulos que compõem o drama interminável protagonizado por esse município na Serra do Mar. Sustentada por um orçamento de 25 bilhões de cruzeiros em 1984, a cidade não tem um único metro de rede de esgotos - ali só existem fossas sépticas, e os detritos despejados pelas indústrias e por uma população de 110.000 habitantes transformam o Rio Cubatão, cujas águas são limpas até aquele trecho, num lago fétido.

Infografia: Paulo Nilson, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Há alguns meses, o país se emocionou com as crianças da Vila Parisi, também em Cubatão, que haviam nascido sem cérebro, vítimas de níveis devastadores de poluição. Na semana passada, estava debruçado sobre Vila Socó, para onde se transferira, provisoriamente, o inferno de Cubatão.

Acidente em Pojuca: indenizações pendentes seis meses depois

Foto: Gildo Lima, publicada com a matéria (Acervo Digital Veja)

Indenizações, um outro drama para as vítimas

Se o caso de outras duas tragédias nacionais - ambas coincidentemente envolvendo empresas públicas - servir como exemplo, as vítimas de Cubatão não devem nem mesmo contar com o consolo de uma justa indenização para suas desgraças. Em novembro de 1982, um cabo de alta tensão derrubado num acidente de trânsito nos arredores de Natal e uma falha de operação na subestação da Companhia de Serviços de Energia do Rio Grande do Norte (Cosern) causaram a morte de 24 pessoas e ferimentos em oitenta.

Em agosto de 1983, a explosão de uma composição carregada de gasolina da Rede Ferroviária Federal, em Pojuca, na Bahia, provocou a morte de uma centena de pessoas e ferimentos em outras tantas. Os desdobramentos dos dois episódios recomendam paciência e ânimo forte às vítimas de dramas do gênero.

Das 104 vítimas do Rio Grande do Norte, apenas 38 já foram indenizadas. As demais continuam na fila de espera, algumas por problemas burocráticos, outras porque não aceitaram a proposta inicial da Cosern.

Há também o problema dos feridos ainda em recuperação. "Estes só poderão ser indenizados quando terminar o tratamento e se souber o seu grau de invalidez", informa Carlos Canuto, diretor jurídico da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), que vai dividir com a Cosern os 143 milhões de cruzeiros que custarão as indenizações.

Em Pojuca, já foram indenizadas as famílias de 53 vítimas fatais, mas ainda estão pendentes os casos de 27 mortos não identificados e dezenove cujos parentes recorreram à Justiça contra as propostas da empresa, que variam de 820.000 a 12 milhões de cruzeiros.

"Todas as indenizações respeitaram o limite mínimo de responsabilidade civil do seguro obrigatório dos carros", esclarece Walter Geb, superintendente da Rede Ferroviária Federal.

"Agredir a natureza pode custar um preço muito alto, que é pago frequentemente em vidas humanas"

Imagem, reprodução da página 82, incluindo foto de Carlos Namba (Acervo Digital Veja)

Ponto de Vista

O trágico recado de Cubatão

Paulo Nogueira Neto [*]

Os últimos desastres ocorridos no país, com a perda de dezenas ou centenas de vidas humanas, trazem à tona de maneira trágica e brutal uma realidade à qual não podemos escapar. Se não planejarmos adequadamente o nosso futuro, no que se refere ao meio ambiente e à ocupação do solo, e se não nos empenharmos em executar as medidas delineadas nesse planejamento, teremos que pagar um preço por isso. Esse preço se expressa não somente em cruzeiros, dólares ou ORTN, mas em vidas.

A natureza, quando agredida e ferida, procura logo se recompor. Se essa recomposição natural não é possível, as atividades humanas acabam sendo levadas de roldão pelas forças naturais, em relação às quais não têm nenhum valor as leis frágeis que o homem estabelece para si. Os nossos rios, nas áreas mais densamente habitadas do país, estão sujeitos a uma agressão constante. Conseguimos grandes vitórias no que se refere ao controle da poluição industrial de natureza hídrica, embora tenhamos também nesse setor alguns desastres a registrar. Há meses, em Pernambuco, várias destilarias, informadas da ocorrência de um derrame de vinhoto, aproveitaram-se do fato para também despejar o seu próprio vinhoto armazenado. O resultado foi uma poluição catastrófica, que tirou o ganha-pão de muitos milhares de pessoas. Famílias com baixíssimo nível de renda ficaram desprovidas do ganha-pão proporcionado pela pesca, e também deixaram de obter as proteínas tão desesperadamente necessárias para evitar que as crianças fiquem com a inteligência prejudicada pelo resto da vida.

São coisas que nem sempre aparecem claramente nas manchetes, e que passam quase despercebidas no que diz respeito a danos causados. No entanto, às vezes os males ambientais explodem com a força e a violência de uma represa que arrebenta. É o caso do recente incêndio em Vila Socó, na sofrida cidade de Cubatão. Várias vezes, tive a oportunidade de dizer que em Cubatão as pessoas estavam arriscadas a morrer ou corriam perigos graves, devido à intensa poluição industrial ou à instabilidade das encostas da Serra do Mar, onde hoje já se expande uma favela com 35.000 habitantes. E poderiam morrer, se houvesse um acidente com os oleodutos da Petrobrás. Infelizmente, a tragédia ocorreu.

Ainda estamos profundamente apreensivos com a poluição nesse local e com a possibilidade de as encostas deslizarem. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo já localizou 107 casas que apresentavam um risco mais iminente. No aspecto do controle da poluição atmosférica em Cubatão, conseguiu-se uma melhora com o óleo combustível especial que está sendo fornecido pela Petrobrás. O pó da rocha fosfática foi reduzido, graças à ação fiscalizadora da Cetesb, mas o problema continua ainda muito grave. Uma comissão interministerial chegou a várias conclusões importantes, mas ainda não vieram os recursos necessários para implementar suas decisões. A própria estrutura da Secretaria Especial do Meio Ambiente - Sema - precisa de um bom reforço. Não foi ainda resolvido, entre outros, o problema básico da implantação dos projetos habitacionais necessários para alojar a população em perigo.

O que mais nos preocupa, no âmbito dos problemas ambientais, é a necessidade imperiosa de boas previsões. A falta de previsão pode significar um convite ao desastre. Noutros casos, cada entidade se mantém fechada dentro de suas estritas atribuições, e as propostas para resolver alguns dos problemas ambientais não encontram eco. Frequentemente me vejo andando em círculos, batendo de porta em porta. Com muita insistência, às vezes é possível despertar sensibilidades e fazer com que as coisas caminhem mais rapidamente. Nesse aspecto, o papel da Sema, do Ministério do Interior, é considerado, por alguns, bastante incômodo: cabe-lhe lembrar sempre a possibilidade de ocorrerem tragédias com consequências desagradáveis, as quais nem sempre podem ser visualizadas com antecedência e com maior acuidade. É que frequentemente os perigos vão minando disfarçadamente as áreas afetadas, até que um dia as consequências se fazem sentir com intensidade brutal.

É este o momento derradeiro para salvarmos certas florestas e outras amostras significativas e insubstituíveis de nossos ecossistemas. Temos que defender, agora e de modo efetivo, áreas naturais que serão imensamente apreciadas e intensamente pesquisadas pelos séculos afora. Nesse campo, temos que agir como os construtores das catedrais medievais: com os olhos postos nas gerações futuras. Está em nossas mãos decidir o que realmente o país deseja: procurar um pouco de felicidade efêmera e a curto prazo, ou buscar uma vida de melhor qualidade, a longo prazo, pagando para isso um preço razoável. A hora da decisão é agora. Os minutos contam, pois a motosserra e a poluição não param por conta própria. Não me importo em parecer algo quixotesco. Muitas vezes precisamos de quixotes para tocar para a frente os milhões de sanchos-panças que se prendem às suas rotinas e emperram o país. Temos que andar, como dizia Von Braun, com um pé no sonho e outro na realidade. Do contrário, estaremos condenados a cruzar os braços e ficar à espera da destruição.

[*] Paulo Nogueira Neto é secretário especial do Meio Ambiente.

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